590 - Execução da duplicata virtual
CLEBER DE OLIVEIRA SANCHES - Juiz de Direito
1. Introdução
Nos últimos anos, a necessidade de agilizar a cobrança dos créditos pela rede bancária e a rápida evolução tecnológica na área da informática fizeram surgir a chamada duplicata virtual, ou duplicata escritural. Não se trata, na verdade, de nova espécie de título de crédito, mas de uma moderna forma de emissão da já tradicional e conhecida duplicata. Consiste no saque do título por meio magnético ou eletrônico, com remessa dos dados, em tempo real, à instituição financeira responsável pela cobrança ou pelo desconto. Essa tem sido, aliás, a praxe no comércio, uma vez que a materialização da duplicata em papel tem se tornado cada vez mais incomum.
É inegável que o novo sistema traz inúmeras facilidades para o emitente da duplicata e para a instituição financeira incumbida da cobrança. É possível até que traga vantagens para os próprios sacados ou devedores dos títulos. Todavia, sérios questionamentos têm sido feitos em relação à legalidade dessa espécie de título de crédito, sobretudo no tocante a sua executividade.
A finalidade deste artigo é jtamente debater sobre esses questionamentos, na tentativa de esclarecer as dúvidas existentes e chegar-se a uma conclusão a respeito do tema.
2. Características e procedimento para a formação da duplicata
Título de crédito de criação brasileira, a duplicata encontra previsão na Lei nº 5.474, de 18 de julho de 1968. Esse diploma autoriza o vendedor, nos contratos de compra e venda mercantil com prazo não inferior a trinta dias, firmado entre partes domiciliadas no território brasileiro, a extrair uma duplicata da fatura apresentada ao comprador, para circulação como efeito comercial (art. 2º). Igual faculdade é atribuída aos empresários e às sociedades empresárias, fundações e sociedades civis que se dediquem à prestação de serviços, que estão autorizados a emitir duplicatas das faturas relativas aos serviços prestados (art. 20).
Entre as características da duplicata, podem ser destacadas duas, que assumem especial importância por distinguirem-na dos demais títulos de crédito admitidos em nosso ordenamento jurídico. A primeira é que a duplicata é título causal, isto é, não pode ser sacada livremente, de acordo com o arbítrio das partes, para representação de qualquer espécie de crédito. Sua emissão somente é permitida nas hipóteses expressamente previstas na lei, quais sejam, em decorrência de compra e venda mercantil e de prestação de serviços.
A segunda é que a duplicata é um título de aceite obrigatório. Diferentemente do que ocorre com a letra de câmbio, em que o sacado não tem a obrigação de aceitar a ordem que lhe foi endereçada, na duplicata o sacado está, em regra, vinculado ao aceite do título, só podendo recusá-lo nas situações previamente definidas em lei.[1]
Convém relembrar o procedimento que a lei estabelece para a formação desse título cambial. Após a emissão da fatura, o comerciante extrai a duplicata, escriturando o respectivo Livro de Registro de Duplicatas. Em seguida, remete o documento ao comprador, no prazo de trinta dias, contados da data da emissão, para aceitação ou recusa (Lei nº 5.474/68, art. 6º).
Ao sacado incumbe, no prazo de dez dias, lançar o aceite no título e devolvê-lo ao emitente. Faculta-se-lhe, porém, ao invés de aceitar a duplicata, recusá-la expressamente (nos casos previstos no art. 8º da Lei nº 5.474/68), consignando em declaração escrita as razões da recusa. Ainda assim, estará obrigado à devolução do título.
Pode ocorrer, também, em duas hipóteses, a retenção da duplicata pelo sacado. Na primeira, o comprador age legitimamente, pois, com a concordância da instituição financeira responsável pela cobrança, retém o título até o vencimento, enviando àquela comunicação escrita do aceite e retenção. Na segunda, a retenção é indevida. É o caso em que o sacado recebe o título para aceite e se queda inerte, deixando de restituí-lo ao emitente no prazo legal.
