553 - A incompletude da modernidade pela aporia da questão social


BRUNO J. R. BOAVENTURA - Mestrando em Política Social pela UFMT

IVONE MARIA FERREIRA DA SILVA - Doutora em Serviço Social pela PUC/SP



Resumo
: O texto faz a reflexão da modernidade com a questão social, passando pela analise do papel da Revolução Francesa e Industrial.

Abstract: The text is a reflection of modernity with social question, through analysis of the role of the French Revolution and Industrial.

Palavras-chave: modernidade, questão social, revolução industrial, revolução francesa.

Keywords: modernity, social question, industrial revolution, french revolution

I. A promessa do Mundo moderno: a riqueza é para todos

O ato de revolver a terra para revoluir a semente nos deu a palavra revolução, palavra esta que entrou no léxico ocidental pelo significado de “qualquer grande transformação social e política suscetível de substituir as instituições e relações sociais anteriores e de iniciar novas relações de poder e de autoridade.[1]” Apesar de uma grande transformação não poder ser classificada como uma transformação qualquer, a citação do dicionário nos serve no propósito de reafirmar o conceito propriamente, diferenciando-o da idéia que no tempo se estabeleceu sobre revolução na modernidade. A Revolução se transformará então na própria concepção intentora da promessa da modernidade ocidental. Alain Touraine classificara a idéia da revolução como:

“The idea of revolution is at the heart of the Western representation of modernization. European experience, wich dominated the world stage for so long, drew its force, its violence, and its formidable capacity for expansion, from the central affirmation that modernity had to be produced solely by the force os reason, and that nothing should resist that universal inspiration wich would destroy all social and cultural tradition, all beliefs, privileges and communities.”[2]

A aurora da universalização da razão da nova era translucidava a tênue idade da noite, o mundo medieval é colocado a se por no amadurecer do fim. O tradicional sucumbiria ao progresso, estava anunciada a revolução: o novo tempo se ilumina, a humanidade conhece o alvorecer daquilo que chamará de modernidade, a nova etapa do contínuo processo global de europeização do mundo[3].  A dúvida que ainda permanece agonizando alguns é se realmente a modernidade é um projeto de globalização do tipo europeu?  Anthony Giddens responde categoricamente tal pergunta se valendo de dois complexos organizacionais que fazem parte do rearranjo institucional da modernidade: o estado nação e a produção capitalista sistemática:

“Em termos de agrupamento institucional, dois complexos organizacionais distintos são de particular signifcação no desenvolvimento da modernidade: o estado nação e a produção capitalista sistemática. Ambos têm suas raízes em características específicas da história européia e têm poucos paralelos em períodos anteriores ou em outros cenários culturais. Se, em íntima conjunção, eles têm se precipitado através do mundo, é acima de tudo devido ao poder que geraram. Nenhuma outra forma social, mais tradicional, foi capaz de contestar este poder no que toca à manutenção de completa autonomia fora das correntes do desenvolvimento mundial. É a modernidade um projeto ocidental em termos dos modos de vida forjados por estas duas grandes agências transformadoras? A esta pergunta, a resposta imediata deve ser “sim”.”[4]

A Revolução Industrial, a origem da produção capitalista sistemática, e a Revolução Francesa, a consolidação do estado nação, intentaram e conseguiram iniciar uma nova era na relação de poder estatal e autoridade política com uma promessa ao mundo, a da modernidade. Eric Hobsawm caracteriza essas Revoluções como os fundamentos do mundo moderno:

“Se a economia do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa. A Grã-Bretanha forneceu o modelo para as ferrovias e fábricas, o explosivo econômico que rompeu com as estruturas sócio-economicas tradicionais do mundo não europeu; mas foi a França que fez suas revoluções e a elas deu suas idéias, a ponto de bandeiras tricolores de um tipo ou de outro terem-se tornado o emblema de praticamente todas as nações emergentes, e a política européia (ou mesmo mundial) entre 1789 e 1971 foi em grande parte a luta a favor e contra os princípios de 1789, ou os ainda mais incendiários de 1793.” [5]

A promessa de que todos poderiam saber o que era riqueza através do progresso econômico e da nova ordem política rompe com os grilhões do mundo medievo. Maurice Dobb conceitua melhor do ninguém o processo da naturalização da promessa social da modernidade no que tange ao fundamento econômico do rompimento da tradição com o nascer do progresso como a lei da vida:

“Em primeiro lugar, está o fato já familiar de que, no século XIX, o ritmo da modificação econômica, no que diz respeito à estrutura da indústria e das relações sociais, ao volume de produção e à extensão e variedade do comércio, mostrou-se inteiramente anormal, a julgar pelos padrões dos séculos anteriores: tão anormal a ponto de transformar radicalmente as idéias do homem sobre a sociedade de uma concepção mais ou menos estática de um mundo onde, de uma geração para outra, os homens estavam fadados a permanecer na posição que lhes fora conferida ao nascer, e onde o rompimento com a tradição era contrário à natureza, para uma concepção do progresso como a lei da vida e do aperfeiçoamento constante como estado normal de qualquer sociedade sadia.[6]

A base da sociedade deixaria de ser a engendrada pelo Sacro Império Romano-Germânico representado pelo Imperador e pelo Papa da Igreja Católica Apostólica Romana, que conjugados operavam a Cristandade Ocidental. O fundamento daquilo que estabelece a organização da sociedade deixaria de ser a cosmovisão teocrática medieval exsurgindo a necessidade de um novo baseamento, como Boaventura de Souza Santos colocara:

“O colapso da cosmovisão teocrática medieval trouxe consigo a questão da autoria do mundo e o indivíduo constituiu a primeira resposta. O humanismo renascentista é a primeira afloração paradigmática da individualidade como subjetividade. Trata-se de um paradigma emergente onde se cruzam tensionalmente múltiplas linhas de construção da subjetividade moderna. Duas dessas tensões merecem um relevo especial. A primeira ocorre entre a subjetividade individual e a subjetividade coletiva. (...) Para o que aqui nos interessa, cabe lembrar que o posicionamento específico da teoria política liberal perante as duas tensões acima referidas representa a proposta hegemônica da resolução da questão da identidade moderna. Na tensão entre subjetividade individual e subjetividade coletiva, a prioridade é dada à subjetividade individual; na tensão entre subjetividade contextual e subjetividade abstrata, a prioridade é dada à subjetividade abstrata. Tratam-se de propostas hegemônicas, mas não únicas nem em todo o caso estáveis. O triunfo da subjetividade individual propulsionado pelo princípio do mercado e da propriedade individual, que se afirma de Locke a Adam Smith, acarreta consigo, pelas antinomias próprias do princípio do mercado, a exigência de um super-sujeito que regule e autorize a autoria social dos indivíduos. Esse sujeito monumental é o Estado liberal.[7]

