580 - Razoabilidade e proporcionalidade: instrumentos de racionalidade discursiva


FABIO HENRIQUE FALCONE GARCIA – Juiz de Direito


Reasonability and proportionality: instruments for discursive rationality

Resumo: O artigo pretende fazer uma análise comparativa entre os princípios constitucionais de proporcionalidade e razoabilidade, destacando as diferenças estruturais e estabelecendo as aproximações teóricas, a fim de identificar a funcionalidade do uso desses princípios no discurso jurídico, como instrumentos destinados ao incremento da racionalidade argumentativa. Assim, inicia-se com a análise isolada de cada princípio, comparando a posição doutrinária dos principais autores que se debruçaram sobre o tema para, ao final, se elaborar uma conclusão que vincule o uso desses postulados à dialética discursiva necessária para a busca de decisões mais próximas da justiça, no sentido apresentado por Derrida. 

Palavras-chave: Constitucional – Proporcionalidade – Razoabilidade – Racionalidade – Discurso. 

Abstract: This article intents to do a comparative analysis of the constitutional principles of proportionality and reasonability, highlighting the structural differences and establishing the theoretical approaches, in order to identify the functionality of the use of these principles in legal speech as instruments for the increase in rational argument. Therefore, it begins with the isolated analysis of each principle, comparing the doctrinal position of the principal authors who have studied the subject in order to elaborate a conclusion that links the use of these postulates to the discursive dialectics necessary for the search of decisions close to a sense of justice, as Derrida presented. 

Key-words: Constitutional - Proportionality - Reasonableness - Rationality - Speech. 

Introdução

Os princípios de razoabilidade e proporcionalidade guardam estreita relação semântica e histórica. Costuma-se relacionar o surgimento desses princípios (Alexy,  2008; Silva, 2010; Ávila, 2004)[1]  ao desenvolvimento dos instrumentos de tutela dos direitos fundamentais. Assim, predomina na doutrina a atribuição da origem do princípio da razoabilidade ao desenvolvimento, no direito anglo-saxão, da garantia do devido processo legal, ao passo que o princípio da proporcionalidade teria sido desenvolvido pelo direito alemão, no século XX (Cambi, 2009).

Barroso aproxima as expressões, considerando que em ambas subjaz a ideia “de uma relação racional entre os meios e os fins, abrigando valores comuns como racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição aos atos arbitrários ou caprichosos”, a ponto de serem conceitos intercambiáveis (Barroso, 2010, p. 257-258).

No entanto, a aproximação conceitual não é unívoca. Tavares (2009), por exemplo, vê a proporcionalidade como critério desenvolvido tanto pelo direito norte-americano, como decorrência do devido processo legal, como pelo direito alemão, que a considerou norma constitucional não escrita; nada obstante, proporcionalidade e razoabilidade não se equivaleriam, faltando à razoabilidade uma relação de causalidade entre meio e fim. Cambi (2009, p. 463), em contrapartida, afirma que a razoabilidade depende da análise entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados (razoabilidade interna), além da legitimidade dos fins (razoabilidade externa) ao passo que a proporcionalidade teria uma estrutura racionalmente definida.

Parece-nos que, mesmo depois das ácidas críticas de Virgílio Afonso da Silva (2002) à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ainda faltam parâmetros doutrinários e jurisprudenciais capazes de identificar as causas que levam ao uso indiscriminado de um ou outro princípio.

Procuraremos examinar cada um desses “princípios” isoladamente, para, ao final, tecer considerações conclusivas sobre a aproximação teórica que pode ser feita em relação a seus usos, viabilizando uma estruturação mais objetiva do discurso jurídico argumentativo. 

1. Proporcionalidade

A proporcionalidade pode ser definida como um “postulado estruturador da aplicação de princípios que concretamente se imbricam em torno de uma relação de causalidade entre meio e fim” (Ávila, 2004, p. 43).

