567 - Pessoa humana
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
I - Pessoa humana: dignidade
A dignidade da pessoa humana é o conceito nuclear do estado contemporâneo, um estado baseado em dois pilares, o regime político democrático representativo com a tripartição dos poderes, e a matriz constitucional, inspirada na linha da Magna Carta de 1215, imposta pelos barões ingleses ao rei João Sem Terra.
O que é dignidade? E pessoa humana? E qual é a exata dimensão de cada um desses conceitos? Estas expressões são constantemente utilizadas e, inclusive, para defender interesses e pleitos contraditórios como, por exemplo, a pretensão abortista, o tratamento eutanásico e o respeito ao direito à vida.
Como inúmeros outros conceitos que são muitos comuns em direito e filosofia, a dignidade da pessoa humana é o resultado de uma longa destilação secularizada da ideia judaico-cristã do homem como imagem de Deus (Gn 1, 27) e destinatário da missão de Cristo.
A tradução do conceito de imagem de Deus, presente em todos os homens, para âmbito da noção de dignidade, a ser respeitada por todos os homens de todos os tempos, acabou por criar uma expressão teológica secularizada e que confere um status ímpar ao ser humano.
E a noção de pessoa, que reflete também na ideia de dignidade e decorre do fato de Cristo, segunda pessoa da Trindade, também não é diferente. Assim, ambos conceitos, dignidade e pessoa, não só demonstram uma certa unidade da realidade, mas a busca de uma fonte imutável para a delimitação do sentido da expressão que intitula o artigo.
Quando alguém reclama da dignidade violada, implicitamente, aponta-se para uma adequada atitude em relação ao outro no seio das interações sociais, o que, nos campos da filosofia e do direito, é chamado de reconhecimento. Reconheço esse vizinho, que sempre toca seu bandolim antes de dormir, como pessoa, porque sua dignidade, como valor inseparável à identidade do ser humano, exige um ato de aceitação.
E, traçando um paralelo com a noção teológica de fé, poderia argumentar que, como este ato de reconhecimento está voltado a uma realidade transcendente, a aceitação da realidade da pessoa humana, na forma acima apresentada, seria uma manifestação de fé, mas secular, porquanto diz respeito a este ou aquele ser humano com quem me relaciono concretamente. Inclusive, com o vizinho do bandolim inoportuno.
Assim, a ideia de dignidade da pessoa humana envolve dois dados: a pessoa humana e o reconhecimento. Tanto um como o outro sempre foram debatidos na história e, atualmente, recebem contribuições de muitos ramos do saber. Na filosofia, alguns pensadores fizeram da pessoa (e, implicitamente, do reconhecimento) o epicentro de suas reflexões, que culminou com uma corrente denominada personalismo.
No direito, a pessoa é definida e reconhecida como o ser humano, com todos os predicados que integram sua individualidade, sujeito de direitos e obrigações. A psicologia, a medicina, a psicanálise e a pedagogia também estudam com profundidade as ideias de pessoa e de reconhecimento. No campo político, o reconhecimento e o respeito aos direitos da pessoa humana é um termômetro para se observar o grau de justiça de uma nação, de um povo ou de um sistema.
Mas todo ser humano, mesmo sem muita teoria, com base nos sentidos e na natural socialização em comunidade, consegue se distinguir como um ser de uma dada espécie no mundo natural. A dificuldade surge em considerar o outro ser vivo da mesma espécie e, diante de si, como pessoa, já que isso acarreta consequências normativas.
Porque a pessoa, como ser em si, isto é, um ser com uma existência individual, não pode ser sobreposto pela maioria. Como ser para outrem, porta consigo a exigência da reciprocidade. Como ser para si, deve ser respeitada como um fim e não utilizada com um meio.
Eis a tarefa do reconhecimento: considerar o ser humano como pessoa. E nossa reflexão apropria-se de elementos filosóficos e jurídicos que não se dissociam da matriz religiosa original. Na linha de Habermas, para quem “a interpenetração entre a cristandade e metafísica grega (...) também fomentou uma apropriação de conteúdos genuinamente cristãos pela filosofia. Esse trabalho de apropriação transformou o sentido originariamente religioso, mas não o deflacionou ou consumiu de modo que o esvaziasse (in FSP, Caderno Mais, 24.04.05)”.
