559 - Cidadania


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


I - Cidadania e paideia

Todo homem é um filósofo, como dizia Gramsci, ainda que falte para muitos a estrutura que a filosofia oferece para encontrar as respostas que todo homem procura, individualmente e em sociedade, já que todo homem é dado a conhecer, naturalmente, a realidade que o cerca. No âmbito social, o dado histórico aponta que não há sociedade sem direito, nem direito sem sociedade.

A existência de normas jurídicas, mais do que fundada numa obra da consciente vontade dos homens, resulta de uma necessidade natural: a vida gregária gera naturalmente uma ordem social, fato que pode ser observado mesmo nas sociedades de malfeitores. E o homem, como ser racional e transcendente, precisa de uma ordem, porém, não de uma ordem instintiva, como a de uma colmeia, mas de uma ordem justa.

Logo, quando se confere um atributo dessa envergadura à ordem social, necessariamente, por se tratar de uma realidade do mundo do espírito, o direito, instrumento social para a concretização da justiça, é um ser que depende sempre de um elemento valorativo que o sustente, a ser escolhido pelos homens que compõem a própria sociedade.

Todo homem é um filósofo, como dizia Gramsci, ainda que falte para muitos a estrutura que a filosofia oferece para encontrar as respostas que todo homem procura, individualmente e em sociedade, já que todo homem é dado a conhecer, naturalmente, a realidade que o cerca. No âmbito social, o dado histórico aponta que não há sociedade sem direito, nem direito sem sociedade.A existência de normas jurídicas, mais do que fundada numa obra da consciente vontade dos homens, resulta de uma necessidade natural: a vida gregária gera naturalmente uma ordem social, fato que pode ser observado mesmo nas sociedades de malfeitores. E o homem, como ser racional e transcendente, precisa de uma ordem, porém, não de uma ordem instintiva, como a de uma colmeia, mas de uma ordem justa.Logo, quando se confere um atributo dessa envergadura à ordem social, necessariamente, por se tratar de uma realidade do mundo do espírito, o direito, instrumento social para a concretização da justiça, é um ser que depende sempre de um elemento valorativo que o sustente, a ser escolhido pelos homens que compõem a própria sociedade.

A par disso, o homem é um animal político e, como consequência, requer uma educação consciente que permita a formação da pessoa para a vida racional em sociedade, ou seja, uma educação no sentido mais elevado da palavra paideia, cuja origem grega remonta justamente à busca do sentido de uma reta teoria da educação e do agir do homem em sociedade.

Platão já definia paideia como a essência de toda a verdadeira educação, que dá ao homem o desejo e a ânsia de se tornar um cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como fundamento (cit. in Jaeger, 1995: 147). Percebe-se que este processo de formação geral, que tem por tarefa construir o homem como homem e como cidadão, tem a justiça como apoio valorativo, a mesma justiça que também sustenta a vida em sociedade e o direito.

Na polis grega (e, depois, na civitas latina), a noção de cidadão englobava o exercício de todos os direitos e a assunção de todas as responsabilidades na condução dos destinos da sociedade por aqueles que possuíam o status citadino. Uma participação dessa envergadura era explicada pela forma direta pela qual os gregos exerciam a democracia: uma atuação permanente e imediata de todos os cidadãos nas decisões que afetassem a vida na polis, o horizonte grego de realização do homem como um todo.

Baseado no conceito de paideia, pode-se notar uma evolução no sentido de participação mais ativa do cidadão na vida social. Pitágoras (570-490 a.C.) entendia que o ideal para o homem seria a vida meramente contemplativa, mais do que a vida ativa: a busca de um horizonte de sentido e de contemplação (theorein) seria mais nobre para o espírito humano do que agir ou simplesmente viver (praxein). Logo, se fosse hoje, seria melhor assistir a um jogo de tênis do Federer a ser o próprio jogador. Para quem é tenista como eu, tenho lá minhas dúvidas...

Platão (427-347 a.C.) forma seus discípulos como agentes de mudança social, sem deixar de reconhecer a vida contemplativa como o ideal do homem. Sintetiza o ideal do governante-filósofo e de uma sociedade formada por cidadãos livres e virtuosos, na qual o agir moral seria fruto da consciência interior e não da mera sujeição coercitiva às leis.

