563 - Modelos familiares


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


I - Modelos familiares: discriminação

Hoje, ante o pluralismo de modelos familiares que brotam na sociedade ou que, em alguns casos, são fruto da atividade “legislativa” da magistratura, propaga-se a idéia de que o Direito não deveria discriminar este modelo em favor daquele, mas tratar a todos à luz dos princípios da igualdade e da dignidade humana.

É possível que o direito aja com tal neutralidade, que me parece um tanto ilusória, como se os aludidos modelos tivessem realizado um pacto de não-agressão mútua? Em outras palavras, reduzir o direito, esta dimensão tão rica e intrincada da realidade humana, a uma mera atividade notarial, como pretende o normativismo, essa mórbida corrente do pensamento jurídico, não provocará a legalização do arbítrio da pura vontade deste ou daquele grupo de pressão?

A abordagem que rechaça um único modelo familiar e adota uma multiplicidade de tipos, que são a resultante das diversas concepções existentes sobre a sexualidade e as relações afetivas e de convivência, coloca todas as formas no mesmo plano de equivalência social.

O efeito imediato, no campo legal, é a de torná-las juridicamente equivalentes, logo, sujeitando-as a um regime de direitos e deveres semelhante, quando não idêntico. Evidentemente, sob a ótica do igualitarismo, essa versão bem tosca e deturpada da igualdade, qualquer proposição contrária resultaria numa abominável discriminação.

O fruto colhido desta nova postura legislativa tem sido uma modificação do direito de família em suas linhas mestras. A falta de um conjunto de ideias e valores delimitados sobre as relações de caráter familiar cria uma sensação de que essas alterações carecem de um sentido claro.

Ao que parece, as reformas foram, muitas vezes, incoerentes, contraditórias e de pouca funcionalidade social. Penso que uma saída desta torre de babel legislativa passa pelo questionamento acerca do atual fundamento do direito de família.

O primeiro seria o que faz gravitar o direito de família ao redor dos critérios de convivência e afetividade. Seria o bastante, pois, que duas pessoas quisessem viver juntas: sob este argumento, ficariam efetivamente igualados os casais homossexuais e heterossexuais e seria também indiferente que estivessem ligados pelo casamento, já que a convivência e a relação de afetividade seriam o denominador comum destes modelos familiares. Ao cabo, seria razoável tratá-los da mesma forma.

A proposição não me parece convincente. De fato, em qualquer texto legal sobre família, a convivência ou a afetividade (ou ambas) nunca demonstraram ser suficientes. Basta lembrar o sistema de impedimentos matrimoniais, regido pelos incisos I a VII do artigo 1.521 do Código Civil, o qual proíbe o casamento daqueles que incorrem em alguma destas hipóteses legais, ainda que, empiricamente, queiram-se muito e já vivam juntos.

O direito de família, mesmo assim, abstém-se de regular estes relacionamentos com direitos e deveres. Por exemplo, duas pessoas casadas, mas não entre si, não podem constituir vínculo conjugal estável na ótica legal. O direito não proclama que não possam vivem juntas e querer-se mutuamente com a mais pura e reta afetividade. Apenas salienta que essa convivência e essa afetividade não bastam para lastrear a regulação jurídica da família.

Como se pode concluir, a própria realidade contém estruturas de comunhão entre duas pessoas que são intrinsecamente divergentes umas das outras, sobretudo em razão de seus fins naturais (a procriação, por exemplo), e que, por isso, reclamam do legislador uma tutela própria e adequada segundo tais fins.

Afinal, chamar cada coisa pelo seu nome ou dar a cada um o seu é uma justa discriminação, porque importa em adequar nossa mente à realidade, o que produz a verdade, e fazer justiça a cada uma daquelas estruturas.

Reprovável é a discriminação injusta, aquela que carece de qualquer fundamento (como o apartheid). Contudo, às vezes, a expressão “discriminação” é empregada pejorativamente por alguns movimentos sociais, com a finalidade evidente de contornar a falta de um discurso racional próprio para a defesa de certas posturas, como a do dependente em maconha, que, no fundo, quer transformar seu vício em categoria de pensamento...