Em suma, um diálogo fecundo entre as três fontes. E não um diálogo mais ou menos. Ou mais para mais. Ou mais para menos. Mas na exata medida, num mundo que, em matéria de dignidade humana, caminha, cada vez mais, mais para menos do que para mais.
II - Pessoa humana: história
O estudo da noção de pessoa humana na história lembra bastante o universo de pessoas que nos cercam concretamente, uma espécie de multiplicidade com, às vezes, alguma unidade. Aliás, unidade mesmo se resume ao nome dado ao conjunto multifacetado de qualidades que singularizam o ser humano de todas as outras coisas que nos circundam: pessoa.
Na Grécia, mesmo com abundância de vida contemplativa, o conceito de pessoa passou em branco, pois, por acentuar o individual e o concreto, não poderia andar de mãos dadas com uma filosofia que enfatizava o universal e o abstrato. Começo a entender porque, de tanto especular nas alturas, Tales caiu num dado e concreto poço...
O cristianismo trouxe uma nova dimensão do homem, a da pessoa humana, marcada pela autonomia no ser. A revelação cristã foi dirigida, desde seu começo, a todos os homens tomados individualmente, em razão da filiação divina de cada um. Deve ter sido uma crise de consciência para o homem antigo, sobretudo o grego, absorvido pela cidade e pela família e submetido a um destino cego e sem nome.
Mais tarde, as disputas teológicas acerca dos mistérios da Trindade e da Encarnação submeteram a noção de pessoa a um raciocínio mais profundo, de maneira a adquirir uma sólida veste filosófica, principalmente naquilo que respeita à sua natureza racional.
Depois, Descartes, coerentemente com o seu “penso, logo existo”, criou uma ruptura no discurso filosófico e passou a ver a pessoa como o homem que pensa a si mesmo. O eu seria determinado pela autoconsciência, a única singularidade humana.
A partir daí, todo pensamento (principalmente Kant e Hegel) seguiu mais ou menos essa mesma trilha, para o qual garantir que o homem é pessoa significou demonstrar que o homem sempre foi um ser capaz de refletir como um sujeito que alcançou a consciência de si.
Recentemente, outros pensadores, de escolas filosóficas diversas (como Heidegger, Scheler e Guardini), tiveram a preocupação comum de superar a visão intelectualista dominante na época moderna, porque perceberam (e com acerto) que essa perspectiva reduziu a ideia de pessoa humana exclusivamente ao pensamento e, em alguns casos, a um mero feixe de sensações, sacrificando, de novo, como na filosofia grega, o singular em prol do universal.
Desde então, buscou-se uma recuperação da singularidade do homem e da complexidade de seu ser, constituído não só de espírito, mas também de matéria. Não só de pensamento, mas também de uma porção definida no espaço. A individualidade passou a dividir o assento do conceito de pessoa ao lado da intelectualidade.
Mas não é só. Tais pensadores também contribuíram em muito ao apontar que a individualidade do homem, esse ser aqui e agora, provoca uma abertura intencional (transcendência), tanto no conhecer quanto no querer, pela qual ele é capaz de todo tipo de diálogo (comunicação) com as coisas, os outros e o absoluto.
Assim, pessoa poderia ser definida como indivíduo dotado de autonomia quanto ao ser, razão, autoconsciência, transcendência e comunicação. Dessa maneira, compreende-se todos os elementos principais que os pensadores antigos e modernos reconheceram como atributos da pessoa, sem que um seja superestimado em detrimento do outro.
Esses elementos, mesclados no ser e no agir humanos, levam o homem para além daquilo que ele é atualmente e sempre lhe propõem novos objetivos e ganhos. Externos e internos. Hoje, muito foco é dado nos primeiros: minha casa própria, meu primeiro celular, meu primeiro carro. Para alguns torcedores, meu primeiro estádio...