3. Obrigatoriedade da remessa da duplicata ao comprador ou tomador dos serviços.
A apresentação da duplicata ao comprador ou tomador dos serviços, para aceite, é obrigatória.[2] Tal providência, como ensina Fran Martins, “tem por finalidade levar o título à presença do comprador para que ele o assine, reconhecendo a sua exatidão e a obrigação de pagar a duplicata.”[3] Por meio da remessa, assegura-se ao sacado a possibilidade de recusar o aceite e não assumir a obrigação cambial.
Quanto a esse ponto, impõe-se um esclarecimento. Foi dito que a duplicata é um título de aceite obrigatório. Talvez a expressão não seja a mais adequada, pois conduz ao entendimento de que inexiste para o sacado a opção de recusa. Não é esse, todavia, o sentido exato do termo. Nesse particular, vale citar o ensinamento de Fábio Ulhoa Coelho, segundo o qual “Quando se afirma que o aceite da duplicata é obrigatório não se pretende que ele não possa ser recusado, mas, sim, que a sua recusa somente poderá ocorrer em determinados casos legalmente previstos. Situação diametralmente oposta à do sacado da letra de câmbio, que pode, sempre e a seu talante, recusar-se a assumir a obrigação cambial.”[4]
Conclui-se, portanto, que essa fase da formação da duplicata (remessa do título ao sacado) não pode ser suprimida, sob pena de nulidade do título, haja vista o evidente prejuízo que causa ao sacado, por retirar-lhe a faculdade de recusa justificada do aceite. Assim não fosse, de nenhum efeito prático seria a determinação legal para a realização dessa providência.
4. Casos em que pode haver recusa de aceite e conseqüências daí decorrentes
O aceite da duplicata pode ser negado nas hipóteses previstas no art. 8º da Lei das Duplicatas, por motivo de: a) avaria ou não-recebimento das mercadorias, quando não expedidas ou não entregues por conta e risco do comprador; b) vícios, defeitos e diferenças na qualidade ou na quantidade das mercadorias, devidamente comprovados; c) divergência nos prazos ou nos preços ajustados.
Opondo-se expressamente ao aceite, nos casos permitidos pela lei, o que é feito mediante a devolução do título acompanhado de declaração, por escrito, contendo as razões da falta de aceite, o sacado não assume a obrigação cambial representada pela duplicata.
Convém ressaltar que, uma vez recusado validamente o aceite da duplicata, não tem lugar a ação executiva. É o que se infere do disposto no art. 15, II, c, da Lei nº 5.474/68, que estabelece, como requisito da execução da duplicata não aceita, a inexistência de recusa do sacado, pelos motivos previstos no artigo 8º.[5]
5. Da executividade da duplicata
Lançando o devedor o aceite no título e devolvendo-o ao sacador, nenhum questionamento se faz: o documento bastará para o ajuizamento da execução. Devolvido o título ao credor, com a recusa injustificada do aceite, a execução se faz com a apresentação da cártula, acompanhada do comprovante de entrega da mercadoria e da prova do protesto (art. 15, II, da Lei nº 5.474/68).
Para a execução fundada em duplicata, dadas as peculiaridades dessa espécie de título de crédito, nem sempre é imprescindível a exibição da cártula. A dispensa, todavia, é exceção, e não a regra, e somente em duas hipóteses, que adiante serão delineadas, pode ser admitida.
A exibição da duplicata não é exigível, por motivos óbvios, quando o sacado, recebendo o documento para aceite, deixa de devolvê-lo ao emitente. É nesse caso que a lei autoriza que a execução seja feita apenas com o instrumento do protesto e o comprovante de entrega dos produtos vendidos. A única outra possibilidade de execução sem apresentação da cártula ocorre quando o aceite se dá por comunicação (o comprador retém o título e comunica o aceite, por escrito, ao vendedor). Nessa hipótese, a ação fundar-se-á no próprio documento de comunicação do aceite e retenção, que substituirá o título.