Para Ávila, não se trata propriamente de um princípio, nem de uma regra, mas de uma metanorma, que se situa, tal como a razoabilidade, num plano distinto daquele correspondente às regras (de conduta ou de competência) e princípios cuja aplicabilidade pretende estruturar. Em outras palavras, a proporcionalidade se insere dentre os postulados normativos, considerados “deveres estruturantes de aplicação de outras normas” (Ávila, p. 89), aptos a permitir verificar a violação a normas e princípios cuja aplicabilidade é estruturada através desse postulado.

Assim, como postulado, a proporcionalidade (e também a razoabilidade) somente é violada indiretamente. Por essa razão Silva, após discorrer sobre as tentativas de justificação do princípio no direito brasileiro, afirma que a “busca por uma fundamentação jurídico-positiva da regra da proporcionalidade é uma busca fadada a ser infrutífera”, na medida em que ela decorre não propriamente de um ou de outro dispositivo constitucional, “mas da própria estrutura dos direitos fundamentais” (2002, p. 43). Seguindo os fundamentos da teoria de Robert Alexy, Silva compreende a proporcionalidade como critério logicamente inerente à aplicação dos princípios e à realização do balanceamento entre eles, na hipótese de colisão. Na síntese de Ávila (2004, p. 113), exige-se o exame de proporcionalidade para aferir a juridicidade de uma “medida concreta destinada a realizar uma finalidade”.

A aplicação da proporcionalidade, segundo Alexy (2008, nota 84), compreende uma estrutura racional bem definida, através da observância de três regras que devem estruturar o discurso do operador. São elas: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

Por adequação, compreende-se a exigência de que a medida adotada tem de ser adequada a fomentar a finalidade constitucionalmente legítima que a justifica. Assim, Alexy apresenta o caso do cabelereiro que ingressou em juízo para contestar autuação que sofreu por manter máquina de venda automática de cigarros em seu estabelecimento, quando uma lei local exigia uma permissão, à vista da demonstração de uma necessária expertise para tal negócio. O Tribunal Alemão considerou inconstitucional a proibição, porque a medida não era adequada a proteger o consumidor contra prejuízos à sua saúde (Alexy, 2008, p. 588-589). Somente é possível se admitir uma restrição a determinada liberdade se e na medida em que a medida adotada foi adequada à otimização da persecução de um objetivo igualmente tutelado pelo ordenamento. Trata-se, pois, de um critério negativo, que se destina à eliminação de meios inadequados.

A máxima da necessidade, por seu turno, exige que “dentre dois meios aproximadamente adequados, seja escolhido aquele que intervenha de modo menos intenso (Alexy, 2008, p. 590)”. Assim, por exemplo, a tutela do consumidor pode ser obtida através do fornecimento de informações adequadas na embalagem, ao invés da proibição irrestrita da venda de produtos que contenham sabores artificiais. Em razão da máxima da necessidade, o legislador é compelido a adotar o meio que intervém com menor intensidade no âmbito de proteção do princípio que se encontra em colisão com aquele a que a norma pretende resguardar.

Finalmente, a terceira regra a seguir é a da proporcionalidade em sentido estrito. Trata-se de uma regra que expressa o significado da otimização em relação a princípios colidentes, expressa da seguinte forma por Alexy: “quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro (2008., p.593)”. Como esclarece Silva (2002, p.40), impõe-se, pois, realizar um “sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva. Dito de outra forma por Barroso (2010, p. 36), representa violação a essa regra se “o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha.

Para exemplificar, Silva imagina a hipotética situação em que o governo, para combater epidemia de Aids, determina realização compulsória de exames e prescreve a segregação dos infectados. A medida seria adequada (ou seja, combateria a disseminação) e necessária (em razão de sua máxima eficácia), mas o grau de violação dos direitos de liberdade e dignidade humana torna desproporcional a medida destinada à tutela da saúde pública (2002).

