572 - A felicidade é um produto de consumo?
LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES - Desembargador
O mercado oferece abertamente a felicidade. Nos anúncios publicitários, por exemplo: “Pão de açúcar, lugar de gente feliz”. Nos nomes de produtos e nas promoções como a dos brindes no Mc Lanche Feliz ou do Mc Dia feliz do Mc Donald´s. O mercado oferece também a paixão, que, claro, leva à felicidade: “Grandes paixões a gente nunca explica. Apenas sente. Seja sócio Premiere FC e viva a emoção de ver as conquistas do melhor time do Brasil: o seu! Sky.”. “Paixão Sem Freio, Tanque Cheio”, da Baterias Moura etc.
Examinando-se os anúncios publicitários, como regra, o que se vê são pessoas bem sucedidas, sempre sorridentes, alegres, cantando, se abraçando, passeando, dançando, enfim, felizes. E não é para isso que os produtos e serviços são oferecidos? Para que as pessoas se sintam bem, se satisfaçam, atinjam seus sonhos, cheguem ao patamar desejado, isto é, se sintam felizes?
Para a insatisfação com o corpo, partes postiças; para as rugas, cremes miraculosos; para as gordurinhas indesejadas roupas adequadas ou academias repletas de promessas ou, ainda, dietas que adornam a esperança; tudo, naturalmente, para que, no final das contas, nós consumidores atinjamos um excelente patamar de vida. Férias? É o momento de suprema felicidade. Quer emoção? Paixão? Não perca as finais do campeonato de futebol e sinta-se sublime. Pacotes de viagem, hotéis, lugares paradisíacos ou simplesmente indispensáveis (Paris, por exemplo, ou Nova York). Desfrutar os momentos de lazer, passeando à beça e conhecendo muitos lugares ou simplesmente não fazendo nada etc; mais uma vez, para quê? Ora, sermos felizes.
Se nós fossemos capazes de conseguir olhar por trás dos bens adquiridos, além dos serviços, embaixo das embalagens, dentro da química dos alimentos e dos cosméticos, se pudéssemos ver realmente como as coisas são, numa espécie de raio X mágico que enxergasse o espírito dos produtos e dos serviços, certamente encontraríamos um anjo (!) sorridente que nos entregaria a chave da porta de entrada da cidade feliz; um lugar onde poderíamos, afinal, respirar sossegados e em paz, essa que talvez seja a irmã da felicidade.
Mas, será que esse anjo existe? Ou se trata de mais uma ilusão oferecida pelo mercado? O modelo de produção muito bem engendrado foi capaz de, aos poucos, encontrar e preencher certos espaços vazios encontrados na alma humana. As pessoas foram muito bem estudadas em seus anseios, suas dificuldades, seus desejos, suas necessidades, seus comportamentos etc. Além disso, a vida social foi esmiuçada e acabou por ser penetrada pelo modelo de produção capitalista. Desse modo, aos poucos, o mercado foi avançando no meio social e penetrando no coração das pessoas. Os espaços encontrados foram sendo preenchidos pelos produtos e serviços oferecidos no mercado.
Atualmente, o poder do mercado é tamanho que praticamente nada se lhe escapa. Como já demonstrei em vários artigos meus aqui publicados, o modelo de produção acabou se imiscuindo em praticamente todas as esferas sociais, afetando relações pessoais, de emprego e sociais das mais gerais, o sistema educacional, os esportes etc e também a própria relação do indivíduo com ele mesmo.
A propósito, acaba de sair em português o livro do professor Michael J. Sandel, intitulado “O que o dinheiro não compra” (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira), que apresenta dezenas de exemplos de casos de invasão do mercado em esferas antes jamais imaginadas. Para ficarmos com apenas alguns exemplos relatados no livro:
Upgrade na cela carcerária: US$ 82,00. Em Santa Ana, Califórnia, e tantas outras cidades, os infratores não violentos podem pagar por acomodações melhores – uma cela limpa e tranquila na prisão, longe das celas dos prisioneiros não pagantes;
Acesso às pistas de transporte solidário: a partir de US$ 8,00 nas horas de rush. Para tentar diminuir o congestionamento do trânsito, Minneapolis e outras cidades estão permitindo que motoristas desacompanhados usem as pistas reservadas ao transporte solidário a taxas que variam de acordo com a intensidade do tráfego;
Barriga de aluguel indiana: US$ 6.250,00. Os casais ocidentais em busca de uma mãe de aluguel recorrem cada vez mais à terceirização da Índia, onde a pratica é legal e o preço corresponde a menos de um terço das taxas em vigor nos Estados Unidos;
Direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção: US$ 150.000,00. A África do Sul passou a autorizar fazendeiros a vender a caçadores o direito de matar uma quantidade limitada de rinocerontes para incentivá-los a criar e proteger a espécie ameaçada de extinção;
O direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera: (€ 13,00). A União Europeia mantém um mercado de emissões de gás carbônico que permite às empresas comprar e vender o direito de poluir.
Tenho também aqui tratado, mais de uma vez, do processo de controle que joga os consumidores numa alienação que os impede de perceber os reais interesses em jogo. Por isso que, muitas vezes, encontram-se consumidores com problemas financeiros adquiridos em função de gastos com compras supérfluas e sem nenhum interesse ou função pessoal.
Não prosseguirei por essa via porque minha intenção aqui nesse artigo é desvendar ou, ao menos, levantar uma discussão sobre se por trás desse modelo de produção, com essa enorme profusão de produtos e serviços, o que se esconde é uma promessa de encontro da felicidade. Ou, dito de outro modo, será que o sucesso do mercado de consumo no atual modelo capitalista ocorre porque, no fundo, o que se está oferecendo, ainda que não declaradamente, é a felicidade?
É possível ilustrar esse processo de oferta e também controle com vários exemplos, mas ficarei apenas com um que sempre me chamou atenção e que é muito peculiar. Aqui na cidade de São Paulo é comum encontrarmos pendurados nos postes anúncios de videntes, médiuns, leitores de búzios etc. que prometem resolver, dentre outros, os problemas amorosos dos consulentes. Intrigado com esses anúncios, resolvi fazer uma pesquisa e, para minha surpresa, descobri que não só os jornais de grande circulação como revistas semanais trazem páginas com muitas ofertas desse tipo. Algumas são incríveis, mas talvez reflitam o desespero do consumidor: “Amor perdido. Trago de volta quem você ama, melhor que era antes”. Existem dezenas de exemplos oferendo o encontro do amor, a salvação do casamento etc.
Se essas ofertas existem em grande profusão é sinal de que há um público consumidor interessado nelas. E isso demonstra que, realmente, o mercado conhece profundamente o consumidor em suas dificuldades, necessidades, anseios, desejos etc. Mostra, também, que por trás das ofertas – não só nestas como em muitas outras – existe uma promessa de encontro da felicidade.
Do ponto de vista do consumismo, isto é, das compras exageradas de produtos e serviços, muitas delas desnecessárias, isso talvez explique um círculo vicioso contínuo e interminável: o consumidor vai ao mercado procurar a felicidade e compra, para tanto, sapatos, relógios, roupas, viagens, consultas em videntes etc., mas, como nem sempre consegue ser feliz por esse meio, continua comprando na esperança vã de atingi-la.
Como diria meu amigo Outrem Ego, “essa frustração gerada pelo mercado de consumo, paradoxalmente, alimenta o próprio mercado de consumo, fazendo crescer a indústria química de medicamentos contra ansiedade, ´stress´, angústia e enchendo os consultórios dos médicos, psiquiatras, psicanalistas, psicólogos etc.”
3/9/2012