Note-se que os casos em que a apresentação da cártula não é exigida correspondem justamente àquelas hipóteses em que o emitente não detém a posse do título, em razão de sua retenção pelo sacado, quando da remessa para aceite.
Observe-se, também, que a lei em nenhum momento dispensa o vendedor da efetiva emissão da duplicata e de sua remessa ao sacado para aceitação. O que a lei não exige é a apresentação da cártula na execução, quando isto se mostra impossível em razão da retenção do documento pelo comprador.
Em outras palavras: o título deve sempre existir. Ou ele está na posse do emitente (com ou sem aceite) – e, nesse caso, deve instruir a ação executiva – ou está em poder do sacado (nas hipóteses de retenção), caso em que a exibição é dispensada, porque se mostra fisicamente impossível. Até nos casos de perda ou extravio da duplicata, o vendedor não se furta à apresentação da cártula: deve extrair triplicata, com os mesmos efeitos, requisitos e formalidades daquela.
E, no nosso entender, essas situações devem estar afirmadas na petição inicial. Incumbe ao credor justificar a não exibição do título, informando que não o detém porque houve retenção, legítima ou indevida, pelo sacado.[6]
6. O protesto por indicação
O protesto por indicação, como exceção à regra legal e ao princípio da cartularidade, está autorizado exatamente nas mesmas situações, ou seja, somente nos casos de retenção da cártula pelo sacado. Não tendo o título em mãos - não porque não foi emitido, mas porque, enviado ao devedor, não foi devolvido –, o credor pode protestá-lo por indicação, nos termos do art. 13, § 1º, da Lei nº 5.474/68.[7]
7. A duplicata virtual. Sua legalidade em certas hipóteses
Não há ilegalidade no ato de emissão da duplicata por meio eletrônico. Se havia alguma disputa na doutrina e na jurisprudência acerca da legitimidade desse procedimento, cada vez mais comum, de desmaterialização do título de crédito, tal discussão perdeu importância a partir da edição do novo Código Civil, que, no art. 889, § 3º, passou a admitir expressamente a criação de títulos virtuais.[8]
Com efeito, nenhum prejuízo haverá, para quem quer que seja, se o título de crédito, sacado virtualmente, puder ser remetido, por via eletrônica, ao comprador ou tomador dos serviços interligado ao sistema, pois, nesse caso, o sacado poderá apor o aceite ou recusá-lo expressamente, também por meio digital.
A facilidade e agilidade que advêm do novo sistema é inegável. O vendedor saca a duplicata virtual, fazendo o registro de forma eletrônica. No mesmo instante, o título eletrônico é remetido ao sacado, para aceite, e enviado à instituição financeira para cobrança. Existindo aceite, expresso ou tácito, o pagamento do título poderá ser feito por meio de transferência bancária eletrônica, diretamente do devedor para a instituição financeira, que, finalmente, creditará o emitente. E se houver inadimplemento da obrigação, o protesto será tirado por indicações do “portador”, inclusive com remessa dos dados por meio eletrônico.[9]
Destarte, a execução da duplicata virtual não aceita tornar-se-á possível, independentemente da materialização em papel, mediante apresentação do comprovante de entrega das mercadorias ou da prestação dos serviços e do instrumento do protesto. Tudo realizado com segurança, por meio de assinaturas eletrônicas,[10] e sem que haja qualquer ofensa ou desrespeito ao regramento legal dessa espécie de título de crédito.
Para tanto, realmente, não há necessidade de qualquer modificação na legislação específica das duplicatas.
O problema reside nos casos em que o devedor não participa do sistema informatizado. Aí, sim, entendemos que há violação dos dispositivos legais que regem a duplicata e que o título virtual, embora possa gerar obrigações entre o emitente/endossante e eventual endossatário, não possibilitará a ação executiva contra o sacado, ainda que o credor instrua o pedido com o comprovante de entrega das mercadorias e o instrumento de protesto por indicação. As razões desse entendimento serão expostas adiante.
