547 - O superendividamento do consumidor e a política de financiamento
LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador
Uma das características marcantes da sociedade de consumo em todos os tempos é a de que os consumidores em geral não tem capacidade financeira para adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos. A partir de um certo momento na história, especialmente após o período da revolução industrial, cada vez mais os fabricantes passaram a produzir bens em grandes quantidades. O intuito como sempre era o lucro. Com o aumento da tecnologia de produção, passou-se a poder produzir em série, de tal modo que o produto final foi ficando cada vez mais barato. O produtor passou a ter um menor lucro por cada produto vendido, mas como vende em muito maior quantidade, fatura mais e ganha mais. A criação de novos produtos e serviços fez a quantidade de variedade crescer ao infinito. Isso me faz recordar Sócrates que, quatro séculos antes de Cristo, foi ao mercado em Atenas e disse: “Como são numerosas as coisas de que eu não preciso”. Hoje, frequentando qualquer shopping center e observando a incrível e enorme quantidade da oferta, o famoso filósofo talvez perdesse sua natural simplicidade e sua imbatível lucidez.
A verdade é que o sistema capitalista que vingou, de produção em massa de produtos necessários mas também supérfluos, inúteis, só cresceu com o passar do tempo. Mas, havia um problema: os consumidores continuavam sem dinheiro para adquirir os bens oferecidos. Isso no século XX foi resolvido com a criação do sistema de oferta de créditos em massa, dos empréstimos pré-aprovados, dos financiamentos a longo prazo e, claro, dos cartões de crédito, a porta de entrada no paraíso das compras, que permite aquisição de produtos e serviços para o consumidor que não tem dinheiro algum.
A oferta de crédito, todavia, tem seu próprio limite na capacidade de pagamento do consumidor-tomador. Não adianta oferecer crédito fácil se, do outro lado da oferta, há limites restritos de devolução. Ou, dizendo de outro modo, é preciso que o fornecedor controle a capacidade de pagamento de seus clientes (daí, em parte, a justificativa para a existência dos cadastros negativos e positivos de crédito).
Para piorar o quadro, no Brasil, o mercado criou um modelo de financiamento para quase tudo que existe à venda pela criação do cheque pré-datado, (invenção nacional) o que inclui produtos que, em outros lugares, só se compram à vista.
Um bom exemplo é o combustível: o consumidor enche o tanque de seu veículo pagando com cheques pré que, por sua vez, acumulam-se junto de outros relativos às demais compras, numa substituição sem fim (nesse emaranhado de cheques, é muito comum que o consumidor perca-se na administração doméstica e acabe, fatalmente, emitindo cheques sem fundo). O consumidor, então, usa hoje o combustível que pagará no mês seguinte ou dois ou três meses depois.
Essa questão do superendividamento dos consumidores – especialmente, no âmbito familiar – é, atualmente, um dos temas centrais das preocupações dos consumeristas, tanto que, no projeto de lei do Senado Federal que pretende atualizar o Código de Defesa do Consumidor, foi feita proposta de proteger o consumidor contra essa mazela.
O problema é que os fornecedores – concorrendo entre si para oferecer crédito em larga escala, ainda que tentando controlar os riscos – acabam estimulando sobremaneira a aquisição de produtos e serviços a prazo, no que contam, naturalmente, com a ajuda da longa mão do marketing massivo.
Por tudo isso, é mesmo muito importante que o Estado intervenha no mercado para regular o crédito. Infelizmente, o que se tem observado nos últimos tempos é um estímulo às aquisições a prazo, em função da crença de que o aumento das vendas é o mais importante elemento que tem valor no capitalismo, o que gerou uma forma de crédito perniciosa. Acabou sendo adotado o modelo que é muito usado pelas grandes lojas populares de varejo que vendem móveis e eletrodomésticos e atendem às classes C, D e E. Essas, como se diz, não “vendem propriamente” uma cama, um sofá ou um armário. Elas vendem “prestações de pequenos valores” pelas quais os consumidores adquirem esses bens.
A estratégia é, pois, descobrir “quanto” de valor de uma prestação cabe no salário do consumidor para, após esse cálculo, fazer as ofertas. Daí que o prazo é sempre alongado e, já que o cálculo é bem feito, não custa nada embutir generosas taxas de juros nas prestações, eis que o crediário é feito por empresas financeiras ligadas aos lojistas.
Conclusão: o consumidor consegue comprar alguns produtos, pagando por meses e anos a fio. Não é incomum que, ao final, o consumidor tenha adquirido um armário e pago o preço de três ou quatro.
Mas, esse é um sistema que, bem ou mal, funciona – porque os consumidores, mesmo pagando caro, conseguem a longo prazo adquirir certos produtos, o que não seria viável à vista, pelo menos não frequentemente. No entanto, essa mesma fórmula aplicada à venda de veículos automotores – especialmente, automóveis – e também aos imóveis, não funciona tão bem.
Isso porque, quando o consumidor adquire um automóvel pelo fato de que a prestação “cabe” na sua renda – no seu salário -, comete um erro, pois se esquece de considerar os demais custos ordinários e extraordinários ligados ao produto.
Um automóvel, por exemplo, gera gastos imediatos e rotineiros com manutenção (revisões, trocas de peças, óleos etc), impostos, taxas, seguros obrigatórios e voluntários, além do consumo regular. De cara, sem recursos, o consumidor acaba não fazendo o seguro voluntário para se garantir contra acidentes e roubos. Se sofrer um, já perde tudo. E, essas circunstâncias, a longo prazo, proporcionalmente, só pioram, porque o custo da manutenção aumenta e os demais permanecem. Chega uma hora em que a prestação cabia no salário, mas todos os demais custos não. Fatalmente, o consumidor tornar-se-á inadimplente, sendo que os veículos retornarão aos financiadores. A esse propósito, nos últimos dias, a imprensa noticiou que, de fato, a inadimplência no setor de veículos financiados cresceu brutalmente e já existe um acúmulo desses produtos nos pátios de leilões, que estão abarrotados.
Pode-se dizer o mesmo em relação à venda de imóveis, principalmente, aqueles oferecidos também a essas classes de renda, eis que não basta que a prestação caiba no salário, uma vez que, como se sabe, imóveis não só exigem manutenção e pagamento de tributos e taxas, como os mais populares estão sendo entregues ao mercado praticamente apenas com as paredes e o chão. O consumidor tem que adquirir o bem e, depois, ainda tem que gastar muito para equipá-lo adequadamente para uso. Só para ficarmos com alguns elementos, há apartamentos sendo oferecidos com chão de cimento, sem aquecedor, sem chuveiro, sem uma série de utensílios que são absolutamente necessários. Aliás, e a propósito, anoto que não é raro que o consumidor adquira apartamentos em construção e depois não tenha dinheiro suficiente para pagar o ITBI e as taxas de Cartório.
O mercado, portanto, é repleto de armadilhas. Em algumas delas, é verdade, o tiro pode sair pela culatra, o que pode acontecer quando um grupo muito grande de consumidores é atingido simultaneamente gerando crise em bloco e afetando um específico fornecedor ou vários do mesmo setor. Mas, do lado do consumidor, ávido por consumir – na crença de que assim pode ser feliz -- as chances dele sair-se mal nas operações são grandes. Falta, pois, educa-lo adequadamente para que ele possa compreender os riscos reais que corre ao efetuar compras a prazo, além, claro, de ser adotada uma política de financiamento mais realista e que possa proteger o polo de consumo.
18/6/2012