611 - A jurisdição trabalhista constitucional no século XXI: novas tutelas
TEREZA APARECIDA ASTA GEMIGNANI[1] - Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas
“A imprescindibilidade de uma nova teoria do processo deriva, antes de tudo, da transformação do Estado, isto é, do surgimento do Estado constitucional, e da consequente remodelação dos próprios conceitos de direito e jurisdição”.
Luiz Guilherme Marinoni
Teoria Geral do processo- V.1
Resumo
A nova configuração que a Constituição Federal de 1988 atribuiu aos direitos fundamentais veio produzir efeitos não só em relação aos direitos trabalhistas materiais, mas também aos processuais, desafiando a edificação de uma jurisdição trabalhista constitucional. Tal se dá porque na era contemporânea, marcada pela crescente complexidade dos conflitos, se revela insuficiente à mera cominação de ressarcimento após o dano já ter ocorrido. A comemoração dos 70 anos de publicação da CLT e dos 25 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988 vem explicitar, de maneira contundente, a importância da jurisdição constitucional, que confere maior amplitude às tutelas de urgência e evidência, além de abrir espaços para a implementação das tutelas de prevenção e precaução no processo trabalhista, a fim de dar cumprimento aos princípios constitucionais que garantem a eficiência da jurisdição, restaurando a credibilidade das instituições que sustentam a república brasileira.
Palavras-chave: jurisdição; constitucional; justiça; tutela da prevenção; tutela da precaução; legalidade substantiva; 70 anos; publicação; CLT; 25 anos; promulgação; CF/88.
1. Introdução
Enquanto o direito material do trabalho surgiu sob a égide do princípio da proteção, o direito processual trabalhista sempre esteve imbricado com o princípio de acesso efetivo à jurisdição, marcado por procedimentos simples e diretos, que priorizavam a análise de mérito das controvérsias postas em Juízo. Inicialmente, tinha por escopo primordial a reparação da lesão já ocorrida, mediante tutela ressarcitória dos prejuízos sofridos, passando posteriormente a admitir também a tutela dos bens ameaçados, atuando para evitar a concretização da lesão.
A Constituição Federal de 1988 trouxe nova configuração ao direito processual, desencadeando inúmeras alterações legais no CPC, muitas delas lastreadas no princípio da eficiência, que passou a ser acrescentado ao rol do artigo 37 pela Emenda Constitucional 19/98, conferindo à jurisdição uma atuação mais assertiva.
Entre elas merecem especial destaque as modificações introduzidas nos artigos 273 e 461 do CPC, notadamente quanto às tutelas de urgência e evidência, que abriram caminho para a posterior constitucionalização da razoável duração, implementada pela Emenda 45/04 ao inserir o inciso LXXVIII, ao artigo 5º, exsurgindo inequívoca a preocupação em conferir o máximo de eficiência e efetividade à prestação jurisdicional.
As alterações sociais e econômicas provocadas pela pós-modernidade se intensificaram no início do século XXI, aumentando a complexidade dos conflitos no mundo do trabalho, a demandar o alargamento das vias de acesso à jurisdição. Já não bastava apenas ressarcir os danos já ocorridos, ou as ameaças evidenciadas. Era preciso ir além.
Na contemporaneidade, o acesso à jurisdição lança como novo desafio jurídico a efetivação das tutelas de prevenção e precaução, a fim de conferir eficácia ao marco normativo posto pelos princípios constitucionais, na senda aberta por Dworkin[2] ao demonstrar a importância de levar os direitos a sério para preservar a vida em sociedade.
2. As diferentes fases
Em obra clássica sobre o tema, Mauro Cappelletti[3] explicou que o acesso à justiça passou por momentos distintos. O primeiro considerava ser preciso abrir caminhos aos menos favorecidos, para que pudessem obter tutela jurisdicional nos casos de lesão, já que não dispunham de condições para a realização concreta dos seus direitos. Na justiça comum surgiram as defensorias públicas e as leis que garantiam assistência judiciária gratuita. Na justiça do Trabalho, que já albergava o jus postulandi e a assistência sindical, ampliaram-se as possibilidades de substituição processual.
