556 - Laicismo


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


I – Laicismo e ideologia

O laicismo já não é aquele elemento de neutralidade que abre espaços de liberdade a todos. Começa a transformar-se em uma ideologia que se impõe por meio da política e não concede espaço público à visão da religião, que corre o risco de converter-se em algo puramente privado e, no fundo, mutilado.

Entende-se por Estado confessional aquele que se vincula a determinado credo religioso e compromete-se a transportar para a vida civil as exigências sociais e políticas tal como são defendidas pela hierarquia eclesiástica correspondente.

É emblemática a imagem da coroação de Dom Pedro II, retratada por Araújo Porto Alegre em seu famoso quadro (Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro). Aliás, a Constituição do Império (1824) subscrevia o caráter confessional de nosso Estado. 

Contudo, hoje, o laicismo, propositadamente, utiliza a expressão “confessional” de forma genérica, sobretudo quando os poderes públicos tomam medidas com conteúdo ético-material de raiz ideológica ou religiosa. Como se fosse possível que qualquer ação estatal pudesse, por sua neutralidade, não incorporar qualquer matiz desta natureza. É algo dificilmente imaginável.

O laicismo, portador de uma agressividade ideológica secular preocupante, vai mais além quando rejeita a singela possibilidade de as confissões serem vetores na construção da vida social. Defende não ser suficiente a estrita separação entre Estado e religião, mas o completo isolamento da religião do próprio âmbito público da sociedade, acantonando-a nos lares (quiçá, no banheiro), já que o cidadão só teria direito a exercer um credo de natureza intimista. Afinal, “é incabível impor as próprias convicções aos demais”. 

A assertiva é curiosa. Quando se fala de “convicção”, imediatamente, pensa-se naqueles que professam alguma confissão religiosa. Então, os incrédulos seriam cidadãos sem convicções. Como conseqüência, justamente por não estarem convencidos de nada, sua opinião deveria ser exclusivamente decisiva no momento de se estabelecer um consenso democrático a respeito de uma tema de interesse geral. Trata-se de um verdadeiro paradoxo. 

Certamente, não faltará um constante patrulhamento em todo cidadão que se sinta convencido além da conta e, então, sua opinião será recebida como um mero juízo lastreado nuns princípios religiosos, dos quais estaria prisioneiro por neles crer piamente. Assim, a deliberada intenção de converter os cidadãos que acreditam em uma fé em uma classe social de categoria secundária não deixaria de ser uma piada, porquanto proveniente de suas presumidas e impotentes vítimas.  

O laicismo, ao relegar à nulidade o papel do religioso na sociedade, avoca a si o vácuo deixado e transforma-se na única doutrina confessional, obrigatória a todo o cidadão, à semelhança dos partidos únicos dos regimes comunistas. É feita uma blindagem, de natureza fundamentalista, a qualquer outra opção. A dimensão pública do religioso é retirada de qualquer debate plural. 

Pelo contrário, a laicidade consiste em ter em conta, no âmbito público, as várias crenças religiosas dos cidadãos, de maneira que se dá o devido destaque ao exercício do direito individual à liberdade religiosa, com absoluta separação entre Estado e religião. Por conseguinte, as confissões religiosas deixam de ser co-autoras no teatro da vida política e econômica e tornam-se meios eficazes para que os cidadãos possam viver privada e publicamente suas convicções. 

Precisamos de uma sociedade livre, democrática e pluralista, na qual as pessoas tenham a possibilidade de aderir livremente às verdades naturais, que são plenamente compatíveis com a laicidade de um Estado, gerando um todo harmônico. A indisfarçável proposta do laicismo, expressão de um certo racionalismo, redundará, mais cedo ou mais tarde, no relativismo, a ante-sala dos totalitarismos do século XX, pródigos na destruição de gerações e de sociedades inteiras. 

II - Laicismo x laicidade 

No discurso pronunciado na basílica de São João de Latrão, em 2009, o presidente francês Nicolas Sarkozy marcou uma nova interpretação nas relações entre Estado e Igreja, que foi denominada de “laicidade positiva” pelos grandes jornais europeus, onde os países têm olhado com reservas suas raízes incontroversamente cristãs. Em seu discurso, Sarkozy afirmou que a França só pode ser beneficiada a partir de um reconhecimento efetivo do papel das correntes religiosas na vida pública e de sua colaboração para iluminar os problemas éticos.