Convém que o direito não caia nesta arapuca: deixará a condição de balzaqueana robusta para virar uma velhinha aflita. E que faça a justa discriminação no caso concreto e sempre que necessário.

II - Modelos familiares: afetividade

Se a convivência e a afetividade fossem, efetivamente, o fundamento e a razão de ser do Direito de Família, não restaria evidente um critério objetivo que impulsionaria a sociedade e o próprio direito a se ocupar de tais situações.

O problema reside no fato de que há muitas situações de convivência, de afetividade ou de ambas que nunca buscaram a força atrativa do direito, salvo para efeitos periféricos, a saber, para atribuir algumas consequências jurídicas acidentais, como, por exemplo, no passado, em que se indenizava o cônjuge do lar pela dedicação exclusiva aos afazeres domésticos no caso de dissolução da união estável.

Logo, o fato de duas pessoas viverem juntas ou estabelecerem laços de afetividade não parece suficiente por si para justificar toda uma regulação jurídica tão densa que possa ser erigida à condição de direito de família, cuja finalidade, já ensinava Agostinho, no século IV, é a de regular e proteger uma estrutura antropológica objetiva.

Ainda que se argumente que, concomitantemente, o direito conceda notável relevância a um desejo psicológico do casal, de fato, a afirmação procede, mas não é, juridicamente, o elemento essencial do modelo de família. Mas não é só. Se a bandeira do afeto é levantada a prumo no território do direito de família, logo, convém apreciar sua situação na estrutura do ente humano.

Na Antiguidade, Aristóteles admitia a afetividade como uma potência humana, pareada da inteligência e da vontade. Entretanto, na ótica do mesmo filósofo, à vista de sua parca contribuição para a realização da plenitude humana, ele não procurou desenvolver com afinco o estudo desta matéria. Ele entendia que a felicidade (em grego, eudamonia) era conquistada por uma vida virtuosa.

O estudo filosófico do campo afetivo só voltou a ganhar força na segunda metade do século XX com a fenomenologia, que trata de descrever, compreender e interpretar os fenômenos que se apresentam à percepção, cujo objetivo é o de alcançar a intuição das essências, isto é, o conteúdo inteligível e ideal dos fenômenos, captado de forma imediata.  O desconhecimento e a aversão científica ao tema provocaram um atraso na compreensão de sua efetiva importância e de sua ação recíproca com a vontade e a razão humanas.

A afetividade é confundida, muitas vezes, com sua versão reducionista, conhecida por sentimentalismo, o qual restringe a dimensão afetiva, esta nobre realidade da natureza humana, a uma mera tendência permanente e, em geral, consciente, que dirige e incita a atividade do indivíduo para um fim (por exemplo, as pulsões do prazer sexual, a libido, e as da atração para a morte, o suicídio).

Assim, conhece-se muito da cadeia mecânica das sensações, imprescindível para o estudo da afetividade, mas pouco (ou nada) se sabe sobre sua causa existencial. A depender do caso concreto, o sentido e o alcance dos afetos podem ser maximizados ou minimizados, quando estão desamparados da luz da antropologia filosófica. O excesso ou a falta podem proporcionar prejuízos. No direito de família, a louvação desmedida e errônea da afetividade é nociva às estruturas familiares.

A afetividade, na estrutura antropológica do ser humano, sem os arreios das virtudes da temperança e da fortaleza, segundo Aristóteles, provoca, no momento de tomada de decisão, um juízo menos livre e mais suscetível de manipulação, pois tende a justapor a deliberação à satisfação imediata dos prazeres sensíveis.

A respeito, Lewis afirmava que “todo amor humano, em seu apogeu, possui a tendência de reivindicar uma autoridade divina. Sua voz tende a soar como se fosse a vontade do próprio Deus. Ela nos diz para não medir o custo, exige de nós um compromisso total, tenta superar todas as outras reivindicações e insinua que todo ato feito sinceramente “por causa do amor” é, portanto, bom e até meritório. Que o amor erótico e o amor patriótico tentam dessa forma “tornar-se deuses” é geralmente conhecido. Mas afeição familiar pode fazer o mesmo, assim como a amizade, embora de modo diverso (in Os Quatro Amores; Martins Fontes; São Paulo; 2006; 3ª ed.; p.57)”.