O segundo, marcado pela intensificação da urbanização e desenvolvimento das grandes cidades, veio desnudar a existência de interesses difusos e transindividuais homogêneos, evidenciando a importância da tutela jurisdicional para que se revestissem de eficácia, evitando que fossem deixados à margem do sistema.
O terceiro deixa de tratar o processo como fim em si mesmo para considerá-lo instrumento de efetivação do direito material, revelando que mais importante do que resolver uma lide é solucionar o próprio conflito, mediante pacificação com justiça.
Cândido Rangel Dinamarco[4] acentuou esta diretriz ao tratar dos escopos do processo, relacionando-os à idéia de justiça e ressaltando que sua utilidade só pode ser medida e avaliada quando claramente delineado quais os fins propostos e, se são atingidos ou não. Tal se dá porque “não basta alargar o âmbito de pessoas e causas capazes de ingressar em juízo, sendo também indispensável aprimorar internamente a ordem processual, habilitando-a a oferecer resultados úteis e satisfatórios aos que se valem do processo”.
Como bem ressalta Cássio Escarpinella Bueno[5], o que deve ser posto em destaque é que os direitos constitucionais, “independentemente de qual ‘dimensão’ ou ‘geração’ pertençam, são, ao contrário do que a doutrina tradicional quis parecer, ‘justiciáveis’ no sentido de que eles não podem e não devem ser entendidos como meras prescrições de direitos sem que houvesse, garantidos no próprio ordenamento jurídico, meios de sua realização concreta, imperativa [...]”.
Nesta senda, explica Dinamarco, para a “plenitude do acesso à justiça importa remover os males resistentes à universalização da tutela jurisdicional e aperfeiçoar internamente o sistema, para que seja mais rápido e mais capaz de oferecer soluções justas e efetivas. É indispensável que o juiz cumpra em cada caso o dever de dar efetividade ao direito, sob pena de o processo ser somente um exercício improdutivo de lógica jurídica”.
Os princípios postos pela Carta Constitucional de 1988 configuram o processo como instrumento para garantir a efetividade dos direitos trabalhistas, de sorte que o acesso à justiça não pode ficar restrito ao aspecto formal, devendo implicar na eficiente tutela do direito material.
Conhecido como “dever de boa administração”, segundo Diogenes Gasparini[6], tal princípio impõe a obrigação de atuar com eficiência, preceito que também se aplica à administração da justiça, de modo a conferir maior satisfação quanto ao acesso à jurisdição, traçando uma diretriz de aprimoramento institucional que abre caminhos para o exercício pleno da cidadania para os atores sociais que militam no mundo do trabalho.
Traz para o processo trabalhista a teoria garantista de Luigi Ferrajoli[7] notadamente quando trata da efetividade da norma e de sua eficácia como balizadora de conduta.
3. 70 anos da CLT e 25 anos da Constituição Federal: a renovação do desafio
A comemoração dos 70 anos da CLT e dos 25 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988 não é só uma feliz coincidência. Traz o renovado desafio de implementar esta perspectiva garantista em concreto, mediante a edificação de uma jurisdição trabalhista constitucional. Tal se dá porque na era contemporânea, marcada pela crescente complexidade dos conflitos, se revela insuficiente à mera cominação de ressarcimento após o dano já ter ocorrido, sendo necessário conferir maior amplitude às tutelas de urgência e evidência, além de abrir espaços para a implementação das tutelas de prevenção e precaução que atuem antes, evitando a própria ameaça ou ocorrência do dano, a fim de dar cumprimento aos princípios constitucionais que garantem o efetivo acesso à justiça.
4. As novas tutelas
A configuração de direitos tidos por fundamentais pela Carta Constitucional de 1988, dentre os quais estão inseridos os trabalhistas, abriu o horizonte deste debate, principalmente nos pontos em que o artigo 7º da CF/88 navega em intersecção e confluência com o disposto no artigo 5º da Carta Constitucional. Diferentemente do que aduzem alguns doutrinadores, as diferentes “gerações” de direitos fundamentais não se apresentam mais setorizadas em compartimentos estanques, passando a atuar de forma dinâmica, em sinergia.