E, em minha experiência pessoal, ouso dizer que as metas e vitórias internas realizam-nos mais como pessoa: ser virtuoso, agir como um bom profissional ou atuar como um bom cidadão. Porque regressar para o nosso eu, quando o exterior vive a nos tentar com o deslumbramento, talvez seja a única forma de, por uma vez na vida, simplesmente arrumá-lo, num mundo cada vez mais desarrumado.
III - Pessoa: autonomia
A liberdade permite ao homem alcançar sua grandeza máxima, mas também, se manejada irracionalmente, é condição de possibilidade de sua maior degradação. Talvez seja o dom mais valioso, porque impregna e define toda sua atuação. Nesse sentido, Sartre tem razão ao afirmar vigorosamente que “o homem está condenado a ser livre”. No “processo” da vida, para além dos manuais de direito, parece-me um caso de “sentença” irrecorrível...
O homem é livre desde o mais profundo de seu ser. Por isso, a modernidade associou o exercício da liberdade, nos mais variados campos, com a plena realização da pessoa. Em qualquer manifestação popular, panfletagem partidária, greve geral, debate de chapa para centro acadêmico ou conversa familiar entre pais e adolescentes, o assunto da liberdade é sempre veiculado: é um direito e um ideal que se entende irrenunciável.
Essa liberdade constitutiva da pessoa consiste numa intimidade livre, um espaço interior que ninguém pode possuir ou acessá-lo se eu não permito e no qual estou à disposição de mim mesmo. É um campo interior de novidade inacessível para os outros.
Mesmo para o cônjuge no seio da intimidade matrimonial e para pais e filhos no âmbito da relação familiar. Um local onde sou dono de mim mesmo e, logo, das próprias ações ou omissões. Um campo de batalha onde são travadas as guerras invisíveis da alma e que nenhum exército do mundo é capaz de interferir.
Ao longo da história, mas, principalmente, no século XX, os totalitarismos à la carte foram pródigos na tentativa de suprimir este nível de liberdade. Dos gulags aos campos de concentração, nenhuma prisão ou cativeiro tem a capacidade de eliminar uma crença ou um amor no interior da alma.
Esse núcleo inviolável do homem só pode ser exterminado com a morte. Por isso que todas as formas, explícitas ou esfumaçadas, de perseguição de liberdade de expressão ou de religião sempre terminam num rotundo fracasso, porque nunca atingem o interior da consciência.
Dessa liberdade, a ser respeitada pelas leis em geral, florescem os direitos fundamentais, como o direito à liberdade de pensamento, que demanda uma natural expressividade. O direito à liberdade religiosa, que não inclui apenas o crer, mas um espaço público para a prática da fé. O direito à escusa de consciência, por motivos morais ou filosóficos, a ser aplicada de forma abrangente e em relação à uma série de domínios da existência.
De outro lado, imaginar que essa liberdade resume-se na ausência total de limites é puro exercício de fantasia. Uma equivocada abstração que, se confundida com a liberdade, pode provocar consequências nefastas. Hegel, com acerto, chamou isso de liberdade do vazio.
Desde Hobbes, para quem a liberdade é a ausência de impedimentos externos, costuma-se compreender que ser livre consiste em se suprimir toda a dependência. Ao longo do tempo, essa ideia leva ao desenraizamento e à desorientação. É o cenário europeu de hoje: o Velho Continente sempre foi o timoneiro da história, para o bem ou para mal e, atualmente, cada vez mais divorciado dos ideais que plasmaram sua civilização, lembra mais um barco à deriva ou uma nau sem rumo, porque a bússola não funciona mais...
Se a liberdade não tem limites, prevalecem a arbitrariedade e o capricho. A liberdade nunca parte de um ponto zero. Nós somos nós e nossas circunstâncias, já dizia Ortega y Gasset. Assim, somos livres a partir desse referencial.
“A escolha é possível em algum sentido, mas o que não é absolutamente possível é não escolher. Eu posso sempre escolher, mas devo saber que se não escolho, ainda assim eu escolho”. Termino com as palavras do mesmo existencialista francês que abriu as alas do artigo e que, apesar de sua intelectualidade sofisticada, optou pela cartilha política autoritária. E com liberdade.