Importa diferenciar, por fim, sopesamento e proporcionalidade. Para Alexy (2008), o sopesamento corresponde ao critério da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, integra parte do exame da proporcionalidade. Silva sustenta que essa diferença reside no fato de que a proporcionalidade envolve sempre a análise de uma medida concreta, ao passo que o sopesamento pode ser aplicado quando a situação ainda não tenha sido objeto de ponderação pelo legislador (Silva, 2010).

Ponderação também não se identifica com sopesamento ou com aplicação da proporcionalidade. Barroso (2010) a concebe como técnica decisória destinada a operacionalizar a análise congruente de múltiplos elementos, a partir da importância e pertinência para o caso concreto. Na argumentação de Ávila (2004), representa “um método destinado a atribuir pesos a elementos que se entrelaçam, sem referência a pontos de vista materiais que orientem esse sopesamento[2]. A crítica que se faz à ponderação é que sua formulação vaga representa um topos argumentativo perigoso e pouco útil, nada mais do que uma estrutura exclusivamente formal e despida de critérios, cuja integração dependerá da aplicação dos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade.

Mas mesmo a proporcionalidade permite justificar decisões diferentes, conforme a linha de pensamento adotada por cada intérprete. De fato, a relação adequação-necessidade-proporcionalidade em sentido estrito envolve uma análise de correlação meio-fim, cuja percepção prática envolve inexorável recurso à discricionariedade (ou, em termos mais incisivos, à subjetividade) do operador. Segundo o estudo de Alexy (2008), o Tribunal Constitucional Alemão julgou constitucional a proibição de venda de cannabis sativa, em contraposição à liberdade geral de ação, apesar de não haver prova científica dos perigos associados ao seu consumo. Afirmou-se que, diante da falta de certeza sobre um ou outro caminho, teria o legislador prerrogativa para criminalizar a conduta, já que o caminho seria potencialmente adequado à satisfação de um objetivo legal. Aqui, o Tribunal permitiu a intervenção na liberdade constitucionalmente protegida a despeito da incerteza sobre a veracidade das premissas que levaram à proibição. Reconhece-se a validade de uma ação discricionária do legislador, relacionada à cognição dos fatos relevantes no trato de alguma questão. Haveria um princípio formal atribuindo ao legislador democraticamente legitimado competência para decidir sobre essas questões, nas situações de incerteza.

Essa decisão poderia ser considerada inconstitucional por operadores que se filiem à tese de que o consumo dessa substância pode ser permitido, à vista da falta de comprovação do malefício à saúde, justamente em razão da falta de observância da necessidade; no entanto, a argumentação do Tribunal Constitucional Alemão afirma observar, justamente, esse parâmetro, compatibilizando a proibição com a introdução de outra premissa argumentativa, relativa à competência do órgão legislativo para tratar de situações de incertezas.

Passemos, agora, ao exame da razoabilidade. 

2. Razoabilidade

Razoabilidade é termo de múltiplas acepções, dentre as quais Ávila (2004, p.103) destaca três, mais diretamente afetas ao discurso da hermenêutica jurídica:

Primeiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Segundo, a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir. Terceiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas. 

A primeira acepção da razoabilidade compreende estudá-la como instrumento de equidade. Segundo essa acepção, a razoabilidade deve servir de instrumento destinado a corrigir distorções que a aplicação da regra geral à hipótese concreta pode criar. Dois exemplos são apresentados por Ávila (2004, p.104-106): numa primeira situação, compreende-se desarrazoado negar conhecimento a recurso interposto por Procurador do Estado que não apresentou instrumento de mandato, já que a interpretação deve levar em consideração aquilo que normalmente ocorre, ou seja, a existência de mandato legal; numa segunda situação, compreende-se razoável afastar a incidência de norma tributária que excluía determinado regime jurídico a empresas nacionais de pequeno porte, justamente porque houve apenas uma importação esporádica de quatro pés de sofás, para apenas um sofá. A razoabilidade como equidade permite, pois, a adequação do caso concreto à norma geral.