Aristóteles (384-322 a.C.), por sua vez, deixa a teoria e vai à prática. Sistematiza uma visão global da realidade, a partir de uma dimensão metafísica, antropológica e ética fundada empiricamente no conhecimento do mundo e da natureza humana. Como mestre de Alexandre Magno (356-323 a.C.), passa a forjar um ideal de sociedade, ao lhe ensinar os princípios filosóficos que, por meio da espada conquistadora de mundos do aprendiz, forjará os alicerces da civilização helênica.

Hoje, em que o padrão democrático é o representativo, no qual alguns se dedicam à atividade política e outros, digamos, mais profissionalmente ainda, o exercício da cidadania não pode se resumir ao aperto de uns botões da urna eletrônica no dia da eleição a cada quatro anos.

Exige de cada um de nós uma participação efetiva e constante, pelos mais diversos e cada vez mais acessíveis meios de comunicação, nas decisões sobre os destinos da cidade, a fim de se diferenciar o justo e o injusto, o certo e o errado na condução da coisa pública, de maneira a influenciar efetivamente nas políticas públicas. Esquecer o ideal da paideia grega é prova de cegueira ou de covardia. Ou de uma triste combinação das duas.

II - Cidadania: família

Nos dias atuais, tenho a impressão de que nada adiantam os louváveis esforços do sistema educacional em criar uma maior consciência acerca dos assuntos públicos se permanece o descuido da educação moral das crianças e dos jovens. Educar a dimensão cidadã é algo necessário, mas está destinado ao fracasso se o nível da qualidade moral das pessoas beira o chão.

Ser uma pessoa virtuosa é um exercício de cidadania: o problema reside nos meios, tão antigo quanto a própria reflexão filosófica. Educar na virtude, uma ação que é mediada pela personalidade e pela liberdade do aprendiz, não é o mesmo que adestrar um soldado: este ouve e presta atenção enquanto aquele ouve e pode virar as costas...

Os gregos transformaram a educação na própria razão de ser de seu povo. A Academia e o Liceu foram o modelo de uma escola autêntica: o assenhoramento da universalidade do conhecimento da época pelos mestres da filosofia levou o grego aristocrata a frequentar escolas naturalmente. Aliás, em razão do cultivo do saber e da busca da sabedoria, os gregos só poderiam valorizar altamente a educação.

Depois da Grécia, a educação passou a ser vista como fonte de fortalecimento dos povos. Floresceu e democratizou-se com o espírito prático dos romanos até a queda do império ocidental, quando a Igreja Católica assumiu sua função de educadora ao civilizar os povos bárbaros e, alguns séculos depois, fomentou a criação da universidade medieval, legado precioso que perdura até hoje e um dos símbolos da civilização ocidental.

Com o advento do Estado moderno, cada nação tratou de por seus olhos na formação de suas gerações pelo meio da educação, desde a mais elementar até a mais sofisticada, restando a impressão de que o homem estaria no vestibular da conquista do universo, cuja aprovação dependeria do domínio de suas próprias contradições e tendências menos dignas de uma natureza debilitada.

Na atual realidade, creio que a ação pedagógica deve ser desenvolvida em alguns âmbitos fundamentais, sobretudo na educação do caráter moral do indivíduo, uma de suas funções primordiais.

O primeiro, principal e irrenunciável nível é a família. O intenso componente afetivo da relação familiar estrutura com uma força irrepetível e desde o nascimento o caráter de uma pessoa. Aquilo que se aprende ou não se aprende no lar marca indelevelmente a personalidade.

E aqui está a primeira dificuldade da ação formativa. De um lado, está o fato incontroverso das famílias desestruturadas, fruto do divórcio, somado ao fato de que os lares monoparentais estão em aumento constante. Por outra parte, a jornada de trabalho conjugal e a crescente duração do horário de trabalho faz com que os jovens e as crianças disfrutem cada vez menos da companhia dos pais. São oportunidades perdidas para a troca de afetos e para a ação educativa dos genitores.

Não existem respostas de cartilha para esse problema. Sob os ângulos social e legal, há um esforço geral para fortalecer a família e para facilitar a sua conciliação com o trabalho. Do ponto de vista conjugal, os pais devem manter uma clara intencionalidade educativa, combinando carinho e firmeza para moldar o caráter dos filhos, segundo as limitações cognitivas de cada idade: hábitos de ordem, perseverança, domínio da vontade, assertividade, atos de solidariedade e de justiça entre outros.