IV - Pessoa: dimensão racional
Além da qualidade de ser dotado de autonomia, o homem é capaz de conhecer e pensar e essa faculdade tem, como objeto, não só o particular, o sensível ou o material, mas o universal e o abstrato. Ainda que todo conhecimento passe antes pelos sentidos, podemos migrar do concreto para o teórico e chegar às conclusões que recebem o nome de princípios.
A Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa foram fenômenos históricos em que essa dimensão tomou uma tal proporção que os efeitos perduram até hoje. No primeiro caso, prevaleceu a soberania da razão do sujeito que pretendeu ter acesso ao divino sem uma mediação eclesiástica. No segundo, houve a tripartição da cultura em três âmbitos diferentes e autônomos (ciência, moral e arte), cada um deles regidos por uma lógica e princípios próprios. No terceiro, a razão coletiva que almejava liberdade pôs o Antigo Regime para baixo.
O homem não conhece este ou aquele animal, esta ou aquela árvore ou esta ou aquela flor. Mas o animal, a árvore e a flor enquanto tal. Além disso, o homem possui as ideias de bondade, virtude, sociedade, trabalho, as quais não se referem a nada de material ou de concreto, porém remetem ao universal e ao abstrato.
Também possuímos a capacidade de julgar e raciocinar. O homem formula proposições abrangentes como “os corpos caem”, “a água molha”, “o fogo queima”, “o calor expande”, “o frio contrai”. Chegamos a umas ideias refletindo sobre outras e concluímos pela existência de algo posterior a partir da existência de um algo anterior. Aliás, a prova mais cabal da dimensão racional do homem está na ciência.
O homem esforça-se por coordenar todo o conhecimento de maneira sistemática: divide-os, classifica-os segundo estes ou aqueles argumentos e, assim, obtém as teorias gerais das inúmeras esferas da realidade, com pretende a própria ciência.
Fernando Pessoa, com genialidade peculiar, poetizou eternamente o atributo racional do homem: “Temos todos que vivemos/ uma vida que é vivida e uma vida que é pensada/ e a única vida que temos/ é esta que é dividida/ entre a verdadeira e a errada/ Qual porém é verdadeira/ E qual errada, ninguém/ nos saberá explicar/ E vivemos de maneira/ Que a vida que a gente tem/ É a que tem que pensar...".
E, quando o pensar se volta para o outro, não convém que a razão ignore o mandamento kantiano de que o homem jamais deve ser usado como meio, mas respeitado como um fim. Porque o homem pode captar a realidade não apenas em relação ao seu estado mais elementar, mas em si mesma, como algo independente dele: como aluno, posso ver no professor um mero empregado que é sustentado pela minha mensalidade. Contudo, posso ver no professor o mestre que estimula meu intelecto a percorrer o trajeto entre a ignorância e o saber.
Por fim, o homem, ao pensar, conhece a si próprio como sujeito, como um eu. A inteligência, por ser reflexiva, permite que nos reparemos e nos descubramos em meio ao “nosso mundo”. Saber-se no meio do mundo é reconhecer que a realidade não é composta de entes isolados, mas deve ser contextualizada para apreender totalidades de sentido.
Nessa vida que a gente tem que pensar, como ensina o bardo, nossos registros são como as notas musicais numa partitura: variam de altura, duração e intensidade. Analogia um tanto apropriada para estas terras de Carlos Gomes. E a notação do nosso ser agradece, quando o irracionalismo, o pessimismo e outras tipologias pós-modernas de desrazão não falam mais alto, pois o homem, quando reflete, é plenamente capaz de ser livre, furtando-se das paixões dos sentidos.
V – Pessoa humana: eu, o outro e a linguagem
Uns versos de uma canção popular, que já começa a ter a pátina do tempo, exaltam, com a simplicidade e a dignidade de uma antologia literária, o outro e a linguagem: “Palavra não foi feita para dividir ninguém/ Palavra é a ponte onde o amor vai e vem”. A alma exprime-se pelo corpo e, especialmente, pela linguagem, até porque o homem, como ser social, precisa de sinais e símbolos para se corresponder com os outros. Eis duas outras dimensões da pessoa: a transcendência e a comunicação.
