608 – Ensino jurídico, mortos e vivos
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
Novamente, irão discutir a situação do ensino jurídico no Brasil. Prática reiterada desde os debates parlamentares sobre a criação dos cursos jurídicos (1823-1827), o que demonstra a importância do Direito para nossa sociedade. Hoje, entretanto, não são precisos muita reunião, intermináveis debates acalorados nem muito café para ressaltar aquilo que salta aos olhos de quem vive o mundo acadêmico: uma série de cursos pouco comprometida com uma formação profissional decente, focados na mera transmissão do direito oficial sem muita reflexão e pautados pela estrita lógica de mercado.
Sem prejuízo disso, nesse diagnóstico de paciente terminal, também assusta a pouca preocupação com uma transmissão qualitativa de temas de formação fundamental para o estudante, como noções de ética, antropologia, ciência política, economia, filosofia, história, psicologia, sociologia e hermenêutica.
Não admira que, quando submetidos à uma avaliação formal que demande o entrelaçamento de todos esses conteúdos, o estudante simplesmente fica sem reação intelectual. Parece que o cérebro trava e as mãos soltam a caneta. Porque foram mãos que, ao longo de um curso inteiro, empregaram a mesma caneta para a passiva tarefa de copiadores profissionais de anotações de aula, conduzidas, em regra, pelo monótono discurso do mais do mesmo.
Com essa postura cômoda em ambas as partes da relação pedagógica, o prejuízo maior é para o aluno, porque reduz o conteúdo de sua formação profissional e torna-se um potencial número para as crescentes e inelásticas estatísticas de reprovação em concursos públicos e em exames para ingresso na advocacia. Agravado pelo fato de que andam ouvindo muito sertanejo universitário...
De uns tempos para cá, a história do ensino jurídico lembra um pouco o que Shakespeare dizia da história geral: um conto de crimes narrado por um louco. Ou seja, uma narrativa pedagógica de incoerências e equívocos que afetam a essência do Direito e que, de certa forma, ofuscam sua beleza e seu valor.
Divagações filosóficas e literárias à parte, há outra faceta pouco debatida e que pode ser estendida para a formação profissional em qualquer outro campo do saber. No seio dessa dissonância entre formação acadêmica e necessidade de pública comprovação de um mínimo de aptidão profissional, está a questão da importância da profissão para uma pessoa.
A profissão é o meio pelo qual o ser humano se instala num determinado locus social e, a partir de então, adquire um ângulo de vista a partir do qual pode acrescentar novas e ricas realidades ao lugar em que vive, dentro das circunstâncias ali existentes. Por isso, uma deficiência orgânica nos princípios pedagógicos do ensino de uma área tão sensível socialmente como o Direito provoca uma espécie de “desemprego forçado” do bacharel recém-egresso dos bancos acadêmicos.
Esse “desemprego forçado” é um grande atentado contra a dignidade da pessoa humana, pois impede – no nascedouro de uma longa perspectiva de vida profissional – que esse ex-estudante possa ser útil socialmente, ao mesmo tempo em que lhe diz o que efetivamente não é: a lógica de certa razão instrumental pede-lhe que não se incomode, pois logo lhe será concedido um polpudo e longevo seguro-desemprego, já que essa pessoa não tem mais nada para oferecer à sociedade.
Condenar uma pessoa – na flor da existência humana – à estrita sobrevivência é, no fundo, exilá-la precocemente do mundo dos homens e relegá-la à “periferia existencial” da realidade, na condensada e feliz expressão empregada pelo Papa Francisco em seu discurso de posse na cátedra de Pedro.
Se, quanto ao diagnóstico, predomina certo consenso, no prognóstico, pairam naturais e saudáveis divergências que serão objeto de muita crítica. Só espero que, como professor e pesquisador, o discurso não fique centrado na questão da inegável legitimidade dos protagonistas da cena, a comunidade acadêmica jurídica, e no louvável procedimento adotado, inspirado nos valores da transparência e da democracia.
É preciso ir além. Lembrar que esses estudantes têm direito à uma existência profissional digna, para a qual deve também concorrer o esforço próprio. Mas, para se empregar algum esforço, é necessário estar refletindo, isto é, estar “vivo”. Hoje, induzidos, pela pedagogia empregada, à condição de meros copiadores profissionais, os jovens estudantes são verdadeiros “mortos-vivos” e, a continuar assim, chegarão à idade adulta, existencialmente, mais “mortos” do que “vivos”. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito e coordenador do IFE-Campinas (agfernandes@tjsp.jus.br).