Às vezes, não nos damos conta de que a ação educativa familiar começa no dia em que o filho vem ao mundo. Pai e mãe são os protagonistas da educação dos filhos. São os primeiros educadores. E, nessa condição, renovam o gesto da paideia grega, aquela busca do sentido de uma reta teoria da educação e do agir do homem para a vida racional na polis, semeiam compartilhação e arquitetam o futuro pelas mãos do passado e com a mente no presente.

Quem ensina deixa de ser ele, para ser ele mais os outros. Passa a viver pelos outros e não mais só para si mesmo. Um vida de mãos abertas para a generosidade e para a transmissão do saber. Um verdadeiro desbravador do porvir que destila o conhecimento do passado na dimensão do amanhã, graças à candura de seus ideais e à semente de suas lições.

III - Cidadania: escola e diversão

Já vimos a importância do primeiro nível, a família, para a atuação educativa das crianças e dos jovens. O segundo nível é a escola. Idealmente, a escola atua nesse labor formativo por delegação dos pais, os protagonistas desta jornada, isto é, significa que a escola deve propor-se a colaborar – e jamais suprir – com a tarefa pedagógica conjugal de formação moral.

A escola age não tanto sobre a criação de hábitos, embora possa fazê-lo, mas auxilia eficazmente quando oferece um mundo coerente com os valores aceitos socialmente e que contextualizem os valores do mundo da consciência da criança e do jovem, incutidos pelos pais (e não pela babá ou pela televisão) no ambiente familiar.

A escola deve proporcionar aos alunos uma educação personalizada, completa e coerente, formando indivíduos que conheçam a realidade e se comprometam com ela, como seres livres, críticos, responsáveis e abertos aos outros. Em suma, um método pedagógico que transforme a investigação sobre a formação integral do homem em respostas educativas concretas.

Uma educação emancipatória, entendida como a possibilidade de resistência às formas de dominação vigente pela via do exercício crítico e reflexivo da razão e que milite contra o pensamento determinista derivado da mitologia, os excessos do discurso unificador medieval, o cientificismo totalizante da modernidade, além do irracionalismo e do ceticismo das tipologias pós-modernas de desrazão, sem falar das inúmeras e atuais insinuações ideológicas presentes nos discursos sociais. Mas sem se desligar de um rol mínimos de valores, sob pena de desenraizamento e desorientação.

O terceiro nível diz respeito aos produtos da indústria do entretenimento e que, talvez, gozem de uma relevância educativa nunca antes vista na história, a ponto de muitos confundirem educação com entretenimento, o que não é bem o caso. Julián Marías sintetizou bem isso ao afirmar que a grande potência educativa de nosso tempo é o cinema.

As crianças e os jovens moldam sua personalidade, em grande medida, através daquilo que os diverte. Se a ação pedagógica paterna tem o vínculo afetivo como componente principal, o entretenimento educa por meio da metodologia narrativo-emocional, fato que poderia ser exponenciado pela educação com o fim de atingir a imaginação, os afetos e as emoções das crianças e dos jovens.

A novidade do contexto cultural é a de que tais narrações, veiculadas por meio de filmes, séries televisivas, jogos eletrônicos, revistas, música, shows, são produzidas em escala industrial e chegam massivamente às crianças e aos jovens. Os perigos dessa massificação da indústria cultural, se alienada da realidade e vulgarizada, já haviam sido previstos por Adorno no começo do século passado.

A capacidade de incidência dos efeitos da indústria do entretenimento é imensa e, ao que parece, não só não está articulada com os outros níveis nesta missão pedagógica como, com frequência, seu produto é tudo, menos educativo. O sucesso da tarefa pedagógica dos patamares familiar e educacional depende dos donos do poder do entretenimento assumirem um claro compromisso educativo: não se pede que a diversão seja sinônimo de conto de fadas, mas, simplesmente, que não seja danosa à atuação dos outros níveis.

A educação do caráter moral das crianças e dos jovens é um objetivo que requer o concurso da ação dos pais, da escola e da indústria do entretenimento. Nesse assunto, basta lembrar que uma sociedade incapaz de educar seus filhos nos valores é uma sociedade incapaz de respeitar a si própria.