A relação central da vida deixou de ser teocrática para ser antropocêntrica.  O homem conquistou a liberdade desejada do mundo medieval projetando-se como um indivíduo capaz de projetar verdades, a cada indivíduo cabe possuir o seu próprio imperativo categórico kantiano. O paraíso não será mais a força motriz da vida humana no ocidente, mas sim a riqueza econômica e o poder político.

O dois complexos organizacionais que fazem parte do rearranjo institucional da modernidade, o estado nação e a produção capitalista sistemática, são faces de uma mesma moeda. Uma das faces, a vertente política, é a soberania do Estado Liberal de Direito, símbolo da Revolução Francesa. A outra face, a vertente econômica, é simbolizada pela sociedade de mercado mundial da Revolução Industrial. Faces de uma mesma moeda alcunhada de burguesia, caracterizadas como a do capitalismo e a do liberalismo[8]. O que temos será então a conjugação do capitalismo do livre mercado com o individualismo do liberalismo, no modelo de modernização ocidentalizante definido por um tipo de ator dirigente, o capitalista[9].

II. O moderno sonho político: liberdade, igualdade e fraternidade

O marco político da modernidade é a queda da bastilha, batalha que afirma no tempo os ideais da Revolução Francesa. Ideais que são projetados na ópera Eu sonhei um sonho baseada na obra prima de Vitor Hugo, os Miseráveis. A modernidade é então ressoada como o sonho dos sonhos dos miseráveis (“Sonhei um sonho.”), em que o tempo histórico da luta de classe já havia acabado com a superação da questão social (“Com o tempo já acabado.”), em que a esperança foi ao extremo pela confiança na nova ordem política democrática (“Quando a esperança era alta”.) e principalmente que viver valeria plenamente a pena pelo término da exploração sem limites (“E viver valeria a pena ...”). 

A comuna de Paris é o marco histórico que resgata a idéia grega da legitimidade democrática da ordem política, e a alimenta-se da idéia medieval de liberdade: o direito do vassalo à autonomia. Antagoniza-se com o extermínio de índios nos novos mundos, a escravidão dos negros e a expropriação dos pequenos produtores. Constrói, no entanto uma teoria política que pretendendo libertar a humanidade dos déspotas do absolutismo, consagra a filosofia do direito natural moderno da liberdade, conforme Florence Gauthier[10].

O postulado das ruas de igualdade ganhou a base que tanto necessitava. A Lei é formalmente considerada como uma vontade de todos, não mais de poucos, com o advento da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (França, 26 de agosto de 1789):

Artigo 6º - A Lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de participar, pessoalmente ou através de seus representantes, da sua elaboração. Ela deve ser igual para todos, seja protegendo, seja punindo. Todos os cidadãos, sendo iguais a seus olhos, estão igualmente habilitados a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, conforme suas capacidades e sem outra distinção além daquela virtude e dos seus talentos. (Grifo nosso)

O grito de liberdade do homem perante a opressão, anteriormente conhecido somente pelo direito natural, originalmente ganha por esta Declaração sua idealização na forma de organização positivada. O continente europeu por estes ideais liberais dos revolucionários franceses desenvolve a concepção dos direitos públicos individuais, como bem leciona Georg Jellinek[11].               

Esta organização presente na Declaração faz crescer a importância da lei como motivação para o homem moderno do século XIX positivar as normas e é aliada a idéia do sistema normativo pelo constitucionalismo. Todo o sistema é lastreado por John Locke, na seguinte máxima do Estado Liberal do capitalismo: a propriedade privada não existe sem o trabalho. Émile Noel faz notar que as frases mais importantes do Segundo Tratado do governo civil estão presentes nas duas Declarações dos Direitos Humanos, a americana de 1787 e a francesa de 1789.  John Locke tentando justificar a evolução política da Inglaterra torna o pai do Estado liberal tal como este foi definido no fim do século XVIII[12], tendo em vista, principalmente, por defender a propriedade privada como o mais fundamental dos “direitos naturais”[13].

Assim a liberdade, a palavra que conseguiu unificar a mobilização da burguesia radical e o proletário na Revolução Francesa se tornaria a base da nova ordem, da nova era. A igualdade, perante a Lei, por exemplo, não se tornaria natural a todos os homens passaria a ser avaliada pelo critério da materialização da liberdade: a propriedade. A versão liberal do jusnaturalismo recria uma forma de desigualdade entre os homens[14]. O que tornaria a ser desfeito, a reivindicação perante o Estado, se torna a visão da atuação do Estado perante a opressão. A opressão era vista como a falta de liberdade de ação perante o Estado, muito posteriormente será vista como a falta de ação do Estado pela igualdade nos problemas sociais[15].

Para este fim a organização estatal necessitava de uma nova concepção, foi o reconhecimento da primeira geração de direitos fundamentais: liberdade material e formal contra o Estado opressor, respectivamente, baseadas na garantia dos direitos dos indivíduos por parte do poder (direitos naturais) e no controle do poder por parte dos indivíduos (divisão dos poderes).  O brilho do nascimento do Estado liberal, do Estado de Direito e do Estado constitucional haveria de reluzir pelo mundo “civilizado”, foi este o ideal central de toda a teoria geral do Estado do século XIX: a limitação tanto dos poderes, como das funções do Estado.  Em relação a limitação dos poderes pelo princípio da legalidade é a contraposição ao Estado absoluto (legibus solutus): o Estado de Direito. Os mais importantes mecanismos que identificam o Estado de Direito são: 1) o controle do poder executivo pelo poder legislativo; 2) o controle do poder legislativo por parte de uma corte que estabeleça a constitucionalidade das leis; 3) autonomia relativa dos governos locais frente ao governo central; 4) um poder judiciário independente do poder político[16].

