527 - Homem, cultura e religião


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES – Juiz de Direito


A ciência, a filosofia, a arte e a religião são as grandes atividades pelas quais a genialidade e a criatividade humanas melhor se expressaram, produzindo um tesouro de obras imponentes e admiráveis. As conquistas da filosofia e da ciência permitiram à humanidade investigar o mundo em várias dimensões, descobrir as complexas e intrincadas estruturas que o constituem, além de descobrir tecnologias cada vez mais avançadas para submeter a realidade ao seu domínio.

As criações artísticas (as belas-artes, a literatura e a música) afagam a vista, os ouvidos, a mente e o coração do homem. E a religião não foi menos fecunda em suas obras. Até o século XIX, a religião foi a força motriz da cultura. Zelou pela tradição, assegurou o legado greco-romano, preservou a educação, a lei moral e o instinto civilizatório.

Não se pode compreender as estruturas íntimas de uma sociedade e suas manifestações culturais se não se conhece bem seus postulados religiosos. A questão religiosa está no limiar de todas as grandes literaturas e filosofias da história.

Evelyn Waugh, romancista inglês do século XX, é um dos escritores que têm uma visão sobrenatural da realidade, de cunho metafísico. Reclamando da indignação de Edmund Wilson com a presença de Deus em Brideshead Revisited, ele diz: “Eu acredito que você apenas pode deixar Deus de fora se criar personagens que são pura abstração. (...) O fracasso dos romancistas modernos desde – e incluindo – James Joyce vem da presunção e da arrogância. Eles não estão satisfeitos com as figuras artificiais que até agora passaram graciosamente por homens e mulheres. Eles tentam representar toda a mente e a alma humanas, ao mesmo tempo omitindo sua característica determinante – a de serem criaturas de Deus com uma finalidade definida. Assim, em meus livros futuros haverá duas coisas para torná-los impopulares: uma preocupação com estilo e a tentativa de representar o homem de maneira mais completa, o que, para mim, significa apenas uma coisa: o homem em sua relação com Deus (in Garcia, Rodrigo Duarte; Dicta&Contradicta; Uma pequena experiência na arte do romance: Tolstoi, Guerra e Paz; IFE; São Paulo; 2010; n.5; p.133).

Mesmo que a religião, nos dias de hoje, passe por um período de crise profunda, isto não constitui um argumento plausível contrário ao peso específico da dimensão religiosa e à relevância histórica e cultural do fenômeno religioso: ele se impõe como uma constante do ser humano, mesmo que não seja cultivada por todos os membros de nossa espécie. Como já dizia Cícero em seus famosos discursos, o homem é naturalmente religioso, porque a realidade que o circunda, com sua força, com seu fascínio e com seu terror, sugere a ele a existência de um ser superior.

Qualquer postura que ignore este fenômeno pode ser comparada à conhecida passagem literária de “Irmãos Karamazov”, de Dostoievski: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Isto é, se Deus não existe, então, eu sou deus. Se Deus não existe, então tudo é lícito, ou seja, se Deus não existe, a realidade empírica não teria nenhum significado último, salvo se entendida como uma constante e perpétua obra de construção de sentido a que o homem estaria condenado, uma espécie de itinerário de Sísifo de sua sobrevivência temporal.

Assim, compreende-se perfeitamente porque Sartre fez do homem o artífice trágico de sua essência, na medida em que está consciente do impasse, à luz dos postulados existencialistas, a que está destinado a ser: se a existência precede à essência, isto é, se o homem carece de qualquer lastro metafísico, só resta ao homem criar uma essência para si mesmo.

Não é à toa que, coerentemente, nosso filósofo existencialista, depois de virar a mesa da relação entre essência e existência do homem, impôs-lhe o fardo titânico de ser Deus, isto é, ser em si e para si. Citando Vito Corleone, meu mafioso predileto, deixo aqui uma proposta irrecusável: tentem viver de costas para o fenômeno religioso sem algum tipo de alienação pessoal. E, para aqueles que a recusarem, não se preocupem: não acordarão com uma cabeça de cavalo entre os lençóis. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito (agfernandes@tjsp.jus.br).


O Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais do TJSP