Nós falamos. Alguns falam além da conta, ébrios ou não. Outros falam sozinhos. Outros dormindo. Há quem fale com as paredes. Minha filha de cinco anos deve sofrer de logorréia: ela fala ininterruptamente da manhã até à noite. Shakespeare saiu-se com esta pérola, a de que “sua fala é um banquete fantástico em que abundam os pratos esquisitos” (Muito barulho por nada, II/3).
Comunicamo-nos com os outros de várias formas. Quanto não diz um singelo olhar entre esposos, um sorriso maroto levemente esboçado pelo filho travesso, um silêncio rotundo num velório, um gesto apaixonado de um namorado ou mesmo um aceno afetuoso ou ofensivo!
Inúmeras são as vias da linguagem: as “pontes” que alcançam os outros, uma via de mão dupla onde trafegam as alegrias e as dores, os ódios e os amores, as certezas e hesitações, as esperanças e ilusões. A linguagem tem sido objeto de uma progressiva atenção por vários ramos do saber desde o começo do século passado.
Alguns chegam a definir o homem exclusivamente como um ente que fala, com a tendência a unir pensamento e linguagem, estudando a dimensão intelectual humana a partir desta relação. A razão abstrata e a lógica científica, tidas como as linguagens humanas por excelência, passaram a ter a companhia das linguagens cotidianas do “mundo da vida” (Husserl e Habermas), pois a fala é mais ampla que a ciência, já que abrange os âmbitos do trabalho e da convivência social e cultural.
Assim, a linguagem é um método humano, não instintivo, de comunicar ideias, emoções e desejos por meio de símbolos convencionados. E sua forma é o pensamento, porque um falar sem pensamento não comunicada nada, como algumas obras de arte pós-moderna. Falar e pensar acontecem ao mesmo tempo, mesmo naquelas situações em que falamos sem “pensar” antes...
O homem não é uma pedra. Possui uma interioridade a transmitir e tem o conveniente de que alguém recebe aquilo que é expressado. Aqui entra o outro. Por ser pessoa, o eu necessita do encontro com o tu. Os filmes infantis comprovam isso. Os selvagens de ficção, como o Tarzã e o Mogli, só sobrevivem em seus contos porque eles falam com os animais personificados.
A pessoa, sem o próximo, acabaria por se frustrar radicalmente, porque não teria um destinatário. Aquela interioridade não seria transmitida. Seria uma vida estéril, convertida numa sombra entre os viventes. No mundo grego, isso era a pena de desterro: perder a pátria, ir para outro lugar, com outra língua e outros costumes, era pior que morrer, porque era, de certa forma, uma morte em vida. Hoje, o desterro, em muitas sociedades, é composto por uma multidão de solitários...
A pessoa, ao longo da vida, precisa de outras para aprender a reconhecer-se a si mesma, desenvolver sua vida e alcançar sua plenitude. Originariamente, a expressão “pessoa” significava a máscara do ator no teatro, o rosto do representado. O outro é sempre um rosto que se mostra para nós.
Como uma criança que aprende a conhecer o rosto da mãe antes de seu próprio rosto. O sorriso materno é o seu primeiro contato com a realidade. “Dos nossos planos é que tenho mais saudade/ Quando olhávamos juntos na mesma direção/ Aonde está você agora além de aqui, dentro de mim”, já cantava o poeta de minha geração.
Muitos estudiosos sérios, como John Rawls, concebem uma sociedade ideal como aquela na qual todos dialogam livremente. Todos, isto é, o eu e o tu. Dialogam, ou seja, falam. Quando uma estrutura, como a família ou a sociedade, tem problemas, muitas conversas são necessárias para que as pessoas entrem num consenso. Porém, não basta reunir-se. Dialogar é compartilhar a interioridade, abrir-se ao semelhante, estar disposto a escutá-lo.
VI - Pessoa: reconhecimento e dignidade
A filosofia ensina que todo ser humano é pessoa. Isso é teoria. Contudo, na prática, a constatação de que este ou aquele ser humano é uma pessoa não é mediada pela pura especulação metafísica, a qual limita-se a indicar os princípios primeiros e os fins últimos da realidade e do agir.
