538 - Os serviços de proteção ao crédito e os direitos dos trabalhadores


LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador 


Meu amigo Outrem Ego disse-me que a sociedade capitalista havia descoberto mais um vírus. A produção agrícola havia feito alastrar o vírus da gripe suína; os computadores vivem infestados de vírus fabricados e, agora,  a sociedade civil havia inventado um novo vírus: o do devedor, que ele  intitula de  vírus da negativação, um estigma social.  Ele estava comentando a atitude de alguns empregadores que andam fazendo consultas aos serviços de proteção ao crédito (SPCs) em relação aos candidatos a emprego e que ele havia visto uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que,  julgando uma Ação Civil Pública,  acabou por admitir como lícito esse tipo de consulta, o que o deixou preocupado.

Meu amigo perguntou: “Qual a relação entre colocar tijolos sobre tijolos ou arrumar papéis no almoxarifado ou vender roupas numa loja etc, com o fato de estar atrasado com a prestação da geladeira?”

De fato, como também disse Outrem Ego, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa e a questão dos cadastros de inadimplentes é mesmo muito mal compreendida. Nessa questão dos cadastros de inadimplentes, ao que me parece, existe um desconhecimento de sua função. Na verdade, os serviços de proteção ao crédito estão regulamentados no Código de Defesa do Consumidor (arts. 43 a 44; arts. 72 e 73) e, como o próprio nome indica, têm como função proteger o crédito existente no mercado, isto é, as anotações cadastrais servem para análise daquele que irá conceder algum tipo de crédito ou financiamento ao consumidor.

Vale dizer, a função do cadastro é apenas a de indicar para os fornecedores quais são os consumidores que, por algum motivo, não estejam pagando suas dívidas. Ademais, é sempre importante realçar que o cadastro é uma mera informação ao fornecedor. Nada impede que ele forneça crédito, financiamento ou até um empréstimo para um consumidor que esteja negativado. Com base nos dados existentes, ele faz uma análise do risco do crédito a ser ou não concedido. E não é incomum que bancos e financeiras concedam empréstimos ao consumidor que esteja negativado apenas para ele se recompor, organizando suas finanças e ficando em dia com suas obrigações. Por isso que, conseguir um emprego e, portanto, ao final do mês, receber um salário pode ter exatamente a função de colaborar para que o trabalhador ___ consumidor inadimplente ___ possa pagar suas dívidas.

A pergunta que não quer calar nessa questão é a se esse tipo de busca significa discriminação ao trabalhador ou candidato ao emprego. Penso que a solução está no texto constitucional, que deve ser lido e interpretado à luz da natureza dos SPCs, conforme acima antecipei.

Com efeito, dispõe o art. 3º, inciso IV,  da Constituição Federal:

“Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”

Não nos esqueçamos da ênfase nos pronomes: “quaisquer outras” e continuemos nossa análise.

Como se sabe, é comum que a própria lei faça discriminações, mas essas hão de ser positivas e favoráveis ao indivíduo discriminado e ao sistema social particular a que ele pertence e mais geral da sociedade como um todo.  Ninguém se opõe a que a lei discrimine para proteger o idoso, o menor de idade, a mulher gestante etc. Logo, discriminações podem ser feitas, mas desde que respeitem o indivíduo, a coletividade e, claro, a Constituição Federal.

Isso decorre do princípio da igualdade, estampado no caput do art. 5º da Constituição Federal, que dispõe:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”.

Ora, é fato conhecido que:

a) o princípio da igualdade ou isonomia é dirigido ao legislador e ao aplicador;

b) a interpretação adequada de tal princípio é tão antiga quanto Aristóteles, que já explicava que seu resultado adequado advinha da fórmula: dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade;

c) essa fórmula, que em abstrato é bastante adequada, nem sempre surge  facilmente no mundo real.

Ainda assim, é uma determinação obrigatória ao intérprete e ao aplicador, que devem seguir todos os esforços possíveis a fim de obter a igualdade como resultado prático de seu mister. E, como dito, não é tão simples definir quando há e quando não há discriminação.