Segundo o autor, a compreensão da razoabilidade como instrumento de harmonização entre as normas e as circunstâncias fáticas externas de aplicação, por seu turno, remete a uma exigência de vinculação do ato a ser analisado com a realidade: assim, considerou-se inconstitucional lei estadual que estabeleceu adicional de 1/3 de férias a servidores inativos, pois a condição de gozo de férias é incompatível com a inatividade. Mais que isso, compreende, também, a exigência de uma relação congruente entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada. Assim, considerou-se inconstitucional medida provisória destinada a ampliar prazo de decadência para propositura de ação rescisória por entes públicos, por não se considerar presente justificativa razoável para a diferenciação; também não se aceitou a validade de lei estadual que previa cômputo em dobro do tempo de trabalho de Secretários de Estado, para fins de aposentadoria, já que ausente causa concreta a justificar a diferenciação adotada (Ávila, 2004).

Finalmente, a razoabilidade impõe um dever de equivalência entre a medida adotada e o critério estabelecido como pressuposto para sua adoção.

Ávila procura, através dessas digressões, estabelecer a diferença fundamental entre a razoabilidade e a proporcionalidade, observando que esta se refere a uma relação meio/fim, caracterizada por uma perspectiva de causalidade (tal meio seria adequado e necessário para atingir tal fim?; noutros termos, tal fim seria consequência da adoção de tal meio?) ao passo que na razoabilidade a relação a ser analisada é de critério/medida: “uma qualidade não leva à medida, mas é critério intrínseco a ela (Ávila,2004, p. 111) ”.

Um exemplo recente pode servir para ilustrar essa distinção. O Supremo Tribunal Federal, reiterando posicionamento anterior, julgou inconstitucional exigência de inscrição na Ordem dos Músicos do Brasil como requisito para exercício profissional de atividade artística. O relator, Ministro Celso de Mello, entendeu ferir o princípio da razoabilidade a restrição legal ao exercício de profissão que representa manifestação de liberdade constitucionalmente assegurada, por entender que a intervenção estatal na liberdade profissional somente se legitima quando houver fundadas razões de interesse público, concernentes à proteção, à saúde e à segurança das pessoas em geral (Brasil, 2011). Embora o relator utilize concepção indistinta entre proporcionalidade e razoabilidade, vê-se que não se está diante de uma análise meio-fim, pois a restrição não é meio para qualquer finalidade estabelecida anteriormente. Trata-se de uma análise intrínseca sobre a regulamentação de profissão cujo exercício independe de qualificação técnica e que, por isso, prescindiria de qualquer requisito formal, tal como a inscrição em uma organização privada destinada a fiscalizar o exercício dessa atividade.

Para Barroso (2010), todavia, a acepção de Ávila  envolve uma construção doutrinária que dissocia o termo razoabilidade de suas origens, presentes no direito anglo-saxão e vinculadas ao desenvolvimento da ideia de devido processo legal. Em seu conceito, a razoabilidade compreende

[...]um mecanismo para controlar a discricionariedade legislativa e administrativa. (...) É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar. Há autores que recorrem até mesmo ao direito natural como fundamento para aplicação da razoabilidade, embora possa ela radicar perfeitamente nos princípios gerais da hermenêutica. (Barroso, 2010, p.259). 

Assim, a razoabilidade seria um mecanismo de adequação de sentido entre valores, fins sociais e meios a serem adotados, um mecanismo de persecução da justiça[3].

