564 - Neutralidade no Direito de Família


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


I - Direito de Família: fundamento

Hoje, ante o pluralismo de modelos familiares que brotam na sociedade, propaga-se a idéia de que o Direito não deveria discriminar este em favor daquele, mas tratar a todos à luz do princípio da igualdade, sejam matrimônios ou uniões estáveis, heterossexuais ou homossexuais.

É possível que o Direito aja com tal neutralidade, que me parece um tanto ilusória, como se os aludidos modelos tivessem realizado um pacto de não-agressão mútua? As funções da família são favorecidas com esta postura, que desencadeia um novo marco legislativo nesta matéria?

As respostas jurídicas aos novos tipos familiares partem do pressuposto de certa neutralidade do Direito de Família. Como se o Direito se resumisse exclusivamente a chancelar legalmente situações jurídicas de fato, à semelhança de um notário que registra, à margem do assento de nascimento de uma pessoa, todas as alterações de seu estado civil ao longo da vida (emancipação, casamento, separação, divórcio).

A abordagem, que rechaça um único modelo familiar e adota uma multiplicidade de tipos que são a resultante das diversas concepções existentes sobre a sexualidade e as relações afetivas e de convivência, coloca todas as formas no mesmo plano de equivalência social, o que parece torná-las juridicamente equivalentes, logo, sujeitando-as a um regime de direitos e deveres semelhante, quando não idêntico. Qualquer proposição contrária resultaria em discriminação nesta ótica.

O fruto colhido desta nova postura legislativa tem sido uma modificação do Direito de Família em suas linhas mestras. A falta de um conjunto de idéias e valores delimitados sobre as relações de caráter familiar cria uma sensação de que essas alterações carecem de um sentido claro e que as reformas levadas a cabo foram, muitas vezes, incoerentes, contraditórias e de pouca funcionalidade social. Assim, é adequada a resposta dada pelos ordenamentos jurídicos, inclusive o nosso? Penso que uma saída passa pelo questionamento acerca do fundamento e do sentido do Direito de Família.

Em relação ao fundamento, a primeira resposta seria a que faz gravitar o Direito de Família ao redor dos critérios de convivência e afetividade. Seria o bastante, pois, que duas pessoas quisessem viver juntas: sob este argumento, ficariam efetivamente igualados os casais homossexuais e heterossexuais e seria também indiferente que estivessem ligadas pelo matrimônio, já que o fundamental, a convivência e a relação de afetividade, seria o denominador comum destes modelos familiares. Ao cabo, seria razoável tratá-los de forma semelhante.

A proposição não me parece convincente. De fato, nem no tratamento clássico da noção de família, nem tampouco nos mais modernos, demonstraram ser suficientes a convivência ou a afetividade ou ambas simultaneamente. Basta lembrar o sistema de impedimentos matrimoniais do Código Civil, que proíbe o casamento daqueles que incorrem em alguma das hipóteses legais, ainda que, empiricamente, se queiram muito e já vivam juntos.

O Direito, mesmo assim, se abstém de regular este relacionamento com direitos e deveres, ou seja, quer dizer que, por exemplo, duas pessoas casadas, mas não entre si, não podem constituir uma parelha estável na ótica legal. O Direito não proclama que não possam vivem juntos e querer-se mutuamente. Apenas salienta que essa convivência e essa afetividade não bastam para lastrear a regulação jurídica da família.

Sob outro ângulo, se a convivência e a afetividade fossem, efetivamente, o fundamento e a razão de ser do Direito de Família, não restaria evidente um critério objetivo que impulsionaria a sociedade e o Direito a se ocupar de tais situações.

O problema reside no fato de que há muitas situações de convivência, de afetividade ou de ambas que nunca buscaram a força atrativa do Direito, salvo para efeitos periféricos, a saber, para atribuir algumas conseqüências jurídicas acidentais, como, por exemplo, no passado recente, em que não se reconhecia a união estável, mas se indenizava o cônjuge do lar pelos serviços domésticos prestados.

Logo, o fato de duas pessoas viverem juntas ou estabelecerem laços de afetividade não parece suficiente por si para justificar toda uma regulação jurídica tão densa que possa ser erigida à condição de Direito de Família, cuja finalidade, já ensinava Agostinho no século IV, é a de regular e proteger uma estrutura antropológica objetiva. Ainda que se argumente que, concomitantemente, o Direito conceda notável relevância a um desejo psicológico do casal, de fato, a afirmação procede, mas não é, juridicamente, o elemento essencial da hipótese de incidência.

O Direito de Família não pode ser neutro em relação às realidades familiares postas, pois cada uma delas traz consigo formas funcionalmente diferentes. Do contrário, desapareceria a razão de ser de sua própria atuação e contrariaria a própria finalidade de sua intervenção.