Completamente diferente desta “laicidade positiva” é o laicismo, ideologia que, hoje e em todo o mundo ocidental, pretende se impor como a única admissível. Tem trânsito livre na grande imprensa e na mídia mais poderosa, que é seu porta-voz e, ao mesmo tempo, é uma espécie de “tribunal da inquisição laica”, que fustiga, ridiculariza e “excomunga” todos os que discordam desse pensamento.

O laicismo consiste em uma ideologia que leva gradualmente, de forma mais ou menos consciente, à restrição da liberdade religiosa, até promover o desprezo ou a ignorância de tudo o que seja religioso, relegando a fé à esfera do privado e opondo-se de qualquer maneira à sua expressão pública. Um reto conceito de liberdade religiosa não é compatível com essa ideologia, que às vezes se apresenta como o único magistério da racionalidade.

Um Estado que queira respeitar as convicções dos cidadãos laicistas, pela mesma razão, se quer praticar de forma honesta o respeito à liberdade de pensamento, é obrigado a criar um espaço mínimo para as práticas públicas e convicções dos cidadãos que crêem. Caso contrário, imporia um dogma laico.

Bem ao contrário do laicismo que toma corpo em seu país, cujo antecessor no cargo foi seu maior ícone (ao ter proibido a ostentação de qualquer símbolo religioso em locais públicos), o presidente francês ainda ressaltou que ninguém contesta que o regime francês da laicidade é, hoje, uma garantia de liberdade.

Liberdade de crer ou de não crer, liberdade de praticar uma religião e liberdade de mudar, liberdade de não ser ferido em sua consciência por práticas ostensivas, liberdade para os pais de dar aos filhos uma educação conforme suas crenças, liberdade de não ser discriminado pelo Estado em função de sua crença.

Sarkozy também lembrou em seu discurso que, agora, “a laicidade apresenta-se como uma necessidade e uma oportunidade. Não deveria ser a negação do passado e não tem o poder de tirar a França de suas raízes cristãs. Tentou fazê-lo. Não deveria.”

Considero que uma nação que ignora a herança ética, espiritual, religiosa de sua história comete um crime contra a sua cultura, contra o conjunto de sua história, de patrimônio, de arte e de tradições populares que impregna a tão profunda maneira de viver e pensar. Arrancar a raiz cultural e das tradições religiosas é perder o sentido, é debilitar o fundamento da identidade nacional e secar ainda mais as relações sociais que tanta necessidade têm de símbolos de memória.

O presidente francês salientou que a França tem interesse em que exista também uma reflexão moral inspirada em convicções religiosas. Creio que a moral laica corre o risco de esgotar-se ou de transformar-se em fanatismo, quando não está respaldada por uma esperança que leve à aspiração do infinito. Lembro também que uma moral desprovida de laços com a transcendência está mais exposta às contingências históricas e, finalmente, a ceder às tentações totalitárias.

Sarkozy seguiu dizendo que “em uma república laica, um político como eu não decide em função de considerações religiosas. Mas importa que sua reflexão e sua consciência sejam iluminadas especialmente por conselhos que façam referência às normas e convicções livres das contingências imediatas. Todas as inteligências, todas as espiritualidades que existem em uma nação devem tomar parte disto”. 

A laicidade preserva a importância da aspiração espiritual. É preciso evitar qualquer rasgo de intolerância, sobretudo o de matiz escamoteado, contra aqueles que creem, pois quem crê, espera. Há o interesse geral que haja muitos homens e mulheres com esperança.

O relativismo, o consumismo e o hedonismo não têm feito mais feliz o homem certamente, no contexto de um processo de alienação materialista que se iniciou desde o Iluminismo, a partir do qual a Europa e, depois, o mundo ocidental, depositaram suas mais nobres esperanças nas ideologias e no progresso técnico e econômico exclusivamente.

Contudo, nenhuma destas perspectivas consegue afastar o homem da necessidade profunda de encontrar o sentido de sua existência e, paradoxalmente, trazem mais à tona a pertinência de tal questão.

Ao fim do discurso, Sarkozy afirmou que “neste mundo paradoxal, obcecado pelo conforto material, mas ao mesmo tempo cada vez mais desejoso de sentido e de identidade, a França necessita de católicos convencidos que não temam afirmar o que são e o que creem”.  

III – Laicismo e razão 

Na distinção entre laicidade e laicismo, este último, dentre suas falácias, pretende silenciar aqueles que creem, sobretudo os cristãos, ao declarar que eles querem impor ao Estado posições, soluções ou proibições que seriam exclusivamente baseadas na fé, algo inimaginável num Estado laico, ao qual seria vedada a adoção de soluções “religiosas”, mas somente “racionais”. Seus defensores não hesitam em contrapor, como incompatíveis, a razão e a fé. 