Barroso distingue entre a razoabilidade interna, que se identificaria com os predicados do princípio da proporcionalidade, compreendendo uma “relação racional e proporcional entre os motivos, meios e fins a ele subjacentes”, e razoabilidade externa, que depende da análise de “compatibilidade entre os meios e fins admitidos e preconizados pelo texto constitucional (Barroso, 2010, p. 259)”. É interessante a remissão que o autor faz quando analisa a proporcionalidade em sentido estrito, aos critérios aplicados pela jurisprudência norte-americana. Barroso (2010) lembra os testes de a) mera racionalidade; b) aferição severa; e c) nível intermediário. Parte-se da pressuposição de que a análise da proporcionalidade depende, também, dos interesses que estão em jogo. Assim, normas que não afetam diretamente direitos fundamentais, como normas de mercado, são submetidas ao teste da mera racionalidade, bastando que a medida seja destinada a um fim legítimo e seja minimamente adequada a satisfazê-lo. Se, todavia, a medida afetar alguma liberdade fundamental (liberdades de profissão e de manifestação artística, por exemplo), a constitucionalidade da medida depende da comprovação de se tratar de um fim imperioso (compelling objective) e de um meio estritamente necessário, ou seja, é preciso que não haja alternativas menos impactantes. Finalmente, há determinadas intervenções que, por não afetarem tão drasticamente direitos fundamentais (tais como regulamentação de horários para exibição de espetáculos, ou seja, que afetam liberdades, mas não impedem o seu exercício) reclamam a prova de que o fim seja importante e o meio seja substantivamente ligado à sua consecução.

Em conclusão, Barroso afirma que,

[...] o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos quando: (a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual (vedação ao excesso); (c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (Barroso, 2010, p. 261).

Silva (2002), contudo, critica essa identidade. Mesmo em sua vertente recente, baseada no substantive due process, a razoabilidade não poderia ser equiparada à proporcionalidade, pois depende apenas da exigência de compatibilidade entre meios e fins e da análise da legitimidade dos fins (razoabilidade interna e externa), o que corresponderia somente à exigência de adequação, ou seja, a uma das máximas do postulado da proporcionalidade.

3. Aproximação entre os conceitos de proporcionalidade e razoabilidade e utilidade para o discurso jurídico. Conclusão 

Do quanto exposto, temos que as expressões proporcionalidade e razoabilidade têm identidades e assimetrias que conduzem seu uso no discurso jurídico. A teoria dos princípios e a estruturação do conceito de proporcionalidade, a partir da doutrina de Alexy (2008), tendem a conferir objetividade ao discurso jurídico; noutros termos, cuida-se de estabelecer uma estrutura capaz de compatibilizar princípios conflitantes, viabilizando análise objetiva sobre a violação de direitos e garantias fundamentais, a partir de atos do Poder Público; compreende, também, uma estrutura discursiva que restringe a liberdade de atuação do operador do direito, impondo-lhe, assim, a observância de uma dada racionalidade.

Silva (2010) também constrói sua teoria dos direitos fundamentais em busca dessa racionalidade. Não se trata de perseguir a justiça, como conceito transcendental do correto, a fim de descobrir uma única solução adequada à multifária dimensão dos conflitos que envolvem princípios e regras no ordenamento. Ao contrário, Silva reconhece que a tarefa de interpretação não é cognitiva, mas decorre de um ato de vontade, de tal forma que a pretensão do autor se volta para “a elevação da racionalidade de um procedimento de interpretação e aplicação do direito (2010, p.147-148)”.

Para nós, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade se identificam precisamente nesse objetivo: são instrumentos de incremento de racionalidade ao discurso jurídico.

Mas, respeitado o posicionamento divergente, esses instrumentos não podem ser equiparados, pois possuem estruturas e funções peculiares.

A estruturação da proporcionalidade através de suas três máximas confere racionalidade às hipóteses concretas de colisão entre princípios (adotando-se, aqui, o conceito de princípio formulado por Alexy, supra). Tem fundamental importância porque estrutura de forma mais objetiva do que outros postulados o discurso argumentativo, viabilizando controle maior da racionalidade das fundamentações das decisões.

A razoabilidade tem outra função: ao contrário do que sustenta Silva em suas críticas, possui função estruturante da interpretação e aplicação das normas em geral. Nesse sentido, a identificação da razoabilidade com equidade representa mais do que mero topos argumentativo.

