605 – Que STF queremos?

 

ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito

 

 

Superada a votação da admissibilidade dos embargos infringentes, as 700 testemunhas ouvidas, as 50 mil páginas, os 200 apensos, as 60 sessões de julgamento, a aposentadoria de quatro ministros da Corte, o falecimento de outro e uma duração em dias que já deixou para trás a II Guerra Mundial, o mensalão será submetido a novo julgamento, sob o argumento principal do respeito ao duplo grau de jurisdição.

 

Concordaria se a instância originária de julgamento fosse inferior. Entretanto, como a ação é originária daquele mesmo tribunal, o processo será julgado novamente por todos os ministros, com exceção dos três novos que ingressaram nos últimos anos. Resumo da ópera: mais do mesmo por mais um bom tempo mesmo.

 

A indignação social, diante do resultado final, tomou vulto. Desde lugares-comuns que resvalam na menoridade intelectual, no preconceito ou no achincalhamento gratuito do STF ou de seus membros até manifestações ponderadas de descrédito a respeito da mesma instituição. Também houve a colaboração dos bons chargistas, cujo humor fino e inteligente costuma valer mais que a argumentação de muitos embargos infringentes...

 

Independentemente do teor da decisão, creio que seria um bom momento para o debate dessa cada vez mais importante instituição judicial. Ultimamente, o STF tem assumido uma postura de ativismo judicial em muitas questões que lhes são submetidas. Tenho minhas ressalvas quanto ao papel de juízes legisladores ou de um governo de juízes.

 

A última palavra acerca da constitucionalidade das leis é dada pelo STF e, de fato, quando provocado, este tribunal, de certa forma, acaba por governar aqueles que governam dentro de seus limites naturalmente institucionais. Mas, se o Poder Executivo é emasculado historicamente e o Poder Legislativo deixa de legislar e fiscalizar, quando o STF é chamado a se pronunciar nas ações em que uma dessas instituições peca pela falta ou pelo excesso, fica difícil estabelecer um meio-termo entre uma postura de joelhos e uma de dedo em riste, dada a elasticidade na interpretação desse pronunciamento.

 

Se o ativismo judicial tem prevalecido, explica-se (e não se justifica) pelo crescente vácuo institucional e social que os outros poderes deixaram pelo caminho, fato que capta a sensibilidade dos membros do STF, a ponto de, diante de uma falta de perspectiva de mudança, provocar um protagonismo na condução de boa parte dos destinos da sociedade.

 

Assim, STF torna-se um incansável árbitro social, porque o diálogo entre a sociedade e os outros dois poderes políticos (e mesmo entre os membros da mesma sociedade) padece de uma ética social comum, batendo-se nas portas do STF em busca de uma resposta judicial toda vez que aquele vazio de valores é notado e precisa ser preenchido.

 

Também não posso me silenciar diante de outro problema, que afeta não só os ministros do STF, mas a classe jurídica como um todo: o apego processual que, muitas vezes, pode impedir a realização do justo concreto. Os embargos infringentes são uma invenção portuguesa, com certeza. Hoje, em regra, são manejados inescrupulosamente como meio para se ampliar o prazo para a interposição de outros recursos.

 

São mais uma chance de julgamento, diante de uma decisão colegiada sem votação unânime, na matéria em que houve divergência. E se a decisão foi tomada pelo plenário do STF numa ação penal originária de sua competência? Não importa, porque deve prevalecer o duplo grau de jurisdição, ainda que a jurisdição venha a ser exercida pelos mesmos juízes do julgamento anterior.

 

E por quê? Porque se entende que esse uso do processo é garantista dos direitos individuais em face de possíveis arbitrariedades do julgador ou do dono de poder de plantão. Então, quanto mais recursos houver, maior será o garantismo processual do cidadão. O processo, que tem sua razão de ser, deixa de ser meio para a construção do justo concreto e se torna um fim em si mesmo. Em suma, pensar o direito fica reduzido ao pensar no processo. O endeusamento processual cria, ao cabo, um obstáculo à realização do direito.

 

Quais os limites institucionais que julgamos adequados para uma acertada atuação do STF no concerto político-social? Antes, porém, não seria melhor buscar um consenso mínimo acerca dos valores fundantes e perpetuadores de uma ordem social justa? O apego processual corresponde à realidade do direito e proporciona o império do justo concreto? Deixo essas perguntas para o leitor. É o que penso e, nesse caso, convém não respeitar a divergência, sob o risco de embargos infringentes...

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito e coordenador do IFE-Campinas (agfernandes@tjsp.jus.br).


O Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais do TJSP