A par disso, o direito, na tarefa de determinação da noção de dignidade desta mesma pessoa, estabelece seu estatuto e, por ser um ramo do saber envolto numa dimensão prática, deve especificar as condições de efetividade da mesma dignidade.
Em suma, não basta declarar pomposamente que todo cidadão tem direito à saúde como efeito do princípio da dignidade humana. É preciso criar condições materiais para que o sistema público ofereça uma estrutura condizente, o que, certamente, não se ajusta lá muito com os corredores “terminais” dos hospitais do SUS...
Logo, a filosofia e o direito orientam nossa razão na prática cotidiana. Num primeiro momento, a razão diz à nossa consciência que o sujeito que está diante de nós é um ser humano, seja um embrião, um assassino contumaz, um idoso inválido ou um doente com câncer terminal.
Depois, convoca o nosso agir a uma atuação consequente, isto é, a identificação do vizinho, do porteiro ou do motorista, numa situação concreta, como pessoa, por meio de uma postura denominada reconhecimento.
No mundo empírico, reconhecemos imediatamente alguém como um ser humano. É um fenômeno universalmente histórico, porque todo sujeito, apelando aos seus sentidos e ao senso natural de socialização, consegue distinguir um ser humano dos demais seres vivos.
A dificuldade aparece no momento em que nossa consciência acusa a presença não só de um homo sapiens, mas de uma pessoa, porque isso traz inúmeras consequências normativas. Perenes, porque são devidas enquanto aquele ser humano for pessoa, ou seja, da fecundação até o caixão. Irrenunciáveis, pois a ninguém é dado abrir mão, sob pena de imperar o arbítrio do mais forte. E irrevogáveis, já que decorrem da própria natureza humana.
Assim, o reconhecimento acima mencionado consiste em considerar o ser humano como pessoa. Como ser em si, a pessoa é um todo e uma realidade antropológica única e não a parte de um sistema ou de uma estrutura, como nos regimes comunistas, na visão marxista de trabalho ou como efeito das correntes antropológicas materialistas.
Como um ser com outros, a pessoa é um ser que se relaciona com seu semelhante. É o outro que limita as tendências e os instintos que todos carregamos. Antecipando a reação de aprovação ou de desaprovação dos pais, a criança forma um ponto de vista externo a si e, logo, distancia-se de suas inclinações e age por si mesmo. O ideal de felicidade humana está ligado ao amor romântico, à família e aos amigos. Como efeito desse atributo, a pessoa porta consigo a exigência de reciprocidade.
Como ser para si, a pessoa é autofinalizada, ou seja, dispõe de uma natureza humana comum a todos os seres, contudo realiza seus dados antropológicos (como a razão, o afeto e a sociabilidade) de um modo particular. O que é Sócrates? Sócrates é um ser humano. Quem é Sócrates? Sócrates é esta pessoa.
Duas afirmações verdadeiras que designam aspectos diferentes do mesmo ser, sintetizadas por Spaemann como “quem somos não se identifica com o que somos”. Como resultado dessa condição, o homem deve ser respeitado como um fim (Kant).
No momento em que se dá o reconhecimento do outro como pessoa, afirma-se, ao mesmo tempo, uma objetiva dignidade decorrente desta condição e impõe-se uma certa e vinculante atitude. Quando estou diante do rei Pelé, vou me comportar de forma compatível com sua dignidade, decorrente do valor de ter sido o maior jogador da história do futebol.
Esta valiosa identidade não é algo subjetivo, que me perdoem os argentinos, remetendo-lhes às estatísticas dos títulos e à beleza e singularidade de seus gols. A dignidade é, assim, o valor objetivo de uma identidade. E, no caso do ser humano, esse valor objetivo deriva do ser em si, do ser com outros e do ser para si.
Se o reconhecimento é a consideração do ser humano como pessoa, a dignidade, por sua vez, expressa a exigência desse reconhecimento por cada um de nós sempre que nos deparamos com o outro. Ontem, hoje e sempre.