8. Das inconsistências da duplicata virtual sem remessa para aceite
A primeira questão diz respeito à inobservância do procedimento estabelecido em lei para a formação da duplicata, que, como foi ressaltado, inclui a obrigatoriedade da remessa da cártula ao sacado, para aceite ou recusa.
Com efeito, se o título de crédito sequer foi “materializado”, conclui-se que não houve emissão da duplicata, muito menos remessa ao comprador para aceite ou recusa, o que torna inadmissível a execução da dívida, pois, nesse caso, o protesto e o comprovante de entrega da mercadoria não suprem a falta da cártula. Primeiro, porque não houve retenção do título, única hipótese em que a lei permite a não-apresentação da duplicata. Segundo, porque não foi dada ao sacado a oportunidade de liberar-se da obrigação cambial, devolvendo o título ao vendedor, com expressa declaração de recusa do aceite.
O segundo ponto, interligado ao primeiro, refere-se à inovação destituída de amparo legal, o que se mostra inconciliável com as regras que regem a execução, entre elas a que trata da imprescindibilidade do título executivo.
Como é cediço, a figura do título executivo está extremamente ligada à idéia de criação legal. Em outras palavras, pode-se afirmar que só é título executivo aquele expressamente previsto em lei como tal, já que a enumeração dos títulos executivos em nosso ordenamento jurídico é exaustiva, numerus clausus. As partes não podem conferir a qualidade de título executivo a outros atos que não os estabelecidos a lei.[11]
Mas não é só. Não basta o documento adotar a denominação estatuída na lei para que seja considerado título executivo. É necessário que ele preencha todos os requisitos legais, não só quanto à forma, mas também quanto ao procedimento para sua constituição. E, tratando-se de duplicata, esta não terá sido constituída validamente se não tiver sido assegurada ao sacado, por intermédio da remessa do título, a oportunidade de recusar expressamente o aceite, nas hipóteses em que a lei autoriza.
Não há dúvida, portanto, de que a adoção da duplicata virtual, tal como está sendo feita, afronta a lei e até mesmo a Constituição Federal, que preconiza, como direito fundamental, que “ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV). E o devido processo legal, no que se refere à ação executiva, consiste na observância das regras estabelecidas no estatuto processual, entre as quais a exigência de um título executivo, constituído regularmente com observância das formalidades legais. E quando se cuida da duplicata, uma das formalidades necessárias à formação do título executivo é a remessa da cártula ao sacado, para aceite ou recusa.
Há quem defenda que a duplicata virtual encontra amparo no recente art. 889, § 3º, do Código Civil de 2002, de maneira que constituiria título executivo independentemente da remessa ao sacado. Não pensamos assim. Entendemos que referido dispositivo legal não tem a amplitude que se lhe quer dar. A autorização legal para a criação de títulos por meio eletrônico não inclui a dispensa dos requisitos para a formação dos títulos de crédito específicos, como a duplicata. Isso porque o próprio caput do art. 889 estabelece os requisitos essenciais do título de crédito eletrônico: data de emissão, indicação precisa dos direitos que confere e assinatura do emitente. E fica claro que emitente aqui deve ser entendido como o devedor da obrigação, não sendo correta a aplicação do dispositivo aos títulos de formação complexa, como a letra de câmbio e a duplicata, em que as posições de emitente e devedor não coincidem.
Não se pode olvidar, ademais, que, consoante o art. 903 do CC, as regras de caráter geral a respeito dos títulos de crédito trazidas pelo novo código só têm aplicação quando não colidirem com as disposições contidas nas leis especiais.[12] O novo Código Civil, portanto, não modifica o regramento aplicável às duplicatas, tampouco torna dispensável a remessa do título ao sacado, para aceite.