Já a limitação das funções, temos da doutrina liberal, o Estado mínimo em contraponto ao Estado máximo. O Estado constitucional conceptualizado juridicamente na nova leitura da velha legitimação da causa com o efeito do poder (povo para o povo): o constituinte, e tem como propósito a positivação dos direitos naturais, principalmente o mais fundamental dos direitos naturais: a propriedade. 

As limitações dos poderes e das funções era a linha do desenho, que se chamava de Constituição, restava preencher o Estado com o conteúdo político. As relações políticas da sociedade civil com o Estado seriam concebidas em três modalidades: 1) a redução da sociedade ao Estado, que funda filosoficamente o projeto de um socialismo estatal; 2) a redução do Estado à sociedade, que funda o projeto anarquista visando uma supressão total do Estado, em prol de uma sociedade que se supõe poder ser harmoniosa por si mesma; 3) a limitação recíproca da sociedade e do Estado, que funda a convicção liberal de que a consciência perfeita entre as duas é impossível, e de que o desígnio da unidade absoluta se revela, em última instância, inevitavelmente catastrófico[17].

Esta impossibilidade de conjugação entre a sociedade e o Estado é própria da concepção individualista-liberal. O Estado não é algo a ser coletivizado, e a sociedade civil é algo a ser autonomizada deixando que os interesses individuais regulem as relações jurídicas e econômicas. Esta concepção individualista que caracterizaria a filosofia social da idade moderna, a do liberalismo, tem base em três eventos determinantes: a) o contratualismo que define que antes da sociedade civil existe o Estado de natureza, no qual soberanos são os indivíduos singulares livres e iguais, que entrem em acordo entre si para dar vida a um poder comum capaz de cumprir a função de garantir-lhes a vida e a liberdade (bem como a propriedade); b) o nascimento da economia política, de uma análise da sociedade e das relações sociais cujo sujeito é ainda uma vez o indivíduo singular; c) filosofia utilitarista de Bentham a Mil, para qual o único critério capaz de fundar uma ética objetivista é o de partir da consideração de Estados essencialmente individuais[18].

Uma vez que estas instituições francesas defendidas pela Revolução e aceitas ao redor do globo eram estabelecidas o feudalismo era considerado abolido, e nunca mais voltaria a se restabelecer em parte alguma[19].

III. Revolução Industrial: o surgimento do deus ex machina

A modernidade econômica é a transformação da produção pela Revolução Industrial, nasce com criação da sociedade de mercado capitalista. A produção deixa de ser baseada na manufatura, é o fim do fazer com as próprias mãos. A produção separa-se do produtor é fundamentada no intermediário: a máquina. Este será então o revolucionário meio de fazer não o que se necessita, mas o produto que se vende. O chamado meio de produção é primeiramente a máquina de fiar, o tear movida a água, a fiadeira automática, logo depois, o tear a motor[20]. Tais inventos muito mais que progressos científicos, eram progressos econômicos, já que tais máquinas estavam relacionadas muito mais com os problemas do capitalismo do que propriamente da sociedade. Um exemplo claro é que o próprio Wyatt mencionou como principal vantagem do seu invento da máquina de fiar o aumento do lucro já que reduzia o trabalho necessário à fiação em um terço[21].

O caráter revolucionário não foi em relação a tecnologia empregada, que era simples, mas sim que para faturar agora era preciso não só o possuir do fazer pelas mãos, mas principalmente o possuir das máquinas. O modo de produção do artesão chegara ao fim, inicia-se a era da especialização na produção. A intermediação do produtor pelo meio de produção é a institucionalização da nova divisão social do trabalho; o proletário que possui as mãos e o capitalista que possui a máquina. O proletário que tem como mercadoria o trabalho, e o capitalista que tem como lucro a venda da mercadoria produzida pelo trabalho explorado do proletário. Todos os que dependiam da subsistência pela manufatura artesanal passam a fazer parte do proletariado fabril, já que sabiam fazer, mas não possuíam o capital inicial para equipar uma competitiva indústria.

O caráter revolucionário não foi em relação a tecnologia empregada, mas da necessidade de estabelecer o modo de produzir através das máquinas, das máquinas inglesas que não se tornam por coincidência a demanda imediata entre as organizações governamentais e empresarias do mundo inteiro[22].

Esta transformação do modo de produzir das mãos humanas às mãos mecanizadas da Revolução Industrial teve uma conseqüência imediata, o aumento do lucro. Para tanto, a regra do capital é clara se alguém ganha o outro tem que perder, se quem ganha é o capitalista quem perde é o trabalhador, Marx já avisava “quando a máquina passa a manejar a ferramenta, o valor-de-troca de força de trabalho desaparece ao desvanecer seu valor-de-uso. O trabalhador é posto fora do mercado como o papel-moeda retirado da circulação.” [23]

A máquina permite então que houvesse a expansão da produção, produzir mais não significou redução dos lucros, pois mesmo com mais produtos, o lucro era garantido pela razão matemática capitalista simples de que quando maior o número de trabalhadores, menor será o salário e maior será a compensação com a perda do valor do produto. É institucionalização da possibilidade do lucro pelo aumento do número de desempregados, é o início da razão de existir do chamado exército de reserva de desempregados[24].

A perda do trabalhador e a compensação do capital advêm da possibilidade do trabalho da mulher e da criança, já que a máquina dispensa a força muscular, consequentemente diminui o valor da força de trabalho[25]. O aumento ilimitado da jornada de trabalho também é uma forma de perda por parte do trabalhador. A máquina permite o chamado movimento perpétuo à qual a natureza humana passa ser submetida[26]. A velocidade do trabalho da máquina é superior ao ritmo da produção humana, ou seja, a máquina impõe a intensificação do trabalho humano. Trabalhar feito máquina é trabalhar muito mais, mas com certeza não é trabalhar humanamente[27].