II - Direito de Família: sentido

Caberia afirmar que o Direito se ocupa da família, porque se trata de uma relação de convivência e afetividade na qual concorre a mútua disponibilidade sexual? Logo, com a introdução deste elemento, o Direito deixaria de lado as situações contrárias, aquelas em que não haveria a mútua disponibilidade sexual?

A inserção do elemento sexual na análise traz consigo um fator qualitativamente diferente. Se a resposta ao questionamento formulado for positiva, a pergunta imediata seria acerca da razão pela qual à sociedade e ao Direito interessam as relações sexuais. Creio que a resposta é muito simples: por causa das conseqüências naturais, que atendem pelo nome de filhos.

A família é um grupo humano de interesse social primário, devido suas ímpares funções em relação à sociedade. Do ponto de vista social, a família está umbilicalmente ligada à subsistência da sociedade, já que possibilita o nascimento de novos cidadãos, além de ofertar um marco próprio e adequado para seu desenvolvimento integral como pessoas e sua interação harmônica no multifacetado corpo social.

Estas são as funções estratégicas da família. A família resulta ser uma estrutura de humanização e socialização barata, eficaz e ao alcance de qualquer cidadão praticamente. Tais funções estratégicas, que, na verdade, são essenciais e insubstituíveis, são as que justificam a especial atenção que a sociedade lhe dedica, que, no campo do Direito, concretiza-se com a existência de uma específica regulação jurídica. A família é uma instituição de interesse social na medida em que, por intermédio dos filhos, cria as condições favoráveis para a existência e a socialização de novos cidadãos.

A partir deste ponto de vista, resulta evidente a maior relevância social das uniões heterossexuais, se comparadas com as parelhas homossexuais: aquelas procriam (ou podem fazê-lo) e estas não, por motivos de ordem biológica. Por hipótese, basta imaginar uma sociedade em que a estrutura de relações sexuais fosse inversa da atual (a saber, 99% homossexual e 1% heterossexual). Certamente, esta sociedade não iria muito adiante. Duraria uma geração...

Sob este ângulo, conclui-se que o caráter minoritário é condição de possibilidade das relações homossexuais. Somente se a estrutura de relações de uma sociedade for majoritariamente heterossexual, haverá novos cidadãos que possam optar por manter relações homossexuais.

É evidente que esta diferenciação sexual se dirige objetivamente, em razão de sua própria natureza, à procriação (reprodução) da espécie humana, como, aliás, se dá em todas as espécies sexualmente diferenciadas. A família também tem, como missão e outra função estratégica, proporcionar o parâmetro adequado para que tal processo de humanização e socialização possa se desenvolver eficazmente.

Neste ponto, também a diversidade sexual (não no sentido marcusiano do termo) assume foros de importância sem igual. Homem e mulher, agora como pai e mãe, não foram apenas chamados para proporcionar o material genético necessário para que os filhos existam, mas também devem aportar, neste período, aquilo que é próprio como varão e virago para se obter um desenvolvimento harmônico e integral dos filhos.

Se o advento de novos cidadãos está diretamente relacionado com a heterossexualidade, o processo de humanização e socialização dos seres nascidos, como efeito das relações havidas entre duas pessoas de sexo diferente, está atrelado com a estabilidade do núcleo familiar, único fator que pode assegurar que o aludido processo se desenvolverá de forma mais adequada.

A importância da estabilidade pode apoiar-se naquilo que pode ser nomeado como o reverso da moeda. A respeito, convém sempre recordar que, se é socialmente bom que as famílias durem, o rompimento (divórcio e separação) não pode ser reputado indiferente, assim como qualquer tentativa (inclusive legal) de afrouxamento do liame jurídico e natural que une um casal.

São numerosos e suficientemente conhecidos os estudos realizados que demonstram que as crises familiares (separação, divórcio e dissolução de união estável) produzem efeitos prejudiciais colaterais não desejados, sobretudo para os filhos, sem se esquecer dos deletérios efeitos para os cônjuges e para a sociedade inteira, como os custos econômicos e de assistência social. A estabilidade da família se mostra, cada vez mais, como um bem social e os instrumentos jurídicos dirigidos à facilitação desta condição são um caminho seguro para o Direito de Família.

Assim, as funções estratégicas da família, que são as razões pelas quais a sociedade e o Direito dela se ocupam, aparecem vinculadas à heterossexualidade e à estabilidade. O modelo heterossexual estável é o melhor dotado, se comparado aos demais, para atender as citadas funções da família e, portanto, reclamam, do Direito de Família, uma postura zelosa, bem ao contrário da neutralidade reinante e sob pena de contrariar sua própria razão de ser.


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br)


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