592 - Distinguir para separar


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


No debate sobre o “casamento” homossexual que hoje assistimos nos parlamentos francês e inglês e na Suprema Corte dos Estados Unidos, muito se argumenta que sua vedação legal importaria em discriminação social. Por aqui, ao que parece, a pauta homossexual tem tomado um viés menos parlamentar ou judicial: já houve jornalista que disse ir embora antes que a homossexualidade se tornasse obrigatória...

O modelo matrimonial da tradição romano-germânica e do sistema da common law não tem a pretensão de dar proteção a simples ligações de amizade, tratos assistenciais, vínculos sexuais ou, na linguagem atual, laços afetivos. Vai além e excede em muito estas vivas realidades. Busca efetivar um estilo de vida que assegure a estabilidade social e o recâmbio e a educação das gerações vindouras.

Nesse debate, é inevitável debruçar-se sobre o propósito do matrimônio. Para tanto, algumas perguntas devem ser respondidas antes de se tomar qualquer conclusão afoita. O que é mais importante para a gênese do tecido social: os matrimônios, como sempre foram estabelecidos, ou as parcerias homossexuais?

 Em qual deles reside o princípio autoconstitutivo e, digamos, genético da sociedade? Em qual deles, segundo suas peculiaridades intrínsecas, os valores podem ser transmitidos à geração sucessiva de uma forma melhor? Em qual deles os novos cidadãos crescerão melhor, de modo a estruturar-se e ampliar, de modo natural, as próprias personalidades?

Quais são as obrigações que uma sociedade deve assumir em relação a um e outro? Em que medida cada um deles contribui para o incremento do bem comum? A equiparação da parceria homossexual à condição matrimonial não seria um privilégio? A manutenção do status quo do matrimônio não seria uma discriminação para a parceria homossexual?

Deixo várias perguntas sem respostas. Para reflexão do leitor. Mas pretendo responder a última pergunta, porque pertence a um rol de argumentos de razões públicas. Nessa hipótese, não me parece que as atuais proibições dos homossexuais em contrair matrimônio – e não falo da união estável – impliquem numa discriminação estrita ou mesmo numa negação de direitos.

O ponderado fator de discrímen reside justamente nos elementos objetivos que o Direito exige para que um fato da vida seja dotado de juridicidade matrimonial. Quando o Direito distingue um vínculo, baseado numa complementariedade essencial e existencial voltada para a fecundidade e para o bem comum, de outro vínculo, assentado numa complementariedade que se resume à afetividade, ele deve dar a cada um o seu, porque cada um move-se em órbita própria: ao primeiro, a condição de matrimônio, e, ao segundo, a de pacto civil, como, aliás, sucedeu por muito tempo em vários países europeus.

Ao dar a cada um o seu, o Direito faz justiça. Não segundo essa visão bem tosca transmitida na graduação pelo positivismo jurídico, correspondente ao fetichismo legal. Nem de acordo com essa noção sociológica, em que o legislador reduz-se a um notário, uma espécie de chancelador normativo de fatos sociais. Tampouco conforme essa visão igualitarista, que pretende, utopicamente, anular toda diferença natural, fator de enriquecimento social recíproco.

Mas segundo uma noção perene de justiça e, por isso, sempre atual: a noção de que iguais devem ser tratados igualmente e, os desiguais, desigualmente, na exata proporção da desigualdade. A justiça consiste numa certa igualdade: a igualdade que obedece à igualdade essencial entre os homens. Mas há que se distinguir as coisas iguais das desiguais e essa intrincada tarefa reclama uma filosofia política, com já alertou Aristóteles (Pol. III, 12).

A igualdade essencial que há entre os homens não é, por si só, um motivo para considerar irrelevantes as diferenças secundárias que existem entre eles e não constitui um convite para se ignorar para tais diferenças, sem antes perguntar ao fins que obedecem.

Discriminar é distinguir. Continuamente distinguimos. Diferenciamos entre pessoas boas e ruins, livros agradáveis e desagradáveis, o nosso time e o time (normalmente no diminutivo) alheio. Cada vez que elegemos algo, discriminamos inconscientemente, pois, ao optar por isto, descartamos aquilo.

Discriminar é inevitável. Apenas é reprovável a discriminação arbitrária, aquela que carece de qualquer fundamento ontologicamente objetivo, da qual o “casamento” gay está fora, porquanto chamar cada coisa pelo devido nome é uma justa discriminação. Nesse caso, semântica e social. E que venham os tomates: pelados e italianos, por favor. Com respeito à divergência, é o que penso. 

André Gonçalves Fernandes é professor do IICS-CEU Escola de Direito e coordenador do IFE-Campinas (agfernandes@tjsp.jus.br).


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