Quando as pessoas se permitem levar pela dimensão dos afetos exclusivamente, elas perdem sua natureza quando os afetos se desnaturam. Entronizar a afetividade como fundamento do vínculo familiar é o mesmo que pleitear ao direito que faça mais do que a realidade permite, sem fazer o que a realidade pede.

III - Modelos familiares: amor

Lewis afirmava que “todo amor humano, em seu apogeu, possui a tendência de reivindicar uma autoridade divina. Sua voz tende a soar como se fosse a vontade do próprio Deus. Ela nos diz para não medir o custo, exige de nós um compromisso total, tenta superar todas as outras reivindicações e insinua que todo ato feito sinceramente “por causa do amor” é, portanto, bom e até meritório. Que o amor erótico e o amor patriótico tentam dessa forma “tornar-se deuses” é geralmente conhecido. Mas afeição familiar pode fazer o mesmo, assim como a amizade, embora de modo diverso (in Os Quatro Amores; Martins Fontes; São Paulo; 2006; 3ª ed.; p.57)”.

De fato, o trem da afetividade, quando anda sem os freios da vontade e da razão humanas, descarrila mais cedo ou mais tarde. Um exemplo contundente está no movimento consumista que assola nossa sociedade nos dias de hoje. O consumismo provoca, no indivíduo, uma maior dependência de estímulos sensoriais e, depois, busca, na ânsia por prazeres, o apoio para vender mais e mais.

A atração pelos prazeres é um movimento elementar da vontade, facilmente manipulável pela via da excitação. Uma vez experimentado o prazer, segundo a imagem projetada na publicidade, a pessoa vai à busca de outro bem consumível que julga apto a lhe satisfazer o desejo, que acaba por “criar” uma necessidade, antes concebida como um simples capricho. Aliás, quando era menino, minha avó vivia me dizendo que os caprichos de hoje podem se transformar nas necessidades do amanhã...

Com efeito, o afeto, se, por um lado, permite a constituição de relações familiares, de outro, é insuficiente para a consolidação de uma estrutura familiar genuína. Se os afetos são cambiantes por natureza, como um vento que muda de direção neste ou naquele momento, pretender solidificar uma relação que se pretende duradoura num lastro exclusivamente afetivo é o mesmo que colocar uma lanterna na popa: só iluminará as ondas que deixamos para trás. A navegação até um porto seguro continuará às cegas.

Para isso, é necessário colocar a lanterna na proa: o amor, que não se confunde com o mero sentir-se bem, mas com o comprometer-se, com o doar-se e, para tanto, para alcançar o outro, para transcender-se, a pessoa precisa agir, harmoniosamente, com a inteligência (imagem do ideal), a vontade (ação livre na causa) e a afetividade (pulsão ordenada pela dimensão ética do ser).

A união conjugal decorrente do casamento, conforme entendemos, tem uma antropologia implícita: diversidade sexual, igual dignidade dos cônjuges, complementaridade e abertura à procriação, alimentada pela natural atração entre homem e mulher e sobre a qual se articula a livre vontade de ambos, fundada pelo amor e não pela simples afetividade, à doação e aceitação mútua.

Por consequência, o amor verdadeiro e livre entre um homem e uma mulher, se, antes do matrimônio, era um amor eletivo, depois da realização deste, transforma-se em um amor devido por justiça.

O compromisso então nascente entre os cônjuges, além de moral, é jurídico e consiste na manifestação de um amor responsável, porquanto zela pela própria duração em benefício de ambos os consortes, dos eventuais filhos e da sociedade. O amor sustentado sobre o matrimônio não se limita a uma mera expressão de afetividade ou à volatilidade e o tumulto das emoções, o sentimentalismo, essa atitude imatura, fruto da deturpação da afetividade, que fez de nossa sociedade sua principal refém.

Penso que o amor humano pleno, em quaisquer de suas formas, não somente no amor esponsal, é oblativo. Não me parece possível que a justaposição de dois egoísmos possa engendrar algum tipo de amor, ao menos digno de tal nome. Afinal, já disse uma famosa atriz americana ser mais fácil amar vinte homens durante um ano a amar um único homem durante vinte anos.