IV - Cidadania: atuação pública

Para o homem grego, seu nobre horizonte de realização encerrava-se na polis, local apropriado para o exercício da educação virtuosa recebida e para a participação política nos destinos da sociedade, no seio do projeto platônico de uma cidade justa habitada por cidadãos justos.

Com o advento da democracia representativa, em razão das limitações intrínsecas do modelo de democracia direta grega, a participação política do cidadão teve sua dimensão bem diminuída, mas tal fato não justifica uma apatia cidadã, como se a sorte da cidade não se confundisse também com os destinos do cidadão individualmente considerado. É a tática avestruz: enterrar a cabeça, ou seja, centrar-se em si, ignorando o todo citadino. Quem enfia a cabeça no buraco, um dia, acaba por perdê-la...

Essa apatia é explicada, mas não justificada, pelos três efeitos negativos que, a meu ver, a democracia representativa tem produzido. Primeiro, um progressivo desencantamento generalizado com boa parte dos políticos profissionais, fruto dos sucessivos escândalos de corrupção na gestão da coisa pública: desvios ou abuso de poder, confusão entre o público e o privado, assalto aos cofres públicos e “caixa dois” em período eleitoral. Inclusive, essa última modalidade foi cinicamente batizada, pela máxima delubiana, como “recurso financeiro não contabilizado”...

O segundo efeito negativo está no fato de que as eleições majoritárias ou proporcionais ocorrem a cada quatro anos. O político profissional mal intencionado, diante disso, sabe que a memória eleitoral do cidadão é curta e, como consequência, sente-se à vontade para agir, desvinculando-se das ideias que serviram de plataforma no período eleitoral e que, por força do mandato popular recebido, devem necessariamente pautar sua atuação representativa.

O terceiro efeito, já bem diagnosticado por Castoriadis (1983), resulta da diferença que a democracia representativa cria, quando mal gerida, entre representantes e representados, acabando por afastar a política das práticas cotidianas da vida social. Segundo ele, “a representação ‘política’ tende a ‘educar’ – isto é, a deseducar – as pessoas na convicção de que elas não poderiam gerir os problemas da sociedade, que existe uma categoria especial de homens dotados da capacidade especifica de governar”.

O estado de cidadania apático a que assistimos não se cura com mais apatia. Isso só faria reforçar a dissociação acima destacada entre as duas esferas muito íntimas do regime democrático: política e a vida em sociedade. Duas esferas que, para o cidadão grego, não se sobrepunham apenas na teoria dos filósofos da época, mas se misturavam na prática do dia-a-dia.

O mesmo cidadão grego poderia, no espaço da ágora, ouvir Sócrates, Platão ou Aristóteles dissertando sobre filosofia política à sombra de uma frondosa árvore (para minha inveja) e, logo em seguida, ao lado, dirigir-se até o mercado e, enquanto comprava trigo e azeite, conversar com o vendedor ou com o político eleito sobre a melhor forma de resolver o problema de saneamento da cidade ou sobre a necessidade de construção de um templo para a deusa Deméter como agradecimento à farta colheita daquele ano.

 Hoje, para se vencer esta situação política apática, a atuação do cidadão no seio social deve ser da mesma envergadura do cidadão grego. A diferença, talvez, estaria apenas nos meios de ação junto aos condutores da coisa pública, como as denúncias ao Ministério Público, as reclamações aos meios de comunicação e aos próprios parlamentares eleitos e as ações judiciais.

Outra diferença também estaria na forma do processo racional argumentativo, ou seja, do discurso público, sempre fincado em enunciados de razões públicas, sobretudo se existe a intenção de questionamento, suspensão ou reelaboração das pretensões de validade de uma norma ou princípio de ação social.

Minha experiência como cidadão e juiz eleitoral aconselha prudência e uma certa dose de ceticismo quando o assunto envolve exercício de cidadania e eleitor brasileiro do nível escolar que conhecemos. Estou fazendo a minha parte com os desajeitos típicos de minha mediania, mas com a grandeza sem limites de meus ideais, tomados por empréstimo e conduzidos com superior dinamismo e talento por meus antecessores. Contudo, este é um dos poucos casos em que o colunista concede prioridade aos outros e aguarda, sinceramente, não ter a razão ao seu lado.