Conclui-se, assim, que a emissão da duplicata virtual só estará respaldada por esse dispositivo na hipótese de ter sido observada a obrigatoriedade de remessa do título ao sacado, ainda que por via eletrônica, caso em que haverá perfeita harmonia com o procedimento legal para a constituição do título de crédito.
Um dos argumentos em prol da executividade da duplicata virtual é que, a despeito da inexistência de legislação específica, os usos e costumes comerciais têm referendado essa nova prática. Outro é que a Lei de Duplicatas admitiria uma interpretação extensiva de seus artigos, o que tornaria viável a execução do título eletrônico. Nada mais falacioso. Usos e costumes não criam título novo, nem podem dispensar requisitos legais para a formação dos legalmente instituídos. Isso porque vigora, no que tange aos títulos executivos, o princípio da tipicidade, segundo o qual estes só por lei em sentido estrito podem ser criados. Outrossim, não se admite interpretação extensiva da lei quanto a esse requisito da execução.[13] Cuida-se aqui de princípio de estrita legalidade. O costume, a praxe, não pode criar novo título executivo ou dispensar requisitos previstos na lei para os já existentes.
Outro empecilho à executividade da duplicata virtual, no nosso sentir, é sua constituição unilateral. Os títulos executivos extrajudiciais são sempre formados com o consentimento do devedor, e na maioria dos casos manifestado de forma explícita.[14] E é com base nesse consenso que a existência do título executivo faz com que seja dispensada a discussão sobre a existência do crédito. Assim ocorre com o cheque e com a nota promissória, em que o devedor é o próprio emitente da cártula, e na letra de câmbio, que só obriga o sacado em lançando este no documento seu expresso aceite. Com a duplicata não é diferente. Verdade é que a duplicata é uma espécie de cambial sui generis, que se convencionou chamar “de aceite obrigatório”, o que significa que o sacado, isto é, o devedor do título de crédito, está obrigado ao pagamento do valor nele estipulado mesmo que não tenha lançado seu aceite expressamente. A obrigação ainda assim existirá, se o título de crédito vier a ser protestado e estiver acompanhado de prova da entrega das mercadorias ou da prestação dos serviços. Isso não quer dizer, porém, que a duplicata se forma sem o consentimento do devedor, pois consentimento há, ainda que tácito.[15]
Mas, se a duplicata virtual não é submetida ao sacado para aceite, há constituição unilateral do título executivo, o que, evidentemente, não se mostra juridicamente possível. Dar tal amplitude à duplicata eletrônica corresponde a igualar em privilégios o emitente da cártula ao Estado, que, pelo ordenamento jurídico em vigor, é a única pessoa autorizada a constituir obrigação representada por título executivo extrajudicial de modo inteiramente unilateral. E isso somente porque há prevalência do interesse público sobre o particular. Ou quiçá atribuir ao comerciante ou prestador de serviços poderes maiores do que os atribuídos à Administração, já que a inscrição na dívida ativa é precedida, na maioria das vezes, de procedimento administrativo em que tem o administrado direito ao exercício da ampla defesa.
Nem se diga que a duplicata estará amparada em documento comprobatório da entrega das mercadorias, o que supriria a necessidade de remessa da duplicata para aceite. De modo nenhum. Tal documento nem sempre é originário do comprador. E a prova do recebimento das mercadorias por si só não autoriza a execução da duplicata, ainda que protestada, pois não expressa o consentimento do sacado com a formação do título de crédito. O que permite a execução, nessa hipótese, é o aceite tácito da duplicata, decorrente ou da retenção da cártula pelo sacado ou de sua devolução pura e simples. E este aceite só terá ocorrido em momento posterior à remessa do título ao sacado.
Poder-se-ia argumentar, também, que a instituição financeira responsável pela cobrança da “duplicata virtual” remete ao devedor um boleto, documento que tornaria dispensável o envio da cártula, pois daria ao sacado ciência da emissão da duplicata e a possibilidade de recusá-la. Parece-nos que tal argumento não é correto. A duplicata é título de formação complexa, que não se concretiza num único ato, o da emissão. A este se seguem a remessa ao sacado, o aceite, expresso ou tácito, ou sua recusa.