Está revolucionado o trabalho, então está revolucionada toda a base da sociedade burguesa fundamentada na produção de mercadorias pelo trabalho, quando o vapor e nova maquinaria transformam a manufatura na grande indústria moderna[28]. A humanidade passa a ser mais do que auto-sustentável, além disso, passa a ter a capacidade da multiplicação rápida, ilimitada de mercadorias e serviços, rompe-se pela primeira vez na história, o que Eric Hobsawm chama de grilhões do poder produtivo da sociedade humana[29], ou seja, a sociedade pode produzir aquilo que necessita, não querendo dizer que assim o fará. A história confirma que a produção capitalista não está necessariamente é interligada com a necessidade humana, mas com a necessidade do lucro.

Esta grande capacidade da indústria em produzir é revolucionária, mas com a hiperexpansão da produção era necessária a propulsão da hiperexpansão do consumo. Veja que a produção capitalista inverte a lógica da vida do homem no que tange a necessidade, pois o que existirá a partir de então será o incentivo desvirtuado da necessidade colocando como humana, como essencial à vida, quando na verdade é humanamente supérflua e vital para o capital em lucrar com a produção. Vital para o capital, pois para haver lucro não bastará mais produzir a mercadoria explorando o trabalhador, e simplesmente vendendo a mercadoria. O limite da ética capitalista ultrapassa as fronteiras até então conhecidas, está revolvido a maneira de ganhar dinheiro pela propulsão da hiperexpansão do consumo em nível mundial.

Para que a hiperprodução não sufocasse o sistema então foi estabelecido o ideal do mercado mundial moderno, a válvula de escape da necessidade vital do capital em vender a produção: o hiperconsumo. Conforme Perry Anderson, para Berman esta necessidade de expansão do mercado mundial capitalista é a própria razão de impulsão de todos os processos sociais da chamada modernização sócio-econômica, sejam descobertas científicas, transformações demográficas, movimentos de massa, e até mesmo a causa da Revolução Industrial e da criação dos Estados Nacionais[30].

O ideal do mercado mundial moderno, ou melhor, dizendo da modernização sócio-econômica do Mundo, não seria ideal e tão pouco é moderno já que se sustenta na manutenção do sistema colonial, unicamente diferenciado pela troca do trabalho escravo pelo chamado trabalho livre assalariado para que houvesse a concreção do hiperconsumo. Marx não cita o Brasil, mas é perfeitamente aplicável ao nosso país a base econômica da criação do mercado mundial, ou seja, a razão da mundialização do capital:

“Por outro lado, o barateamento dos produtos feitos a máquina e a revolução dos meios de transporte e de comunicação servem de armas para a conquista de mercados estrangeiros. Arruinando com seus produtos o artesanato de países estrangeiros, a produção mecanizada transforma necessariamente esses países em campos de produção de suas matérias-primas. Assim, a Índia foi compelida a produzir algodão, lã, cânhamo, juta, anil, etc. para a Grã-Bretanha. Tornando constantemente supérflua uma parte dos trabalhadores, a indústria moderna, nos países em que está radicada, estimula e incita a emigração para países estrangeiros e sua colonização, convertendo-se assim em colônias fornecedoras de matérias-primas para a mãe-pátria, como a Austrália, por exemplo, que produz lã. Cria-se nova divisão internacional do trabalho, adequada aos principais centros da indústria moderna, transformando uma parte do planeta em áreas de produção predominantemente agrícola, destinada á outra parte primordialmente industrial.”[31]      

O mundo fora revolucionado e agora em diante será fundamentado naquilo determinado pelo mercado mundial capitalista. Naquele momento era a capacidade de re-investir as finanças do capital industrial britânico na exploração econômica de outros países, sobretudo na forma de empréstimos para que governos pudessem comprar os bens de capital inglês, principalmente ferrovia e todas as possíveis aplicações da máquina a vapor. O que é exemplificado claramente pela família Rothschild que salta do barco do comércio para se concentrar nas atividades bancárias e nas finanças[32].

O laissez-faire, cuja única lei essencial e imparável é a de comprar mais barato e vender sem restrição no mais caro sem qualquer interferência estatal assumira a posição de religião secular, e será dogmatizada pela trindade: “o trabalho deve encontrar seu preço no mercado (mercado de trabalho); a criação do dinheiro deveria sujeitar-se a um mecanismo automático (padrão-ouro); os bens deveriam ser livres para fluir de país a país, sem empecilhos ou privilégios (livre comércio).”[33]

A lei irrefreável baseada na plena autonomia funcional da propriedade dos meios de produção fundamentou a sociedade na aniquilação da naturalidade do trabalho, pois resolve todas as relações naturais em relações em capital: quem tem dinheiro é livre para ser proprietário, quem não tem dinheiro é livre para ser explorado como se escravo fosse, mas com a denominação liberal de trabalhador livre assalariado. Assim a liberdade, o valor que torna natural o homem não ser escravizado, é desvirtuado para conceber economicamente que o Estado não está legitimado para interceder naquilo que foi a livre opção do trabalhador pela exploração de seu trabalho. Tal desvirtuamento acontece também na liberdade política já que o povo tem a livre opção de escolha censitária do proprietário a possuir todos os privilégios de ser absoluto, inclusive escolhendo a respectiva corte, não mais da nobreza, agora do parlamento.

A característica final será de anular a nacionalidade, já que a grande indústria cria o interesse do Império Inglês no mercado mundial em todas as nações, e uníssono como tal, deve sobrevalesser ao interesse nacional propriamente dito[34]. Tal interesse mundializado será marcado mais uma vez pela hegemonia de um país, agora a Inglaterra, a potência têxtil que fabrica mais lençóis que pode consumir. A vitória inglesa da Revolução Industrial é a do mercado exportador sobre o doméstico, baseado na exploração dos mercados colonial e semicolonial, que serão por muito tempo a base do triunfo dos produtos britânicos[35]. O mundo passa dos deuses e reis para os homens de negócios e as máquinas a vapor, coloca Hobsbawn[36]. Era a Revolução econômica, era a substituição das instituições e relações sociais anteriores e o iniciar de novas relações de poder e de autoridade, era o surgimento do poder e autoridade do deus ex machina.