Villey revela que desde a antiguidade grega se reconhecia a necessidade de um critério de proporcionalidade como parâmetro de justiça e direito. Direito e justo, expressões que correspondem à dicção grega tò díkaion, representariam uma proporção – um análogon: “efeito de uma partilha proporcional (2007, p. 47)”. Também os romanos adotavam uma concepção dialética de direito, que reclamava o reconhecimento da proporcionalidade como critério decisório (Villey, 2007, p. 60). Mais recentemente, Siches (1998) e Perelman (2005) retomaram o critério da razoabilidade como instrumento de definição de soluções aceitáveis, ou não, juridicamente, em nítida apologia ao método dialético e à análise da estrutura argumentativa como capaz de adequar ou de estabelecer parâmetros de correção da atividade jurisdicional.

Siches (1998), invocando os realistas americanos, apresenta as deficiências da lógica tradicional dedutiva para solução dos múltiplos problemas de orientação da hermenêutica jurídica. Para o autor, a lógica tradicional não é adequada para tratar os problemas práticos do ser humano, e nem para cuidar das exigências do ordenamento jurídico, inclusive no que tange à interpretação do direito[4]. Ao contrário, a validade das normas de direito positivo estaria condicionada ao “contexto situacional em que se produziram e para o qual se produziram (Siches,1998, p.652)”; concepção esta convergente   com a de John Dewey que sustenta a necessidade de se compreender a atividade interpretativa através de uma lógica que “tenha seu centro de gravidade na consideração de suas consequências Siches, 1998, p.638)”. O autor retoma, pois, o conceito de equidade, formulado por Aristóteles, como predicado inerente à sua lógica do razoável. A equidade seria um instrumento destinado à interpretação razoável da lei, não à sua correção.

Não cabe aqui analisar as peculiaridades desses pensadores. Importa somente assinalar que a concepção de equidade de Aristóteles, retomada por Siches, pressupõe um direito que parta da ideia de justa proporção, justa partilha e justa distribuição de bens (Villey, 2007). A busca dessa equidade, por assim dizer, transforma esse princípio em um instrumento de justiça, no sentido apresentado por Derrida. Justiça, para o autor, é uma “experiência de alteridade absoluta (Derrida, 2010, p.55), inapreensível em razão de três circunstâncias: primeiro, porque a decisão, para ser justa, dependeria de uma liberdade que contraria a própria noção de direito, enquanto ordenamento calculável de condutas; segundo, porque em princípio, a obtenção de uma decisão plenamente justa pressupõe a submissão à regra de algo que é incalculável, indecidível, portanto. Dirá Derrida: “se há desconstrução de toda presunção à certeza determinante de uma justiça presente, ela mesma opera a partir de uma “ideia de justiça” infinita, infinita porque irredutível, irredutível porque devida ao outro (Derrida, 2010, p. 49)”; em terceiro lugar, a tentativa de apreender a situação do outro depende de uma busca inesgotável de conhecimento dessa situação, que é obstada pela urgência do momento da decisão. Mas, como então vincular a razoabilidade à justiça, se esta se apresenta como inalcançável? Em sua bela palestra, Derrida explica que a justiça se distingue do direito, numa relação dialética conflituosa entre a calculabilidade do direito e a dimensão incalculável de uma experiência de alteridade que implica considerações circunstanciais que não podem ser estabelecidas na forma de uma regra geral. Buscar a equidade, nesse sentido, significa buscar a multiplicidade de fatos e relações que compõem as capilaridades de uma situação determinada, viabilizando conhecer a condição do outro, que está sob julgamento. A justiça pode não existir como tal, mas se apresenta como um horizonte que, linguisticamente, pode ser perseguido através do recurso à razoabilidade.

A razoabilidade, nesse sentido, afasta-se do rótulo de mero topos, para compreender a possibilidade de trazer ao discurso jurídico contemporâneo o recurso ao método dialético; permite, também, reconhecer certa racionalidade à lógica que envolve decisões judiciais referentes a conflitos difusos, de natureza polissêmica[5]. Noutros termos, o estudo da razoabilidade e seus predicados, especialmente no que tange à aproximação com a equidade e à vinculação à realidade, representa forte contributo à racionalidade das novas questões decisórias relativas a interesses difusos, que foram alçados à categoria de direitos fundamentais nas Constituições contemporâneas, dentre as quais, a Constituição Federal de 1988.