Qual a finalidade de se remeter a duplicata ao sacado? Justamente assegurar-lhe o direito de recusar expressamente o aceite, impedindo, destarte, a formação do título executivo. O boleto bancário permite ao sacado essa solução? A resposta é negativa. Àquele que recebe o boleto enviado pela instituição financeira não se dá alternativa senão o pagamento da dívida na data prevista no documento. E, em geral, a cobrança vem acompanhada da ameaça de protesto, na hipótese de inadimplência por certo prazo. Se o comprador tiver algum motivo para a rejeição da duplicata, como, por exemplo, o não recebimento das mercadorias, avarias, vícios, defeitos, diferenças na qualidade ou na quantidade das mercadorias, e até mesmo a divergência nos prazos ou nos preços ajustados, que poderá fazer? Nada, a não ser socorrer-se do Poder Judiciário para pleitear cautelarmente a proteção quanto ao futuro protesto e a posterior declaração de inexigibilidade da dívida.
Ora, mas o que se tem então é a inversão indevida do procedimento. Não é isso que a lei instituidora da duplicata prevê. Não se pode exigir que o comprador, ou o recebedor dos serviços, tenha de se valer da jurisdição para afastar a cobrança indevida. O credor não pode ficar nessa situação confortável, em detrimento do devedor. Não é esse o espírito da lei. A solução preconizada pelo legislador é outra, muito mais favorável ao sacado. Tem ele a opção de, nas hipóteses previstas no art. 8º, recusar expressamente o aceite, impedindo a constituição do título executivo contra si. Ao credor é que incumbirá a prova de seu direito, em ação de conhecimento destinada ao recebimento do crédito.
Outro fator deve ser levado em consideração. As chamadas duplicatas virtuais têm sido comumente endossadas a terceiros, geralmente uma instituição financeira, mediante contrato de desconto, sem que o sacado tenha ao menos conhecimento da emissão do título. Nesses casos, o sacado recebe o boleto bancário para pagamento em momento posterior ao endosso, sem que tenha tido a oportunidade de recusar expressamente o aceite. Isso é grave, pois, contra o terceiro de boa-fé, vigora o princípio da inoponibilidade das exceções pessoais, de modo que a defesa que o sacado teria contra o emitente da duplicata não poderá ser argüida em face do endossatário.
9. Conclusão
O mundo moderno exige agilidade e, com o avanço da tecnologia na área da informática, surge o confronto entre a celeridade e a simplicidade que o mercado requer e o rigoroso sistema previsto em lei para a emissão da duplicata. Não é difícil notar que, nesse embate, a praticidade tem levado vantagem. Atualmente, as emissões reais de duplicatas têm diminuído consideravelmente. A regra é que sejam feitos saques de “títulos virtuais”, os quais são encaminhados, por meio eletrônico, às instituições financeiras, para cobrança ou desconto.
Cremos, portanto, que a duplicata virtual veio para ficar. O avanço tecnológico não pode e não será ignorado ou desprezado. Negar validade à duplicata escritural é negar a evolução da própria sociedade. O mundo sofreu significativas transformações e o Direito, em especial o Direito Comercial, que se caracteriza pelo dinamismo, deve acompanhá-las. Contudo, é necessário se acautelar, para que a corrida desenfreada pela agilidade e simplificação dos procedimentos destinados ao recebimento dos créditos não atropele os direitos individuais. Se, por um lado, não se podem negar as inúmeras vantagens que esse sistema traz, por outro, constata-se que tal prática, na maioria das vezes, deixa de observar regras essenciais para a validade do título de crédito e a segurança dos negócios jurídicos. Impõe-se, pois, a criação de mecanismos ou instrumentos legais eficazes, destinados a assegurar o equilíbrio das relações jurídicas, visando, especialmente, à proteção do consumidor.