VII - Pessoa: cientificismo
No mundo ocidental, vivemos numa época em que o conhecimento científico seria o único método válido de apreensão da realidade que nos cerca. A ciência, sobretudo a experimental, tem a nobre e singular tarefa de explicar os fenômenos da vida real, ou seja, daquilo que aparece para nós e é controlável por certos critérios.
Sabe-se que se está defronte a um arado, porque suas características sensíveis (estrutura rígida, com uma certa forma e finalidade de lavrar a terra antes da semeadura) permitem identificá-lo como tal.
Então, com base nesse conceito, o arqueólogo e o historiador tentarão determinar se uma armação de galhos fossilizados ou uma carcaça de metal pré-histórica com um engate para tração animal foram ou não um arado.
Quando a ciência pretende ir além disso e resolve querer explicar absolutamente tudo, inclusive comportamentos humanos, em termos puramente científicos, transforma-se em cientificismo, uma espécie de fé cega no poder da ciência.
Uma visão deturpada atual, porque os fundadores da ciência moderna compreendiam que este saber nunca ofereceria um conhecimento completo e absoluto da vida e da natureza, uma espécie de discurso totalizador da realidade.
Eram conscientes de que a racionalidade científica tem uma dimensão concreta e muito especializada, inventada para obter unicamente o tipo de conhecimento para o qual fora criada e aplicável somente para aqueles aspectos do mundo que podem ser captados pelas noções abstradas da ciência.
A peculiar razão da ciência não é a razão natural da vida ordinária, rica em sua complexa trama de fios e informada por inúmeras outras variáveis. Por isso, a cultura cientificista dominante rejeita o conceito de pessoa, porque a ciência é absolutamente incapaz de apreender a pessoa.
O ser humano, como espécie, pode e deve ser estudado pela ciência, pois seu campo de estudo se dá justamente sobre a essência (ou universal). E a realidade é composta por inúmeras delas, como a dos vegetais e a dos animais. O ser humano, como pessoa, não é uma essência, mas um existente e, logo, um particular, o que o deixa fora da área de especulação da ciência.
A existência de algo só pode ser captada por um ato de percepção. E a maneira de a existência fazer-se presente à nossa razão não ocorre por meio de um conceito, de uma pura abstração, mas por intermédio de um juízo. Voltemos ao exemplo do arado. Há um conceito de arado. Contudo, a existência deste arado que vejo aqui e agora não é fruto de um conceito, mas de um juízo que faço: este arado existe.
Quando olho para meu semelhante, percebo nele, pelos meus sentidos, que ele tem uma natureza humana, igual a minha e que a ciência já se ocupou em definir pelo conceito de ser humano. Mas esse mesmo semelhante atende pelo nome de Pedro e, visto assim, não pode ser definido cientificamente, por ser uma pessoa determinada. O perigo do cientificismo, ao reduzir a pessoa concreta somente à natureza humana, ou seja, substituir o particular pela essência, está em provocar a naturalização do ser humano.
Esse fenômeno acaba por redundar numa antropologia naturalista, como aquela estudada na Grécia Antiga, que leva à hierarquização e ao arbítrio e, no limite, à exclusão e à eliminação, porque sempre haverá graus de atualização da natureza. Aqueles que a realizam de uma forma mais plena ficarão acima dos outros. Quem não conseguir, será subordinado ou excluído.
Na polis grega, o cultivo da razão foi o único critério usado para estabelecer a distinção social. O ser humano era o animal racional e político: nessa classificação, só havia lugar para o cidadão grego culto e rico. Os trabalhadores, os escravos e os estrangeiros, por não praticarem aquele cultivo, eram considerados como uma anomalia antropológica...
Identificar uma pessoa exclusivamente com os atributos do ser humano é negá-la como pessoa, porque tais atributos elucidam o que ela é e não quem ela é. O ser humano, como pessoa, é a existência irrepetível de um sujeito que tem aqueles atributos. Vai além deles e, como diz o poeta, a pessoa é um mistério que não se conhece. Apenas se reconhece como tal, pois transcende às definições.
