583 - A presença do mito na sociedade capitalista contemporânea


LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador


Numa propaganda recente da Natura, aparece uma personagem fazendo uma enquete pelas ruas. Ela entrevista as pessoas, perguntando “É mito ou verdade?”. Num dos anúncios, ela diz mais ou menos isso: “Se você usar sempre o mesmo perfume, com o tempo, você acaba deixando de perceber o cheiro, porque se acostuma com ele. É mito ou verdade?”.

A última edição da revista Agitação, editada pelo CIEE (nº 106-julho/agosto de 2012), traz estampada uma matéria de capa que diz o seguinte: “Mitos e verdades na caça a novos talentos”.

São apenas dois exemplos de como a sociedade contemporânea acabou transformando o substantivo mito no adjetivo falso. Aliás, mito tornou-se sinônimo de algo não verdadeiro, o que acabou gerando a falsa ideia (essa sim) de que não só aquilo que é mito não existe como não tem função. E a realidade do mito mostra algo muito diferente.

Com efeito, os filósofos, semiólogos e linguistas dizem que, ao contrário do que usualmente se pensa, o mito é uma realidade. Ele apresenta algo muito concreto e vivo. Aliás, é mais do que isso: o mito é uma fala real, que conta uma história sagrada e que apresenta um modelo exemplar.

“O mito é uma fala”[i] ,  afirma Roland Barthes. Naturalmente, como diz o semiólogo francês, não é uma fala qualquer.  Trata-se de um sistema de comunicação, de uma mensagem. E, como mensagem,  pode ser representada por um texto escrito ou oral, assim como por imagens. Desse modo, “a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isto pode servir de suporte a fala mítica”[ii] .

E se, de fato, Barthes tiver razão, como penso que tem, o mito, ao contrário de significar uma falsidade, expressa algo verdadeiro, ainda que as pessoas possam não perceber. Aliás, esse caráter de oculto do mito talvez seja uma de suas características mais marcantes nas sociedades contemporâneas. 

Para compreender o que quero dizer, cito o filósofo romeno Mircea Eliade. Buscando definir o mito, ele explica que este conta uma história sagrada. O mito “relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como,  graças às façanhas de Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir” [iii].

O mito narra uma história sagrada e verdadeira, que se refere ao ato de criação de alguma coisa.  “É o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, revelando a atividade criadora de um personagem sobrenatural, desvendando, portanto, acima de tudo, o caráter de sacralidade”[iv]   E, como diz o estudioso romeno, o mito “fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo significação e valor à existência”[v]

Importante frisar esse aspecto de sagrado do mito e também seu caráter exemplar, pois sua comunicação em tempos modernos é capaz de encantar, de seduzir, de envolver o espectador em função de sua essência misteriosa. “O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou heróis civilizadores”[vi] 

Do ponto de vista comportamental, o “mito representa um certo modo de estar no mundo”[vii]. Estudado no mundo contemporâneo, vê-se que suas conotações essenciais permanecem as mesmas: modelo exemplar, repetição, ruptura do período profano e integração do tempo primordial. As duas primeiras são, inclusive,  “consubstancias a toda condição humana”[viii]. Assim, por exemplo, as comemorações do Ano Novo ou das festas que marcam um “começo”; a necessidade de encontrar heróis (em vários locus, tais como na guerra, nas artes, nas competições, nas diversões públicas etc) e a imitação de suas ações; os grandes espetáculos como as touradas, as corridas e demais encontros esportivos, que têm um ponto em comum: “desenrolam-se num ‘tempo concentrado’, de uma grande intensidade, resíduo ou sucedâneo do tempo mágico-religioso”[ix] .

Aliás, não é à toa, que o capitalismo contemporâneo e seus sistemas de comunicação que visam à sedução e o controle dos consumidores, utilizam-se de várias formas míticas para apresentarem seus produtos e serviços. Os símbolos e rituais dos mitos estão presentes em vários modos de comunicação mercadológica que, por causa de suas funções primordiais e, por isso,  da capacidade de gerar enternecimento, empatia e magnetismo geram altos resultados junto ao público alvo. Os consumidores, deslumbrados, admirados e hipnotizados agem e se comportam do modo como os fornecedores esperam que eles se comportem. Voltarei em outra oportunidade a este assunto. Mas por ora, tendo em vista um grande evento que se inicia nesta semana em São Paulo, termino apresentando o relato de meu amigo Outrem Ego a respeito de um sonho que ele teve. 

Ele me disse que teve um sonho e que neste sonho sonhava que estava acordando.

Veja o que ele  contou: “Acordo e me vejo envolvido por dezenas de pessoas. Elas andam rapidamente, todas na mesma direção. Agitadas, dirigem-se a um imenso prédio. Sigo com elas e aos poucos esprememo-nos para adentrar ao lugar, passando por uma larga porta de metal dourado.

Ultrapasso-a e percebo que estou numa espécie de templo. Enorme, espaçoso.

Esse espaço amplo me atrai, sinto-me bem.

Lá dentro vejo objetos de arte que reluzem, brilham como ouro, ofuscam meus olhos como o sol do meio dia.

Deusas seminuas os protegem.

As pessoas aglomeram-se em volta desses objetos virtuosos. Elas conversam entre si e, mirando nos olhares delas, eu percebo a adoração reinante. São verdadeiros totens  portentosos, queridos, amados; são mais: são desejados.

Elas os tocam, os penetram e querem possuí-los. Este é o grande desejo: a posse.

Ouço um pouco das conversas: há ansiedade por tê-los, vontade de com eles se exibir. Pessoas há que por eles são capazes de muito; são capazes de venderem seus bens para poder tomá-los em troca. Endividar-se-iam apenas para pagar o preço de adquiri-los.  A disputa em torno deles é evidente.

Percebo que esses totens dão prestígio social; distinguem as pessoas que os possuem.

As pessoas que os obtêm, de certo modo,  se apaziguam, se acalmam: garantem seu ‘status’ na sociedade. Geram inveja nas outras pessoas. ‘Morrerão de inveja!’, disse um. ‘Veja-me agora, não sou o máximo?’, perguntou outro.

Eis o templo.

Eis a festa grandiosa.

Eis-me aqui diante de totens e deusas belíssimas.

‘Onde estou?’, pergunto a uma delas, que me responde:

‘Estás no salão do automóvel!’”

 

 

29/10/12



[i] Mitologias. RJ:Bertrand, 9ª. Edição, 1993, p.131.

[ii] Idem, Ibidem, p. 132.

[iii] Mito e Realidade. São Paulo: Perpesctiva, 3ª. Edição, 1991, p. 11.

[iv] Maria da Piedade Eça de Almeida, Mito: metádora viva?, in As razões do Mito.    Campinas:Papirus, Regis de Morais (organizador), 1ª. Edição, 1988, p. 63.

[v]  Idem, Ibidem, p. 8

[vi] O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.80.

[vii] Mitos, sonhos e mistérios, de Mircea Eliade. Lisboa:Edições 70, p.20.

[viii]  Idem, Ibidem, p. 21.

[ix]  Idem, Ibidem p. 23.


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