Tudo é questão de escolha. Será que a sociedade quer deixar ao arbítrio dos vendedores e prestadores de serviços a formação unilateral de título de crédito, dotado de força executiva e que possibilita penhora e alienação de bens do devedor sem prévia defesa? Tudo em nome da agilidade requerida pelo mercado? Parece-nos que tal discussão deve ser travada de forma ampla, com envolvimento dos vários setores da sociedade, com a participação, em especial, das entidades responsáveis pela defesa dos consumidores, os quais merecem ser ouvidos a respeito de tão importante tema.
E essa discussão assume especial relevo com a atual disciplina da execução de título extrajudicial, introduzida pela Lei nº 11.382, de 6 de dezembro de 2006, que estabeleceu a definitividade da execução como regra, ainda que existam embargos pendentes de julgamento, permitindo a suspensão da execução somente em casos excepcionais (CPC, art. 739-A, c.c. o art. 587). Assim, uma vez feita a penhora, que preferencialmente deve recair sobre dinheiro (CPC, art. 655, I), poderá o credor exigir o pagamento de seu crédito, independentemente do julgamento dos embargos opostos pelo executado. Vê-se, portanto, que o sacado, na atual sistemática, terá seu patrimônio desfalcado antes mesmo que possa ver apreciadas pela Justiça as defesas que eventualmente possua em face do credor. E isso em razão da presunção de certeza, liquidez e exigibilidade de um título de crédito para cuja formação não anuiu expressa ou tacitamente.
Entendemos, portanto, que, embora o art. 889, § 3º, do Código Civil autorize a execução da duplicata escritural em alguns casos específicos, que já ressaltamos, deverá o legislador regulamentar de forma expressa a matéria, a fim de corrigir as distorções aqui apontadas.
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Referências Bibliográficas
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. vol. 2. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. vol. III. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2007.
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 11ª ed. São Paulo: RT, 2007.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio R. Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. vol. 2. 5ª ed. São Paulo: RT, 2002.
SEGUNDO, Hugo de Brito Machado Segundo. Processo Tributário. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.
GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios Gonçalves. Sinopses Jurídicas: Processo de Execução e Cautelar. São Paulo: Saraiva, 1998.
[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 289-291.
[2] Sobre a obrigatoriedade da remessa da duplicata para aceite, decidiu o extinto Tribunal de Alçada de Minas Gerais: “(...) tratando-se de duplicata, imperiosa e obrigatória é sua apresentação para aceite, nos termos do art. 6º da Lei n. 5.474/68, sob pena de se retirar do sacado o direito de recusa válida previsto nos artigos 8º e 21 da Lei das Duplicatas” (TAMG, 4ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento 0421728-1, Relator Juiz Batista Franco, data do julgamento: 03/12/2003, v.u.).
[3] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. v. II. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 197.
[4] COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 270-271.
[5] Na lição de Rubens Requião, com a qual comungamos, “A ação para ilidir as razões invocadas pelo devedor (art. 8º) para recusar o aceite é também a ação ordinária. Não contestada essa ação pelo devedor, será decidida de plano pelo juiz, determinando a expedição do mandado de penhora. Contestada, seguirá o rito ordinário indicado no Código de Processo Civil” (Curso de Direito Comercial. v. 2. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 458). Registramos, entretanto, a posição de Fábio Ulhoa Coelho, para quem, constituindo a inexistência de regular recusa do aceite condição negativa de exigibilidade do crédito cambiário representado por duplicata, caberia ao executado, em embargos, a alegação e prova dessa condição. Demonstrada a justa recusa pelo executado, ocorreria a desconstituição do título executivo do credor (Manual de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 295).