O argumento é ardiloso, pois mesmo que os que creem, dando consequência ao seu dever de consciência, defendam posições em matérias humanas e sociais lastreadas em suas convicções religiosas, um Estado democrático deveria respeitar essas posições, na medida em que também confere apreço aos posicionamentos dos cidadãos que patrocinam idéias marxistas ou posições hedonistas. 

Nessas ocasiões, a máquina laicista, bem azeitada e atenta, surge para agredir a pessoa do crente e seus argumentos, quando não tentará silenciá-lo e proceder à sua exclusão, com a claque da mídia, algo semelhante ao patrulhamento ideológico que a esquerda sempre prezou contra seus adversos liberais, sobretudo no campo da economia. 

As falácias não param por aí. Em assuntos de natureza social e política, os cristãos defendem, em quase a totalidade dos casos, posições que decorrem não diretamente da religião, mas da razão. Por exemplo, sempre que se combate a favor da vida, do sentido humano da sexualidade, do direito à liberdade de ensino ou da justiça social, a argumentação está baseada na antropologia filosófica e na ética natural, o que seria suficiente para lhe conferir o condão do respeito intelectual. 

Mas não. Imediatamente, o patrulhamento laicista acusará seu defensor de tentar impor “ideias medievais”, bem contrárias ao caráter laico do estado e à racionalidade da ciência. Inútil lembrar que a antropologia e a ética natural alcançaram verdades naturais e aprofundamentos teóricos essenciais desde há muito entre os pagãos, sem qualquer conotação ou dependência religiosa. 

Primeiro, com Sócrates e o seu discípulo Platão; depois, com Aristóteles (Ética a Nicômaco, Grande Ética) e os filósofos estóicos (Epiteto) até Cícero, com seu tratado moral de inspiração estóica, intitulado “De officiis” (Dos deveres), e Sêneca com suas Cartas a Lucílio. Ao que se sabe, nenhum deles pretendia ser teólogo. Não questionavam o que Deus queria ou mandava para o homem, mas onde residia a verdadeira felicidade humana.  

Toda a ética natural consistiu num esforço da razão para achar as respostas certas à indagação elementar sobre o verdadeiro bem e a verdadeira felicidade do homem. Esse esforço acumulou séculos de sabedoria e atingiu os mais altos cumes do pensamento humano, que hoje a maioria sequer conhece. 

O patrulhamento laicista ignora, por não saber mesmo, a história e os tesouros do pensamento ético. Contudo, os laicistas que são versados nessas preciosidades, na hora de defender suas posições, abandonam a cerrada defesa da “razão contra o obscurantismo religioso” e passam a desprezar essa mesma “razão”. 

Antes, invocavam a razão contra a religião. Hoje, contra a pretensão do emprego da razão para o conhecimento da verdade, recorrem ao agnosticismo, o moderno “dogma de fé” filosófico que afirma ser impossível conhecer a verdade e, logo, não se poderia mais falar em “verdade”... 

Paradoxalmente, a Encíclica “Fides et ratio” efetuou o resgate da razão, saindo em defesa desta contra o agnosticismo atual: “A razão (em decorrência das filosofias imanentistas e, por isso, agnósticas) curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna (...) em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos. Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças de um ceticismo geral”. 

É um retrato perfeito do nosso tempo. Suprimida a capacidade de a razão atingir verdades, negada, portanto, a existência de verdades objetivas e universais, o que nos resta, que não se resuma à vontade e ao desejo? 

Todavia, os perigos dessa tendência de fazer da liberdade a fonte da verdade são ilimitados. Se somente for aceito como verdadeiro o que livremente escolhe a “maioria”, esse consenso será “a verdade” que todos deverão acatar, o qual, no futuro, poderá mudar, segundo as contingências do momento.  

Não restará nenhum referencial objetivo, absoluto e permanente da verdade e do bem, fora do interesse, dos apetites e das paixões, quando todos se põem de acordo e chegam ao “consenso” sobre alguma matéria. Bem-vindos à ditadura do relativismo, capitaneada pelos mais fortes em prejuízo dos mais fracos. 

IV - Crucificar os crucifixos? 