IV. A moderna realidade do Mundo: a questão social

O mundo real concebido a partir das Revoluções Francesa e Industrial é retratado fielmente não pelos jardins dos casarões dos grandes empresários da indústria têxtil inglesa ou do luxo do parlamento francês, mas sim como uma concentração populacional nunca antes visualizada em um espaço apertadíssimo chamado centro urbano. Sitiada nos arredores das fábricas, imersa em uma pobreza somente mitigada pela caridade institucionalizada pela Lei dos Pobres. O retrato do centro urbano não é personificado por heróis como nos épicos, paixões como nos romances, ou indivíduos dos historicistas oficiais, mas sim através de um novo protagonista, um novo sujeito: a multidão. 

A multidão é o sujeito principal do novo mundo revolucionário, a massa amorfa, ora trabalhadores, ora vagabundos, mas sempre uma multidão de miseráveis[37]. Tão miserável que qualquer turista ou cientista político poderia em um pouco espaço de tempo presenciar a chamada morte social, a morte por fome, de 30 ou mais pessoas[38].

Todos, fossem artistas, políticos, cientistas ou pensadores, à época acostumados com a vida simbolizada com o bucolismo do campo, eram penetrados por esta nova realidade do homem. A realidade da indústria, a realidade da cidade, pelas próprias palavras de Engels que a vivenciou, uma realidade que provocava um mal-estar social gritante: a dissolução de todos os vínculos tradicionais dos costumes, da dissolução da subordinação patriarcal, da própria família, era a desmoralização em massa da classe operária[39].

Este era o novo mundo dentro do universo dos primórdios da Revolução Francesa e das décadas seguintes a Revolução Industrial, tendo como componente principal este novo fenômeno humano da multidão. O novo incompreendido gera medo, e o novo fenômeno social grandioso como a massa de miseráveis nos primeiros momentos gera o pavor novamente pela impotência do entendimento. Voltaram-se todos a metaforizar a massa como os maiores fenômenos naturais até então conhecidos, mas incompreendidos: “freqüentemente associada às idéias de caos, de turbilhão, de ondas, metáforas inspiradas nas forças incontroláveis da natureza.”[40]

A multidão ora apresentada como a compreensão do caos, ou seja, a incompreensão. Ao longo de pouco tempo a incompreensão passou para uma representação estética do universo das cidades, algo ainda muito abstrato, mas já um pouco compreensível e até mesmo possível de comparação com a própria imagem do inferno[41]. A multidão representava um aspecto do capitalismo industrial, que trouxe a tona até então outros dois aspectos: o repensar do tempo, e a indiferença com outros, podendo se chegar a dizer da indiferença do que é o coletivo.

O exercício de observação da novidade da humanidade, a multidão, havia sido capaz de demonstrar que o homem ocidental nunca mais se relacionaria com o tempo da mesma forma, começara a era do dia implacavelmente dividido em 24 horas[42]

Além desta nova forma de relacionamento com o tempo, a multidão foi capaz de tornar inteligível, a nova maneira de relacionamento do homem com o próprio homem nesta nova forma de organização do trabalho na indústria: a competividade selvagem se torna a filosofia da multidão de miseráveis. Selvagem, “pois tem sua vida subordinada às oportunidades do jogo do mercado e aos caprichos do acaso: “hoje boa caça e salário; amanhã, caçada mal-sucedida desemprego; hoje a abundância, amanhã a fome””.[43]

Selvagem, a competividade torna-se a completa expressão da batalha de todos contra todos, a lei das leis da sociedade moderna. Torna espantosa a indiferença com o outro a ponto de Engels escrever: “Parecem esquecidos de que possuem as mesmas qualidades e capacidades humanas e, mais ainda, de que partilham o mesmo interesse na busca da felicidade.”[44] Engels ainda colocaria que o pior era o monopólio do Estado pela burguesia permitir não só a competição dos trabalhadores contra os trabalhadores, mas também mascarar tudo na aparência coerência do agir pela livre escolha, pelo assinar livre de um contrato, do consenso inconstrangido do escravo[45].

A multidão foi imersa não em uma cidade, mas sim em uma parte de Londres e Paris, o chamado centro urbano. Ali, nada fora planejado, tudo era uma imundice, as residências eram verdadeiros depósitos de gente, o chamado East End de Londres não era só o inferno na terra, era a representação metafórica do inferno habitado por um mar de zumbis humanos, que comiam como formigas, capazes de a qualquer momento se organizarem e atacarem em forma de maremoto. Não existe espontaneidade na necessidade de morar em lugares como East End, a moradia nas proximidades das fábricas era obrigatório para quem dependia da instabilidade do mercado na busca pelo emprego ocasional em cada manhã[46].

A compreensão ruma para o entendimento de que a multidão tem vida própria, e deveria ser entendida como sujeito. Atualmente é fácil dizer que a massa tem um comportamento social próprio, mas foi naquele momento que a humanidade iria absorver na compreensão, esta sua nova forma de existência.

Porém antes da compreensão da massa como sujeito coletivo, o incompreendido fenômeno da multidão de miseráveis recebe então a tentativa do tratamento da indiferença em uma pseudocompreensão científica naturalista da justificação da miséria. O panorama do bairro de East End gerou a chamada preconceituosa e geneticista “teoria da degeneração urbana do homem pobre”, ou seja, todo pobre por nascer pobre vai morrer pobre. Tal conclusão supostamente cientifica foi fruto da observação de que a insalubridade para a vida era tão grande que o homem, a mulher e a criança sendo submetida a tal habitat social seriam degenerados nos seus aspectos não só físicos como também morais. Em sua vertente mais avançada, ganhou um novo aspecto a hereditariedade.

A realidade era que o Estado se mostrava completamente omisso em todos os aspectos da relação capital-trabalho, seja na mínima capacidade de exigir condições de trabalho sanitariamente adequadas, o que vai mudar somente com a Lei Fabril de 1864[47].

East End era a localização da degeneração moral e física, mas com veremos, não da impossibilidade de organização para que as mudanças acontecessem.

Organização desorganizada que no primeiro momento teve como reação imediata a destruição das máquinas. Era como se os trabalhadores fabris quisessem quebrar as correntes, mas não percebiam ainda que a opressão não se dava em um relação física do homem com a máquina. Demoraria um pouco a perceberem que o domínio se dava em uma relação abstrata, na relação capital-trabalho, em uma relação estabelecida pela condição de classe[48].