Na obra Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, Celso Antônio Bandeira de Mello dá uma série de indicações para a concretização dessa garantia constitucional. Vale aqui lembrar alguns tópicos do trabalho do jurista paulista[i].

Uma das funções da lei é discriminar situações, e isso não fere, por si só, o princípio da igualdade. Assim, é plenamente constitucional a lei dizer que a maioridade penal inicia-se aos 18 anos. Nenhum menor de 18 pode dizer que foi discriminado, uma vez que se trata de uma das funções da lei. A constatação da existência de discriminações, portanto, não é suficiente para definir se o princípio constitucional de isonomia está ou não sendo respeitado, pois, como visto, em determinadas situações a discriminação empreendida está em consonância com o preceito constitucional. Ao contrário, é exatamente da discriminação que nasce o princípio.

Contudo, para aferição da adequação ao princípio da igualdade, é necessário levar em conta outros aspectos. Todos eles têm de ser avaliados de maneira harmônica: se adotado o critério discriminatório, este tem de estar conectado logicamente com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade apontada. Além disso, há que existir afinidade entre essa correlação lógica e os valores protegidos pelo ordenamento constitucional. Ou seja, nenhum elemento, isoladamente, poderá ser tido como válido ou inválido para verificação da isonomia. É o conjunto que poderá designar o cumprimento ou não da violação da norma constitucional.

Assim, resumidamente, afere-se a adequação ou não ao princípio da isonomia verificando-se a harmonização dos seguintes elementos:

a) discriminação;

b) correlação lógica da discriminação com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade;

c) afinidade entre essa correlação e os valores protegidos no ordenamento constitucional.

Como bem o dizem os Professores David Araujo e Vidal Serrano Nunes, a “exigência de altura mínima de 1,50 metro para inscrição em concurso de advogado da Prefeitura, por exemplo, é claramente inconstitucional, pois o fator discriminatório adotado em nada se ajusta ao tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade entre os que têm altura maior ou menor.

O mesmo critério, contudo, é absolutamente afinado à isonomia se adotado em concurso para ingresso na carreira policial. Aqui, o porte físico é essencial ao bom desempenho das funções. Logo, não implica qualquer inconstitucionalidade”[ii]

Lembre-se, também, que o poder constituinte, ao elaborar o texto magno, desde aquele instante tratou de deixar estabelecidos certos grupos de pessoas e certos indivíduos que merecem a proteção constitucional, isto é, a Constituição Federal reconhece de plano a hipossuficiência, que deve, então, ser levada em conta pelo intérprete, pelo aplicador e pelo legislador infraconstitucional de maneira diferenciada, visando a busca de uma igualdade material. É o caso da reserva de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência (art. 37, VIII), da proteção ao consumidor[iii] etc.

Tendo em vista aquela decisão do TST referida por meu amigo, fiz uma pesquisa e descobri uma decisão lapidar da lavra de ilustre Ministro Pedro Paulo Teixeira Manus,  que, segundo penso, resolve cabalmente a questão. Transcrevo-a a  seguir:

RECURSO DE REVISTA.
  AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VIGILANTES. EDITAL DE LICITAÇÃO.
DISCRIMINAÇÃO. Discute-se, -
in casu-, a legalidade da cláusula contida em edital de licitação, na qual se prevê a impossibilidade de contratação, pela empresa terceirizada, de vigilante que apresentar restrição creditícia, mediante consulta em serviços de proteção ao crédito. Para que se confira validade à discriminação perpetrada, necessária a comprovação de que o fator adotado como critério de desigualdade tenha relação com a finalidade a ser alcançada com a lei ou, no caso, com o edital de licitação. Isso porque, não pode haver eleição de critério de discriminação que não guarde nenhum tipo de relação com a finalidade buscada pelo setor público, in casu, a contratação de serviço de vigilância. No caso concreto, a situ ação financeira do empregado vigilante não tem vinculação com o serviço a ser prestado, tampouco atesta a idoneidade do empregado, o que demonstra se tratar de eleição de fator arbitrário para a seleção dos vigilantes a serem contratados. Por outro lado, dispõe-se no art. 5º, XIII, da Constituição Federal que -é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer-. Da exegese da Lei nº 7.102/83, que disciplina a função de vigilante, não se constata a previsão de restrição ao seu exercício, no caso de débito registrado nos serviços de proteção ao crédito. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento.  (Processo: RR - 123800-10.2007.5.06.0008, j. 14/12/2011, m.v.,  Relator Ministro: Pedro Paulo Manus, 7ª Turma, publicado em DEJT 03/02/2012).