[6] É bom recordar que a não-exibição da cártula pode trazer sérias conseqüências ao devedor, dada a possibilidade de circulação do título de crédito, com inafastável responsabilização do sacado pelo crédito nele representado. Rubens Requião adverte: “O título pago, para segurança do devedor, deve ser retirado de circulação. Ao pagar deve exigir-se quitação no próprio título. O recibo pode, excepcionalmente, ser passado em documento à parte, com referência expressa à duplicata, havendo, todavia, o perigo de, ficando o título em circulação, sem a averbação do pagamento no seu verso, ser exigido pelo endossatário, portador de boa fé. É por isso, um risco que corre o devedor. Esse, não podendo opor exceção de pagamento ao portador de boa fé, estará sujeito a págá-lo outra vez” (Curso de Direito Comercial. v. 2. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 454).
[7] O Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão, assentou que a retenção da duplicata remetida para aceite é condição inafastável do protesto por indicação: “Direito Comercial. Duplicata mercantil. Protesto por indicação de boletos bancários. Inadmissibilidade. I – A retenção da duplicata remetida para aceite é conditio sine qua non exigida pelo art. 13, § 1º, da Lei nº 5.474/68 a fim de que haja protesto por indicação, não sendo admissível protesto por indicação de boletos bancários. II – Recurso não conhecido” (REsp 827856/SC, relator Min. Antônio de Pádua Ribeiro, julgamento em 28/08/2007, DJ de 17/09/2007, p. 295).
[8] Reza o art. 889, § 3º, do novo Código Civil: “O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo.”
[9] O art. 8º, parágrafo único, da Lei nº 9.492/97 permite a recepção, pelos cartórios, das indicações a protestos das duplicatas mercantis e de prestação de serviços, por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados.
[10] A Medida Provisória nº 2.200-2, de 2001, instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileiras – ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas, autorizando tal órgão a credenciar os responsáveis pela certificação das assinaturas digitais.
[11] WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio R. Correia; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. v. 2. São Paulo: RT, 2002, p. 50-53.
[12] Sílvio de Salvo Venosa adverte que se fosse admitida a prevalência do atual Código Civil no conflito com as normas específicas, “haveria uma revolução em todo direito cambiário e conflitos com a própria Lei Uniforme adotada em nosso ordenamento, o que não é lógico.” E o autor conclui que “por força do art. 903 do Código Civil de 2002, as disposições relativas aos títulos de crédito não se aplicam aos títulos já existentes e regulamentados” (Direito Civil. v. III. São Paulo: Atlas, 2007, p. 424).
[13] Marcus Vinícius Rios Gonçalves esclarece que “Como o processo de execução pode gerar conseqüências gravosas, implicando desapossamento de bens do devedor, não se deixa ao alvedrio dos interessados atribuir a determinado documento força executiva. Somente o legislador é que pode fazê-lo, cabendo exclusivamente à lei discriminar quais são os títulos executivos. A conseqüência é que o rol de títulos é sempre taxativo (numerus clausus), e não há título que não esteja previsto como tal no Código de Processo Civil ou em leis especiais. Ademais, para que o documento seja título é necessário que ele corresponda integralmente àquele modelo legal e abstrato previsto pelo legislador, sem modificações ou ampliações (tipicidade)” (Sinopses Jurídicas: Processo de Execução e Cautelar. vol. 12. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 15).
[14] “Os títulos executivos extrajudiciais, à exceção da certidão de dívida ativa, são de constituição necessariamente bilateral, e, o que é mais importante, consensual” (SEGUNDO, Hugo de Brito Machado. Processo Tributário. 2ª ed. São Paulo: Atlas, p. 256). Afirmação semelhante se encontra em Araken de Assis: “O título executivo traz sempre uma declaração de certeza, ainda que relativa, e essa certeza, quando se trata de título extrajudicial, só pode ser alcançada mediante consenso dos particulares” (Manual da Execução. 11ª ed. São Paulo: RT, p. 145).
[15] No dizer de Araken de Assis, a duplicata inova justamente em razão do aceite presumido, na medida em que, “supondo a manifestação de vontade do sacado, confere executividade à cártula a partir de ficções” (Manual da Execução. 11ª ed. São Paulo: RT, p. 171).