O medo aristocrático assume a feição de pavor quando constata a impotência do Estado em refrear um mar de mobilizações A pergunta clássica seria então representada por um Dr.Guy: “O que pode fazer uma força policial de 8000 ou 9000 homens contra 150 000 indivíduos violentos e rufiões, os quais, numa situação de excitação suficiente, podem ser vistos na Metrópole investindo-se contra a lei e a ordem?”[49]  Tal pergunta é clássica, pois é representativa da acepção da miserabilidade como risco econômico e risco político, mas não como risco da própria humanidade.

A resposta que soou mais alto no imaginário social, não foi para a pergunta movida pelo medo, mas a pergunta movida pelo interesse no enfrentamento da realidade, a pergunta retórica de Friedrich Engels: “Why, then, do the workers strike in such cases, when the uselessness of such measures is so evident?”. Pergunta que fora respondida com vontade de encarar a nova e dura realidade humana. A resposta é exatamente o dizer da questão social.

O silêncio, o não protestar contra as desumanas condições sociais de vida impostas pelo projeto ocidentalizante da burguesia européia da modernidade significaria a admissão da miséria como condição natural de existência de boa parte da humanidade, o reconhecimento do direito da exploração desta miséria dos trabalhadores nos bons momentos, e nos momentos economicamente inviáveis de crise que fosse permitida então a contemplação da morte social:

“Simply because they must protest against every reduction, even if dictated by necessity; because they feel bound to proclaim that they, as human beings, shall not be made to bow to social circumstances, but social conditions ought to yield to them as human beings; because silence on their part would be a recognition of these social conditions, an admission of the right of the bourgeoisie to exploit the workers in good times and let them starve in bad ones.[50]

Estas palavras retratam a razão da organização para o enfrentamento do pauperismo, ambas as perguntas são exemplos claros da primeira tentativa de expor e enfrentar a chamada questão social: de um lado Dr.Guy com o medo da desintegração de seu modo de vida, de outro lado Engels com a vontade de mudar o modo de vida dos trabalhadores.

A mobilização passou então a ser organizada pela Associação Geral dos Trabalhdores de Londres, que estabeleceu a Carta do Povo como o documento fundante do movimento, o qual estabeleceu os seguintes seis pontos principais: (1) sufrágio universal para todo homem maior de idade, sano e que não tenha cometido crime; (2) eleições parlamentares anuais; (3) Pagamento para os membros do parlamento, permitindo assim que o homem pobre pudesse candidatar-se a eleição; Payment of members of Parliament, to enable poor men to stand for election; (4) Votação por cédula para evitar suborn e intimadação por parte da burguesia; (5) Igualdade de distritos eleitorais para assegurar a igualdade de representação; e (6) Abolição da qualificação de proprietário de £300 em terra para candidatar-se a fim de tornar cada eleitor elegível.

A medida que a organização se fortalecia as “mob´s” são equiparadas ao “grand peaur” (grande medo) da Revolução Francesa. Em 1887, no auge da manifestação, a Federação Social Democrática institui o lema: “Não à caridade, sim ao trabalho”. A filantropia privada e a obrigação do Estado em gerar empregos são institucionalizadas na chamada Lei dos Pobres que tinha os seguintes princípios: 1) a obrigação do socorro aos necessitados; 2) a assistência pelo trabalho; 3) a taxa cobrada para o socorro dos pobres (poor tax); 4) a responsabilidade das paróquias pela assistência de socorros e pelo trabalho. Esta necessidade de ajudar, não fora fruto da solidariedade, da preocupação, ou de qualquer outra razão ou sentimento, mas sim a do medo, como bem expressam as palavras d o filantropo Samuel Smith: “(...) se não atacarmos a miséria mais seriamente do que fizermos até agora, aproxima-se a hora em que essa massa humana em plena ebulição sacudirá todo o edifício social... O proletariado pode nos estrangular se não ensinarmos a ele as virtudes que souberam elevar as outras classes da sociedade”[51].

Neste momento fica visível que é o medo da desfiguração de quem aproveita a vida social moderna que faz com que o Estado se coloque de joelhos e peça reconciliação a multidão de miseráveis até então abandonadas no inferno social descrito pelos pensadores, mas criado e mantido pelo Estado Liberal. A resolução do dilema apóretico da questão social é em sua matriz individualista, mas jamais foi na coletiva.   Uma conclusão inafastável, um aforismo vitor huguiano, frase símbolo dos preocupados não com a ambição econômica dos ingleses, ou a política dos franceses, mas com o sofrimento da vida do miserável: “O espetáculo da pobreza produzida pela própria sociedade do trabalho é insuportável.”[52]

V. Conclusão                              

O projeto de modernização inicia-se com a esperança na razão, era esta a luta contra o Antigo Regime, mas Alain Touraine nos diz que a experiência substitui a esperança “quando a sociedade nova se tornou realidade e não mais apenas o inverso daquela que se queria destruir ou ultrapassar.”[53]A promessa de que todos poderiam saber o que era riqueza através da nova ordem política e do progresso econômico dos novos cidadãos do mundo se torna a terrível realidade da desigualdade social que se pôs o homem na modernidade: riqueza individual com base na exploração da pobreza do outro. Assim ao homem moderno cabe a sobrevivência “inserido nesta lógica contraditória do sistema, vagando sempre entre a liberdade econômica e a igualdade social[54]

O mundo moderno teorizou a promessa do término do domínio do poder eclesiástico conjugado com a nobreza. Na realidade transmudou a esfera de controle do poder de Deus para o capital. A modernidade ao conceber o capital a sua razão histórica de existir revolucionou muitos aspectos da vida humana, mas a conseqüência principal foi a massificação da extrema exploração da miséria em escala mundial. Já existia trabalho escravo, existia exploração no feudalismo, existia lucro, mas nada se assemelha a intencional massificação do pauperismo do homem moderno.

A verdadeira forja da modernidade, não é a moeda de dupla face revolucionária industrial-francesa da burguesia, mas é a miséria denunciada pela questão social. Denúncia de Victor Hugo que viveu a miséria de Cosette, e que atuando politicamente disparou: “A questão social perdura. Ela é terrível, mas é simples: é a questão dos que têm e dos que não têm!”