IV - Modelos familiares: sexualidade

O amor, no âmbito do casamento, demanda o compromisso de abertura à vida, donde decorre que a sexualidade, neste sentido, não é um mero dado fortuito, nem tampouco uma maneira alternativa pela qual os esposos podem canalizar seu apetite sexual com exclusividade.

O casamento, na forma aqui preconizada, reclama uma postura zelosa do direito, bem ao contrário da neutralidade reinante e sob pena de contrariar sua própria razão de ser, porque se trata da instituição social por antonomásia, já que a sociedade surge e desenvolve-se a partir da família fundada pelo casamento. Se o afeto avizinha as pessoas e desencadeia a constituição de uma relação familiar, por si só, não confere solidez a esta estrutura.

A despeito da decisão do STF, uma espécie de inesperado terceiro turno da última assembléia nacional constituinte em matéria familiar, o direito, numa retrospectiva histórica, nunca considerou o afeto como vis attrativa das relações familiares, mas sempre o compromisso de abertura à descendência, com a assunção dos deveres daí decorrentes.

Este comprometimento com a dimensão procriadora é um fato jurídico, ou seja, um evento que produz efeitos no campo jurídico, porquanto vincula os sujeitos da relação jurídica, proporcionando-lhes uma gama de direitos e deveres recíprocos.

Se o direito concedeu um determinado trato legal para algumas relações afetivas, não foi em virtude de tal atributo exclusivamente, mas porque tais relações são de extrema importância para a organicidade da própria sociedade.

A despeito da enorme importância da solidariedade para o tecido social, não se cuida de um fato jurídico que possa ser alçado à qualidade de base de uma relação familiar. O fato de alguém ajudar o outro que está privado do mínimo necessário à sobrevivência não acarreta o estabelecimento de um vínculo jurídico que o autorize a ser incluído no regime legal de parentesco: a solidariedade não se confunde com a base da sociedade e não a potencializa.

O casamento (além da união estável e da família monoparental, segundo o artigo 226, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal) gozam de especial proteção estatal, pois as modalidades de entidade familiar daí derivadas traduzem, objetivamente, a dimensão procriadora da sociedade, uma potencialidade motriz, fincada na antropologia e na ética social, que deve ser reconhecida e preservada pela lei.

Sem prejuízo de outros modos de relação humana, este dever legal de tutela específica deve limitar-se aos modelos constitucionais, os quais, à luz da realidade humana, conservam e perpetuam a sociedade. Os demais modelos empíricos, incluso as relações afetivas entre homossexuais, não são suficientes e necessários para tal fim, não pertencem à base procriadora da sociedade, porque não contêm uma dinâmica reprodutiva intrínseca. Não geram novas pessoas.

Contudo, tão limitação biológica natural não permite concluir que as outras categorias de convivência não devam merecer atenção do direito, em virtude do princípio da dignidade da pessoa.

Mas estas categorias devem buscar formas próprias para sua configuração jurídica, à luz do princípio da igualdade, dado que a especial proteção é exclusiva das situações acima delineadas, porque o direito prefere um rol de aspectos objetivos somados: a dimensão procriadora, os desimpedimentos legais para a constituição dos vínculos familiares, segundo a ordem social (artigo 1.521 do Código Civil), e a exterioridade da relação, como as declarações expressas de vontade e a filiação.

Tais atributos correspondem ao imprescindível para a constituição de um fato jurídico de ordem social. Nem mesmo a propalada afetividade, alçada à condição de requisito soberano, é capaz de gerar, por si só, direitos e deveres, sem que isso signifique pouco caso com o afeto individualmente considerado. Apenas se lhe confere o devido lugar nas relações humanas, o lugar da subjetividade.

Não se pode exigir dos afetos mais do que eles podem dar, assim como da sexualidade no âmago de uma relação entre duas pessoas de mesmo sexo. Aliás, o único fator que aproxima esta relação das demais está num dado estritamente empírico: uma prosaica cama de casal, ainda que utilizada de maneira substancialmente diferente em cada caso e, mesmo assim, incapaz de transformar afeto em amor e incapacidade procriadora em filhos.

