604 – O homem pós-humano e o Direito



ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES -
Juiz de Direito

 

 

Anteontem, fiz uma apresentação na semana jurídica de uma prestigiada instituição de ensino superior local, oportunidade em que não fui discutir a nova lei disso ou daquilo, os comentários à nova lei disso ou daquilo, nem tampouco as anotações à nova lei disso ou daquilo. O mercado editorial jurídico assumiu um rumo bem mercantilista, com raras exceções. Bom para os ávidos consumidores desses produtos de temporada, os quais vão direto para o lixo quando sobrevém outra penada legislativa. E bom para minha esposa, porque, como prefiro gastar meus tostões com obras perenes e de maior envergadura, o orçamento doméstico agradece.

 

Expus minhas impressões sobre o pensamento atual e sua relação com o Direito, que mais pareciam compor o obituário de uma tragédia dantesca. Depois da morte de Deus com Nietzsche, que não foi um imoral, mas o autor de uma filosofia moral, o pensamento ocidental resolveu descer ladeira abaixo e, ao mesmo tempo, foi excluindo todos seus tradicionais referenciais. Nesse caminho, atropelou tudo o que viu pela frente, como resultado da volatilidade das correntes modernas e pós-modernas.

 

Na história, o divino passou a identificar-se com o humano e tudo que é humano passou a pertencer à história. Na sociedade, a individualidade cedeu lugar à massificação do indivíduo, cuja natureza tornou-se coisificada. A moral clássica virou adorno de museu, porque a morte de Deus significou a perda da influência social do cristianismo. Quem defende a metafísica é visto como um crente enrustido e, logo, seu discurso não é um argumento de razões públicas, mas proselitismo religioso.

 

Ao fim, Foucault, acompanhado de Derrida, sentenciou: o homem não existe mais. Nada mais coerente. De fato, o homem moderno, batalhando, há pelo menos dois séculos, contra sua própria natureza, acabou por aboli-la, segundo C. S. Lewis, e, por isso, já há quem fale, não mais no seio da modernidade, mas no da pós-modernidade, do “homem pós-humano”. Se o homem, na Antiguidade, considerava-se contido em Deus, na modernidade, teve a ilusão de ser Deus (já que o titular tinha morrido) e, agora, na pós-modernidade, vê-se como uma própria ilusão.

 

Não surpreende que se passe o mesmo na esfera do Direito. O pós-modernismo ultrapassou a velha denúncia do declínio do Direito (Ripert) e passa o atestado da morte do Direito, seja porque não existe mais uma racionalidade exterior a que se possa referir, de maneira objetiva, à noção de coisa justa, seja porque esse “homem pós-humano” tem um perfil incompatível com as ideias de liberdade e de imputabilidade.

 

E por quê? Porque o moralismo dessa nova visão de homem, ao renunciar à razão por meio de sua incredulidade em fundamentos reais para o mundo (metanarrativas), fez emergir uma ética pós-moderna voluntarista e, por isso, instável e autoritária. Essa ética, transposta para o mundo jurídico, reduziu a lei ao mero instrumento de uma vontade de poder e gerou uma sensação social de anarquia jurídica. Qualquer semelhança com nossa realidade não é uma mera coincidência. Em suma, o Direito pós-moderno é o nada: “quero, logo, existo” é sua inconfundível divisa.

 

O niilismo jurídico não se atenta no que produz, porque, se, na modernidade, “tudo era relativo”, na pós-modernidade, “a verdade é que não há verdade”. Passamos de um dogma para outro, mas permanecemos na contradição dos termos.

 

Entretanto, o niilismo jurídico preocupa-se no modo como se produz legislativamente, a fim de dar legitimidade formal a um fazer arbitrário e sem qualquer noção de finalidade. Sinal dos tempos, porque a indiferença de conteúdo estimula certo endeusamento da forma.

 

Se Deus está morto, a natureza e a unidade de sentido foram banidas com o fim da metafísica e a razão virou uma obsolescência bolorenta, ao “homem pós-moderno” só resta construir “formas”, aptas a acolher qualquer conteúdo, ainda que seja o nada, por mais paradoxal que isso possa parecer.

 

Nesse contexto, fica difícil realizar um diálogo fecundo do Direito com um pensamento ostensivamente alheio às dimensões da racionalidade, do homem e de seus princípios primeiros e razões últimas. Por isso, entende-se o atual desencantamento social com o Direito e, em última análise, com a justiça.

 

Mas só superaremos esse desencantamento, quando cada um de nós resolver resgatar o encanto perdido com aquelas dimensões. E, até lá, qualquer crítica que se destine ao Direito é, no fundo, uma crítica que se destina a nós mesmos. Com respeito à divergência, é o que penso.

 

André Gonçalves Fernandes é Juiz de Direito, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito e coordenador do IFE-Campinas (agfernandes@tjsp.jus.br).


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