A questão social não surge do nada, não é ahistórica, surge da naturalidade política e econômica em fazer riqueza explorando a pobreza na modernidade capitalista.

Robert Castel explica que a questão social é a categoria que demonstra a aporia fundamental da sociedade capitalista moderna. A questão social evidencia a experiência da sociedade capitalista em conhecer o próprio enigma existencial. A questão social é o dilema da sociedade capitalista moderna. Uma sociedade, como qualquer outra, tem por propósito existencial manter-se coesa, tentando afastar o perigo da desintegração. A coesão social é medida pela capacidade da sociedade de manter-se existindo como coletividade ligada por relações interdependentes dos seus indivíduos, vejamos:

 “The “Social Question” is a fundamental aporia through which a society experiences the enigma of its own cohesion and tries to forestall the dangers of its disintegration. It is a complaint that interrogates, calls into question the capacity of a society (known in political terms as a nation) to exist as a collectivity linked by relations of interdependency. This question, as such, is spoken of explicitly for the first time in the 1830s. It was raised then through an awareness of the living conditions of populations who were both the agents and the victims of the industrial revolution. This is the question of pauperism. This was an essential moment, when the divorc first appeared between a juridic-political order founded on the recognition of the rights of citizens and an economic order that carried with it widespread mystery and demoralization.”[55]

A questão social é uma interrogação a exigir resposta. Para que possamos compreender a sua importância é imprescindível que entendemos que a essência desta pergunta é o próprio fundamento aporético da sociedade capitalista. Aporia demonstrada pelo caráter antinômico indissolúvel da ordem jurídico-política, originária da Revolução Francesa, de reconhecimento de direitos do cidadão e a ordem econômica da desmoralização do ser humano que surgiu com a Revolução Industrial.

A modernidade é a Esfinge que reapresenta a humanidade o seu dilema: da onde nos viemos? O que somos? Para onde vamos? Tal dilema existencial é sintetizado na modernidade pela questão social, não resolve - lo significa não seguir o caminho a frente.

O dilema aporético da sociedade capitalista construída a partir das revoluções modernas indagado pela questão social é o seguinte: o propósito existencial da sociedade capitalista moderna não sendo a promessa de riqueza para todos, nem sendo a liberdade política do indivíduo pobre, não sendo a igualdade social do coletivo, tão pouco a solidariedade integradora, é a naturalização da realidade da fome dos miseráveis?

O caráter aporético da indissolúvel antinomia da relação capital-trabalho é de que a sociedade capitalista moderna depende da existência da questão social. Depende da existência da miséria para que seres humanos sejam explorados em ligações interdependentes em cadeia global pelo grilhão do único interesse existencial da sociedade capitalista moderna: o lucro. Isto é a modernidade.

Não resolvemos a questão social, não resolvemos o dilema existencial que a realidade modernidade impôs a sociedade humana, então a modernidade ainda não acabou. A questão social é re-naturalizada em qualquer conceito de pós-modernidade que não enfrente tal dilema.

A maturidade do tempo histórico é a maturidade do tempo do homem, são tempos diferentes, mas são tempos a que não se podem conceber princípios diferentes.  A resolução de um dilema existencial é a conclusão da maturidade. Apressar-se sonhando com o tempo futuro, sem a resolução do tempo presente, é apenas imaturamente brincar com a imaginação.

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[1] BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. RJ:Jorge Zahar, 1997. P.344.

[2] TOURAINE, Alain. The idea of revolution. In: FEATHERSTONE, Mike (org.).Global culture: nationalism, globalization, and modernity : a Theory, culture & society special issue. London:Sage Publication. p.121.

[3] “É essa razão por que o processo global foi designado com o nome de europeização, ocidentalização ou, enfim, com o termo mais abrangente e menos etnocêntrico de Modernização.” BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução de João Ferreira, Carmem C. Varriale e outros. Brasília:Editora Universidade de Brasília, 1986. p.768.

[4] GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Tradução de Raul Fiker.SP:Ed.Unesp, 1991. p.173.

[5] HOBSBAWM, Eric J..A Era das Revoluções. Tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira, e Marcos Penchel. 9 ed.RJ: Paz e Terra, 1977.

[6] DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. 9 ª ed. RJ: LTC, 1963, p.258.

[7] SANTOS, Boaventura de Souza. Modernidade, identidade e a cultura de fronteira. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5(1-2): 31-52,1993 (editado em nov. 1994).

[8] “No caso da burguesia, o liberalismo, produzido pelos filósofos iluministas, seria o projeto, e a instauração da sociedade burguesa e capitalista, a realização.” MODESTO, Florenzano. As revoluções burguesas.8 ed. SP:Brasiliense, 1981. p.8.

[9]  TOURAINE, Alain. Uma crítica da modernidade.Petrópolis:Vozes, 2002. p.32.

[10] GAUTHIER, Florence. As declarações do direito natural 1789-1793. França Revolucionária. Org. Michel Vovelle. Tradução de Denise Bottman. Editora brasilense. p.378.

[11] JELLINEK, Georg. The Declaration of the rights of man and of citizens. A contribution to modern constitucional history. New York: Henry holt and Company, 1901. p.2-3.

[12] CHÂTELET, François. Uma história da razão: entrevistas com Émile Noel. Tradução de Lucy Magalhães. RJ: Jorge Zahar Editor, 1994. p.82.

[13] HOBSBAWM, Eric J..A Era das Revoluções. Tradução de  Maria Tereza Lopes Teixeira, e Marcos Penchel. 9 ed.RJ: Paz e Terra, 1977. p.258.

 

[14] COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre cidadania e modernidade. Revista Praia Vermelha, UFRJ – PPGESS – Ano I Volume I, Rio de Janeiro, 1997.

[15] VILE, M.J.C. Constitutionalism and the separation of powers. 2ª ed. Indianapolis: Liberty fund, 1998. p.290.

[16] BOBBIO. Norberto. Liberalismo y democracia. Tradução de José F.Fernández Santillán. México: 1989, p. 16-17.

[17] BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da filosofia do direito. Tradução de Pedro Henriques. Lisboa: Instituto Piaget. p.148.

[18] BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. SP: Paz e Terra, 2000. p.34 e 35.