Em suma, razoabilidade e proporcionalidade não são sinônimos. Proporcionalidade, como princípio constitucional, representa uma metanorma destinada a viabilizar análises referentes à constitucionalidade ou não de medidas concretas, através da aferição bem estruturada das máximas de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Já a razoabilidade compreende expressão mais fluida, mas igualmente importante, representando nexo entre as prescrições abstratas e o contexto multifário ao qual o intérprete e a situação objeto de análise estão inseridos. Se é certo que a razoabilidade é menos estruturada como princípio, também não se pode deixar de afirmar que sua compreensão pode ter consequências tão significativas quanto a proporcionalidade para a estruturação dos novos direitos fundamentais previstos nas constituições contemporâneas. 

Referências. 

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, 1ª edição. São Paulo: Malheiros, 2008, 669 p.;

ÁVILA, Humberto Bergmann, Teoria dos princípios. 4ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004, 137 p.;

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999;

_________. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª edição. São Paulo, Saraiva, 2010, 453 p.;

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 635.023 ED/DF. Rel. Ministro Celso de Mello, j. 13/12/2011, disponível em:

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1730429, último acesso em 20/03/2012. 

CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, 527 p.. 

DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010, 145 p.; 

PERELMANN, Chaïm. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005, 722 p.;

SÍCHES, Luís Recaséns. Tratado general de filosofia del derecho. 13ª edição. México: Editorial Porrúa, 1998, 717 p.;

SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In Revista dos Tribunais, 798 (2002): 23-50;

_________. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010;

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, 1364 p.;

VERÍSSIMO, Marcos Paulo. A Judicialização  dos conflitos de justiça  distributiva no Brasil: o processo judicial no pós-1988. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2006, 264 p.;

VILLEY, Michel. O Direito e os direitos humanos. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2007, 181 p.


[1] A definição de proporcionalidade ou razoabilidade como princípios tampouco é unívoca, até porque a própria definição de princípio não o é. Robert Alexy compreende princípios como normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. São, pois, mandamentos de otimização (2008, p. 90). Partindo dessa acepção, a proporcionalidade não seria tecnicamente princípio. Assim, Alexy a trata como máxima (ob. cit., 2008 p. 116 e ss.). Virgílio Afonso da Silva afirma ser uma regra, porque impõe um dever definitivo, embora não seja propriamente uma regra de conduta (2010, p. 168). Já Humberto Ávila a trata como postulado normativo aplicativo, em razão de se destinar à aplicação de outras normas, sendo, portanto, uma metanorma (2004, p. 89). Retomaremos a questão adiante. 

[2] Ponderação, para Humberto B. Ávila (2004, p. 94 e seguintes), corresponde a um postulado normativo inespecífico. Os postulados, para o autor, são deveres estruturais que estabelecem a vinculação entre elementos e determinação uma relação entre eles. Assim, quando se fala em ponderação, pensa-se em sopesamento de elementos, sem que haja indicação de como será feito esse sopesamento. A mesma indefinição pode ser aplicada aos postulados de concordância prática e de proibição ao excesso; isso, contudo, já não ocorre com os postulados específicos, dentre eles proporcionalidade e razoabilidade.

[3] Não se ingressará, aqui, na difícil tarefa de definir o que seria justiça ou se é possível vislumbrar um ideal de justiça transcendental (“a” justiça).

[4] Siches afirma que la logica tradicional o físico-matematica no es adecuada para tratar la vida humana ni sus problemas prácticos, por conseguinte, tampoco para los menesteres jurídicos, entre os quais figura la interpretación del Derecho (1998, p.642).

[5] A respeito da adoção da lógica distributiva para solução dessa espécie de conflitos, ver Veríssimo, 2006.


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