V - Modelos familiares: casamento gay

Na proposta de casamento gay, algumas perguntas, que correspondem a argumentos de razões públicas equacionáveis dentro da ética dialógica que conduz o fio do debate no seio social, devem ser respondidas antes de se chegar a uma conclusão.

O que é mais importante para a gênese do tecido social: o casamento dotado de complementaridade sexual ou as parcerias homossexuais? Em qual deles reside o princípio autoconstitutivo e “genético” da sociedade? Em qual deles, segundo suas peculiaridades intrínsecas, os valores podem ser melhor transmitidos à geração sucessiva? Em qual deles, os novos cidadãos crescerão melhor, de modo a estruturar-se e ampliar, de modo natural, as próprias personalidades?

Em qual deles se respeita a opção natural da criança em gerar prole quando alcançar a maturidade? Que obrigações a sociedade deve assumir em relação a um e outro e em que grau? Em que medida cada um deles contribui para o incremento do bem comum? A equiparação da parceria homossexual à condição matrimonial não seria um privilégio, afetando o princípio da igualdade? A negação do status quo do matrimônio seria uma discriminação para a parceria homossexual?

Discriminar é separar, distinguir. Continuamente separamos e distinguimos. Diferenciamos entre pessoas boas e ruins, livros agradáveis e desagradáveis, comidas palatáveis e não palatáveis. Cada vez que elegemos algo, discriminamos inconscientemente, pois, ao optar por este, descartamos aquele. Discriminar é necessário e inevitável. Apenas é reprovável a discriminação injusta, aquela que carece de qualquer fundamento. Assim, chamar cada coisa pelo devido nome é uma justa discriminação.

Nesta hipótese, não me parece que as atuais proibições dos homossexuais em contrair matrimônio impliquem numa discriminação estritamente falando ou mesmo numa negação de direitos a uma minoria.

O ponderado fator de discrímen reside justamente nos elementos objetivos que o direito exige para que um fato da vida seja dotado de juridicidade familiar: a dimensão procriadora, os desimpedimentos legais para a constituição dos vínculos familiares, segundo a ordem social (artigo 1.521 do Código Civil), e a exterioridade da relação, como as declarações expressas de vontade e a filiação.

É necessário refletir sobre a diferença entre o comportamento homossexual como fenômeno privado e como comportamento público, legalmente previsto, aprovado e convertido em uma das instituições do ordenamento jurídico. As leis civis são os princípios que estruturam a vida do homem em sociedade, para o bem ou para o mal, segundo seus fins naturais.

As formas de vida e os modelos nelas traçados não somente configuram a vida social exteriormente, mas tendem a modificar, nas novas gerações, a correta compreensão e valoração dos comportamentos empiricamente vividos no seio social. A extensão do matrimônio para os homossexuais pela via legal estaria destinada a provocar o obscurecimento da percepção de valores fundamentais e caros para a sociedade, dado que atrelados à sua própria subsistência.

Recordo-me de uma passagem do tresloucado príncipe da Dinamarca. Polônio, o conselheiro-chefe do rei Cláudio e símbolo da prudência naquela tragédia, certa feita, ao fim de um dos delírios de Hamlet, pronuncia que “though this be madness, yet there is method in’t”. É loucura, mas há método nela, em tradução livre. E quem é a primeira vítima, ainda que acidental, do príncipe adoidado, que produz um banho de sangue? Justamente Polônio, justamente a ponderação!

Esta passagem literária tem uma carga simbólica muito grande neste caso. Ao se preconizar o alegado direito ao casamento gay de forma lancinante, o direito pode ser a primeira vítima da insensatez desta proposta. Justamente o direito, justamente a ponderação! E, inserindo esta idéia no âmbito do movimento homossexual, ideologicamente considerado, seguramente, pode-se dizer: é loucura, mas há método nela.

Uma casa não é necessariamente um lar. Conferir o status do casamento para a parceria homossexual, com todos os direitos e deveres daí inerentes, não atenderá aos anseios que tanto se anunciam pelo movimento homônimo, pois, por mais paradoxal que pareça, provocará a própria autodiscriminação da homossexualidade, ao se pretender desconhecer a realidade desta condição. Em suma, misturar tudo para alegar o novo apenas serve para revelar os contornos do velho. Com respeito à divergência, é o que penso.


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br).


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