Desse modo, penso que a consulta aos SPCs feita por empregadores é discriminatória por falta de amparo legal e falta de afinidade entre a ação de investigação e a qualidade do candidato e a natureza de sua pretensão (preencher vaga de emprego).

Realço, mais uma vez, que a legitimidade dos SPCs e a legalidade dos lançamentos lá efetuados e as consultas neles realizadas têm relação com a função e natureza dos cadastros definidas no Código de Defesa do Consumidor para proteger o crédito. Não há qualquer relação com emprego e empregabilidade. A relação de um empregado com seu empregador tem a ver com a prestação de serviço que aquele fornecerá a este e não existe nenhuma lógica e, aliás,  também nenhuma norma que vá fazer a conexão entre o empregado prestador de serviços para exercer o seu mister, qualquer que seja ele, com o fato de que em algum momento, ele por qualquer motivo não ter conseguido pagar uma dívida.

Além disso, também como já antes afirmei nesta coluna, não é crime ser devedor e,  inclusive,  muitas vezes, a anotação negativa se dá por abuso do fornecedor. E, quando um banco nega um empréstimo com base na negativação do proponente ou uma loja nega o financiamento a um comprador, eles o fazem porque acreditam que não irão receber o crédito, pois há uma informação pregressa que induz a isso. Mas, nunca se ouviu dizer que um trabalhador acorda e decide não ir trabalhar, para exercer suas funções, quaisquer que elas sejam, apenas porque está negativado nos SPCs.

Como também disse Outrem Ego, “Se continuar assim, com  esse tipo de perseguição na entrada, o argumento pode ser usado na saída. Logo logo o patrão despedirá o empregado porque ele entrou no cheque especial  e não pagou. Ao invés de dar um aumento de salário para ajudá-lo, ele irá colocá-lo no olho da rua, fundado no vírus da negativação”.

Ele ainda me perguntou se os empregadores examinam os SPCs apenas para empregados que concorram a cargos mais humildes ou para todos. Bem, se fosse apenas dos  mais humildes,  seria uma discriminação maior ainda;  já, como tudo indica, esse tipo de conduta vale para qualquer cargo, se a moda pegasse poderiam ocorrer fatos tais como os seguintes:  médicos barrados em concursos públicos, porque não pagaram a conta de seu celular; bacharéis em direito não ingressando nos quadros da OAB porque atrasaram a conta de financiamento do automóvel; advogados não sendo contratados em escritórios de advocacia porque não pagaram a prestação da casa própria; juízes que não seriam vitaliciados porque esqueceram de pagar a conta do cartão de crédito; pilotos não contratados pelas companhias aéreas porque não pagaram a conta de água e esgoto etc etc, um longo etc.


30/4/2012

[i]  Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, São Paulo: Malheiros, 3ª. ed., 1997, passim.,

[ii] Curso de Direito Constitucional, São Paulo:Saraiva, 1998, Cap. 2.1.

[iii] A Constituição Federal reconhece a vulnerabilidade do consumidor. Isso porque, nas oportunidades em que ela  manda que o Estado regule as relações de consumo ou quando põe limites e parâmetros para a atividade econômica, não fala simplesmente em consumidor ou relações de consumo. O texto constitucional refere-se a “defesa do consumidor”, o que pressupõe que este necessita mesmo de proteção. Assim está no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor” — grifei), no art. 5º, XXXII (“O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” — grifei); e assim está no art. 170, V (“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V — defesa do consumidor” — grifei). Para mais dados a respeito desse tema, ver nosso Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed., 2011, ps. 86 e segs.

 


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