V - Cidadania: formas de atuação

Atualmente, o exercício da cidadania representa a defesa de uma série de valores fundamentais, valores estes que coincidem com aqueles princípios sintetizados nas raízes da civilização ocidental e que a história já demonstrou serem indispensáveis para a realização do convívio em sociedade, desde que corretamente plasmados à realidade concreta temporal.

O legado filosófico grego, representado sobretudo pela rica contribuição aristotélica que procurou sistematizar toda realidade, permite uma compreensão racional da existência, sem o recurso a explicações deterministas derivadas da mitologia, aos excessos do discurso unificador medieval, ao cientificismo totalizante da modernidade, além do irracionalismo e do ceticismo das tipologias pós-modernas de desrazão.

O direito romano, esse tesouro jurídico que estruturou um império bimilenar, demonstrou, por intermédio de seus princípios, ser plenamente capaz de organizar juridicamente uma sociedade e oferecer as condições necessárias para seu desenvolvimento harmônico e pacífico. Sua principal herança foi Corpus Iuris Civilis, a compilação de todo o direito romano realizada por Justiniano (482-565).

E, na ordem histórica de advento, por fim, a matriz religiosa judaico-cristã, a qual aponta os valores últimos que norteiam a civilização, como a transcendência vertical e horizontal, a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a liberdade e solidariedade. Tomás de Aquino realizou o trabalho de síntese do cristianismo com a filosofia grega, criando um modelo explicativo que preserva a autonomia dos campos da razão e da fé.

Baseado nestas premissas, o exercício da cidadania pode ser manifestado concretamente por dois atores principais: os políticos profissionais e os cidadãos. Os políticos atuam como verdadeiros cidadãos elaborando uma legislação e uma série de mecanismos de execução que se harmonizem com aqueles princípios, além de conduzir a coisa pública como se não fosse privada. A propósito da atuação dos políticos, Churchill já dizia que as promessas do candidato são o sepulcro do estadista...

Os cidadãos, por sua vez, devem vir a público para exercer sua manifestação de aprovação ou reprovação desta ou daquela política pública, conforme promovam ou se distanciem do bem-comum da sociedade, por descompasso com a realidade ou a legítima vontade geral.

Trata-se de uma postura emancipatória, ou seja, uma forma de resistência às insinuações ideológicas sempre que se vislumbra o exercício crítico e reflexivo da razão. Se os três poderes clássicos estiverem sendo instrumentalizados para fins duvidosos, o cidadão pode, ainda, socorrer-se do ministério público ou da mídia, pois são fontes de poder real no seio da sociedade e gozam de dois atributos que aqueles outros não têm: transparência e flexibilidade.

Estas qualidades evidenciam, cada vez mais, o papel de moderação e de fiscalização que ambas instituições desempenham numa democracia moderna, ao influenciarem as decisões governamentais, mediante a investigação dos desvios éticos na direção da coisa pública e dos atentados aos direitos humanos fundamentais.

E o acesso à manifestação dos cidadãos, junto a tais instituições, pode ser feito por meio de artigos de opinião, cartas dos leitores para jornais e revistas, contatos telefônicos para as ouvidorias das redes de televisão e os órgãos de auto-controle da propaganda e pelo atendimento público junto às promotorias.

A massa crítica gerada chama a atenção de editorialistas e jornalistas para problemas e questões que poderão ser pautadas como de interesse público. As denúncias feitas perante o promotor de justiça, ainda mais se relativas ao desrespeito de direitos humanos, podem servir, se consistentes, para a abertura de inquéritos civis e o ajuizamento de ações públicas, cujos resultados atuam como freio às arbitrariedades e contrapeso na recuperação de valores éticos e sociais da pessoa e da família. E ainda duvido da eficácia corretiva das agências reguladoras, porque ainda se mostram muito suscetíveis à ingerência política do poder executivo.

O cidadão não deve ser apenas um espectador das deliberações políticas, mas um sujeito ativo que saiba influir no processo decisório de realização do bem-comum numa sociedade democrática. E creio que o exercício da cidadania, na forma aqui sugerida, pode ser o fiel da balança no frágil equilíbrio entre a civilização e a barbárie. Tão frágil que, por vezes, esses dois extremos preferem trocam de lugar. Com respeito à divergência, é o que penso. 


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br).


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