A onda de despejo dos crucifixos de paredes públicas ou de pescoços anônimos que os ostentam voltou com força. Aqui, no Brasil, o Poder Judiciário gaúcho, talvez por falta de processos para julgamento, resolveu colocar na pauta administrativa do dia a retirada dos crucifixos de suas dependências, sob o pretexto da laicidade do Estado, tendo sido votada favoravelmente. 

Na Inglaterra, duas funcionárias públicas foram despedidas “por justa causa”, em razão de se recusarem a remover o crucifixo durante a jornada de trabalho. O governo britânico prepara-se para dar ratificar sua decisão junto ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. A Igreja Anglicana já protestou, dizendo que a atitude do governo é um ataque à fé cristã e uma tentativa de despachar a religião para as margens da sociedade contemporânea. Uma espécie de pena de ostracismo institucional. 

Na raiz dos fatos, há um ponto em comum. Não é a laicidade, essa concepção política que reconhece a autonomia estatal em relação a qualquer religião e que defende, como um dado essencial, o respeito pela liberdade religiosa, privada e pública, dos cidadãos.  

Mas o laicismo, essa versão deturpada da laicidade, que, como uma espécie de religião secular, avoca a exclusividade da pretensão de verdade de seu discurso racional, sob a capa de uma aparente neutralidade. E, vez ou outra, o discurso, por assim dizer, lembra mais um faniquito anticlerical... 

O laicismo cada vez assume uma postura ideológica, pois defende uma visão de mundo totalizante, a qual deve ser a única digna de consideração pelos diversos campos da vida humana: política, artes, legislação, ensino, pensamento e outros. Pautado por sua cartilha dogmática, o laicismo, no mesmo “padrão” de respeito nazista, abomina as ideias que ousem divergir daquela cartilha de partido único.  

E, como se não bastasse, apela, não raro, à militância composta por pessoas em posições de poder estratégicas para denegrir a imagem daqueles que pensem em público ao contrário ou fazer impor propostas que, no dizer do saudoso professor e ex-ministro do STF, Eros Grau, consistem em verdadeiros panfletos anticlericais: são ações judiciais, medidas legislativas, metodologias pedagógicas e diretrizes culturais travestidas com uma roupagem falsamente neutra, mas que são portadoras de princípios de manual de gaveta. 

Se o indivíduo é contrário ao aborto, à pena de morte ou à eutanásia, a máquina do laicismo vai dizer que isso é uma postura religiosa e que não se coaduna com um “Estado laico”, expressão que se transformou numa espécie de emplastro Brás Cubas da literatura machadiana: serve para tudo... 

No caso dos crucifixos nas repartições públicas, o argumento é mais sofisticado: o Estado não tem uma religião oficial e, logo, o lugar de crucifixo é na igreja mais próxima ou no lar. Mas uma penada burocrática não pode revogar, aqui no Brasil, cujo primeiro nome foi Terra de Santa Cruz e cuja constituição foi promulgada sob a proteção divina, tradições históricas de nossa sociedade, sob pena de o Estado ir além de suas funções e chamar para si um papel de babá totalitária de todos nós. 

No caso da ostentação pública de crucifixo pelos cidadãos, o argumento do laicismo é mais perigoso, porque além de afetar a liberdade religiosa, atinge muito mais diretamente a liberdade de expressão da pessoa em professar publicamente sua crença sem correr o risco de sofrer alguma represália estatal. 

Nesse ponto, o laicismo é o avanço do retrocesso civilizacional: o mundo ocidental, esse território mental e espiritual, sobrepujou o restante, em matéria religiosa, justamente porque, depois de séculos de conflitos religiosos sangrentos, compreendeu os benefícios de dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. 

Já o Islã, por exemplo, insiste até hoje em punir com severidade exemplar qualquer desvio à fé oficial. Aliás, na Nigéria ou no Sudão, a proposta do laicismo seria bem-vinda, pois pouparia muitas vidas: por ali, crucifixo é uma exibição blasfema que acarreta pena de morte... 

Na parede de um gabinete de desembargador ou ornamentando um pescoço desconhecido, o crucifixo, a despeito do laicismo, simboliza um julgamento injusto e um patrimônio da civilização, digno de respeito e de consideração. 

Como a deusa Têmis, a titã grega que ostenta a condição de deusa da justiça que, junto com meu crucifixo de madeira ladeado pelos quadros da faculdade de direito do Largo de São Francisco e da flâmula do São Paulo Futebol Clube, outros dois patrimônios muito particulares, adornam meu gabinete de trabalho. Com respeito à divergência, é o que penso. 

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br).

 

 


O Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais do TJSP