[19] HOBSBAWM, Eric J..A Era das Revoluções. Tradução de  Maria Tereza Lopes Teixeira, e Marcos Penchel. 9 ed.RJ: Paz e Terra, 1977. p.108.

[20] HOBSBAWM, Eric J..A Era das Revoluções. Tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira, e Marcos Penchel. 9 ed.RJ: Paz e Terra, 1977. p.52.

[21] DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. 9 ª ed. RJ: LTC, 1963, p.272 e 278.

[22] ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Tradução de Vera Ribeiro. RJ: Contraponto, 1996. p.165.

[23] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I, Karl Marx. Tradução de Reginaldo Sant´Anna. 25ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2008. p.491.

[24] “From this it is clear that English manufacture must have, at all times save the brief periods of highest prosperity, an unemployed reserve army of workers, in order to be able to produce the masses of goods required by the market in the liveliest months.” ENGELS, Friedrich. The Condition of the Working Class in England. Moscou: Panther Edition, 1969. Texto disponibilizado pelo Instituto de Marxismo-Leninismo. Disponível em: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1845/condition-working-class/ Acessado em:13.12.11.

[25] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I, Karl Marx. Tradução de Reginaldo Sant´Anna. 25ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2008. p.451 e 452.

[26] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I, Karl Marx. Tradução de Reginaldo Sant´Anna. 25ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2008. p.460 e 461.

[27] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I, Karl Marx. Tradução de Reginaldo Sant´Anna. 25ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2008. p.467.

[28] ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. In: Marx Engels Obras Escolhidas. Tomo III. Lisboa: Ed.Avante, 1985.p.136.

[29] HOBSBAWM, Eric J..A Era das Revoluções. Tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira, e Marcos Penchel. 9 ed.RJ: Paz e Terra, 1977. p.44.

[30]  ANDERSON, Perry. Modernidade e Revolução. Tradução de Maria Lúcia Montes. New Left Review, 144, Março-Abril 1984. Disponível: http://www.iiep.org.br/livros/modernidade_e_revolucao.pdf . Acessado em 13 de dezembro de 2.011.
[31] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I, Karl Marx. Tradução de Reginaldo Sant´Anna. 25ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2008. p.513-514.
[32] ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Tradução de Vera Ribeiro. RJ: Contraponto, 1996. p.172.[33] POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. RJ:Campus, 2000.p12.

[34] ENGELS, Friedrich. MARX, Karl. Feuerbach. Oposições das concepções materialista e idealista. In: Marx Engels Obras Escolhidas. Tomo I. Lisboa: Ed.Avante, 1985.p.53 e 54.

[35] HOBSBAWM, Eric J..A Era das Revoluções. Tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira, e Marcos Penchel. 9 ed.RJ: Paz e Terra, 1977. p.51.

[36] HOBSBAWM, Eric J..A Era das Revoluções. Tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira, e Marcos Penchel. 9 ed.RJ: Paz e Terra, 1977. p.69.

[37] BRESCIANI, Maria Stella M.. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. SP:Brasiliense, 1982. p.8.

[38] ENGELS, Friedrich. The Condition of the Working Class in England. Moscou: Panther Edition, 1969. Texto disponibilizado pelo Instituto de Marxismo-Leninismo. Disponível em: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1845/condition-working-class/ Acessado em:13.12.11.

[39] ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. In: Marx Engels Obras Escolhidas. Tomo III. Lisboa: Ed.Avante, 1985.p.138.

[40] BRESCIANI, Maria Stella M.. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. SP:Brasiliense, 1982. p.10.

[41] BRESCIANI, Maria Stella M.. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. SP:Brasiliense, 1982. p.16.

[42] BRESCIANI, Maria Stella M.. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. SP:Brasiliense, 1982. p.17.

[43] BRESCIANI, Maria Stella M.. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. SP:Brasiliense, 1982. p.58.

[44] BRESCIANI, Maria Stella M.. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. SP:Brasiliense, 1982. p.24.

[45] ENGELS, Friedrich. The Condition of the Working Class in England. Moscou: Panther Edition, 1969. Texto disponibilizado pelo Instituto de Marxismo-Leninismo. Disponível em: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1845/condition-working-class/ Acessado em:13.12.11.

[46] BRESCIANI, Maria Stella M.. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. SP:Brasiliense, 1982. p.37.

[47] “Graças à lei fabril de 1864, mais de 200 estabelecimentos de cerâmica foram caiados e limpos, depois de uma abstinência de 20 anos, ou total, em relação a operações desa natureza. Neles trabalham 27.878 empregados que, até então, respiravam, durante jornadas prologadas e muitas vezes durante o trabalho norturno, uma atmosfera pestilencial que tornava insalubre e mortífera uma atividade relativamente inofensiva.” MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I, Karl Marx. Tradução de Reginaldo Sant´Anna. 25ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2008. p.546

[48] “Era mister tempo e experiência para o trabalhador aprender a distinguir a maquinaria de sua aplicação capitalista e atacar não os meios materiais de produção, mas a forma social em que são explorados.” MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I, Karl Marx. Tradução de Reginaldo Sant´Anna. 25ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2008. p.489.

[49] BRESCIANI, Maria Stella M.. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. SP:Brasiliense, 1982. p.39.

[50] ENGELS, Friedrich. The Condition of the Working Class in England. Moscou: Panther Edition, 1969. Texto disponibilizado pelo Instituto de Marxismo-Leninismo. Disponível em: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1845/condition-working-class/ Acessado em:13.12.11.

[51] BRESCIANI, Maria Stella M.. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. SP:Brasiliense, 1982. p.39.

[52]
BRESCIANI, Maria Stella M.. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. SP:Brasiliense, 1982. p.108.

[53] TOURAINE, Alain. Uma crítica da modernidade.Petrópolis:Vozes, 2002. p.187.

[54] SCHONS, S.. Questão Social hoje : A resistência um elemento Em Construção (The Social Question Today: The Resistence As Em Element In Construction). Emancipação, Ponta Grossa, 7, apr. 2009. Disponível em: http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/96/94. Acesso em: 18 Dec. 2011.

[55]
CASTEL, Robert. From manual workers to wage laborers: transformation of the social question. New Jersey: Transaction Publishers, 2003. p.xx 


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