VII - Pessoa: valor absoluto
Talvez a mercantilização de nossa sociedade seja uma das várias causas do relativismo reinante. O supérfluo torna-se necessário, graças à criatividade da maioria dos marqueteiros, os quais, por sua vez, reduzem-nos à condição de meros seres que consomem. De tudo.
E quando tudo se transforma em mercadoria, tudo passa a ter um preço, um valor relativo a um padrão, uma moeda, a qual também é relativa, como se pode observar nas oscilações do mercado de câmbio. Num ambiente em que tudo é mercadoria e tudo tem um preço, não se admire: tudo passa a ser relativo. Inclusive o homem.
Hobbes já havia observado isso no início da Idade Moderna, ao ter afirmado que “o valor de um homem, tal como o de todas as outras coisas, é o seu preço (...). Portanto, não absoluto, mas algo que depende da necessidade e julgamento de outrem (in Leviatã, X)”.
Nessa perspectiva relativista, pretender declarar a dignidade da pessoa humana tem o sentido de considerar o ser humano como absoluto. Mesmo no campo do direito, onde se ensina que não existem direitos absolutos. Concordo, com uma ressalva: o direito à vida, pressuposto para o exercício dos demais direitos. Mas, ao que parece, mesmo esse direito já passou a ter um preço...
Entender o ser humano como absoluto significa captar sua condição de ser para si, definido por uma referência própria e singular que jamais pode ser substituída por outra referência externa, quero dizer, o ser humano não tem sua identidade como pessoa dependente de fatores estranhos a si.
A etnia, a classe social, o Estado, a descendência, a utilidade social, a estrutura, a dominação, a vontade de poder e outros tantos referenciais exteriores que são falsos absolutos. Como ser para si, dessa forma, o valor da pessoa é incondicional, uma vez que não pode ser vinculado a um referencial de fora. É fundada em si e tal fato produz efeitos relevantes para os outros. O respeito é o primeiro.
Respeitar a pessoa é a única atitude digna que lhe devemos, porque, ao fazê-lo, reverencia-se a si mesmo. Quando essa deferência é negada, rebaixamo-nos e, logo, surge a degradação. Essa negação pode se constituir numa forma de opressão, numa maneira de despojar a pessoa daquilo que a faz ser ela mesma e que lhe confere uma identidade única.
Os processos totalitários sempre foram pródigos nesse trabalho de opressão e despojamento. De modo consciente, planejado, gradativo e sistemático, apelando para um predicado para conceber a noção de pessoa, sempre pautado em termos “científicos”.
Quando o regime nazista definiu o predicado “raça” (ariana), como o filtro de seleção de um povo, quase não sobraram judeus em Dachau, Treblinka e outros tantos campos de concentração. Quando o regime comunista escolheu o predicado “classe” (proletariado), a linha de produção foi mais cruel: o resultado da reengenharia social significou no recorde histórico de cadáveres ideológicos...
Hoje, os movimentos totalitários estão sepultados, mas a opressão e o despojamento ainda permanecem e voltadas para outros seres humanos. Boa parte da bioética atual pergunta se embriões, doentes mentais, inválidos sociais e pacientes em coma são pessoas. Quando se levanta a questão sobre o caráter de pessoa de um ser humano, a resposta já está embutida na pergunta.
Colocar na mesa do debate esse questionamento é relativizar tais seres, já que, tentar se valer de uma argumentação para resolver a condição de pessoa de um ser humano, é tornar esse caráter dependente dos argumentos e, portanto, relativo.
É impossibilitar o reconhecimento de seu valor absoluto, de alguém que está além de qualquer argumentação, pois sua condição estaria carente de uma “fundamentação”. Só o relativo demanda uma fundamentação e não o absoluto. O absoluto é o fundamento.
A pessoa é um fim em si mesma. Eis o princípio fundamental de uma ética e uma antropologia personalistas. Kant já nos alertava para trabalhar “de modo que trates à humanidade, seja na tua própria pessoa ou na de outro, sempre como um fim, nunca apenas com um meio”. O valor da pessoa é absoluto. E não relativo, porque quando tudo se transforma em relativo, tudo, portanto, passa a ser permitido. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br)