Assim sendo, não se pode mais restringir o escopo do processo trabalhista apenas à reparação pecuniária da lesão já consumada, quando seu marco distintivo está atrelado a uma perspectiva mais ampla, como pioneiro na abertura dos canais de acesso rápido e direto a uma jurisdição comprometida também com a tutela da prevenção e precaução, a fim de evitar a própria ocorrência da lesão, notadamente quando se trata de reduzir os riscos inerentes ao trabalho e garantir a proteção em face da automação, conforme preceituam os incisos XXII e XXVII do artigo 7º, que devem ser implementados com observância da “razoável duração do processo” e “dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação,” como estabelece o inciso LXXVIII do artigo 5º, ambos da CF/88.
O movimento de constitucionalização, desencadeado pela Carta de 1988, veio provocar alterações legais significativas no processo civil a partir da década de 90, que passaram a ser adotadas pela jurisprudência também para o processo trabalhista por força do artigo 769 da CLT, em decorrência da explícita compatibilidade. Entre estas merecem especial destaque as seguintes:
4.1 Possibilidades mais amplas de antecipação das tutelas
Aplicação no processo trabalhista do disposto no caput, incisos I e II, além do parágrafo 7º do artigo 273 do CPC in verbis:
Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:
I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação;
II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.
§ 7o Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.
Ao prever a antecipação do provimento judicial inaudita altera parte, agasalhando as tutelas de urgência (inciso I) e de evidência (inciso II), além de conferir nova configuração à medida cautelar incidental nos autos do processo já ajuizado (parágrafo 7º), o preceito legal vem priorizar a eficiência da jurisdição, possibilitando a concessão baseada em verossimilhança, para tanto deixando de exigir a certeza decorrente de instrução exauriente, face à necessidade de desmistificar “os dogmas da universalidade do procedimento ordinário de cognição”, como ressalta Ada Pelegrini Grinover[8].
Justifica Jorge Pinheiro Castelo[9] que, como “se proibiu a utilização da mão própria e se estabeleceu o monopólio da tutela jurisdicional”, seu exercício “tem que ser efetivo e eficiente”, de modo que o “acesso à justiça e à ordem jurídica justa tem de se dar sem embaraços, ou seja, de forma direta e imediata”. Assim sendo, uma das soluções encontradas para a “crise do tradicional sistema processual brasileiro, calcado no modelo do processo de conhecimento”, consistiu na introdução do poder geral de antecipação da tutela.
Na seara trabalhista, além da concessão de medida liminar para reintegração de dirigente sindical nos termos do inciso X, acrescido ao artigo 659 da CLT na esteira do anteriormente já disposto em seu inciso IX, a jurisprudência passou a deferir a antecipação de tutela de forma mais ampla, na esteira da lei adjetiva civil. Mas não é só.
4.2 Abrangência das obrigações de fazer/não fazer
Há um movimento crescente no sentido de conferir maior importância às obrigações de fazer/não fazer, quando se trata de tutelar a prevenção e a precaução, atribuindo-lhes conotação na esteira do disposto no caput e parágrafos 3º, 4º e 5º do artigo 461 do CPC, ao dispor:
Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 3o Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.
§ 4o O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.
§ 5o Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
Neste contexto, releva pontuar ter o parágrafo 5º possibilitado ao Juiz decidir de ofício para determinar as medidas necessárias, para tanto considerando não só a imposição de multa por atraso, mas também a “busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva”, até mesmo com “requisição de força policial”, o que se reveste de importância significativa quando se trata de garantir condições de saúde e segurança no local de trabalho.
O movimento pendular que oscilou entre o pólo da segurança jurídica de um lado, e o da efetividade/eficiência de outro, mais de uma vez privilegiou estas últimas, a fim de evitar o perecimento do direito material e assegurar o pleno acesso à justiça.
A pós-modernidade explicitou um mundo marcado pela ambigüidade e ambivalência, que revela a “riqueza polissêmica da realidade humana” como destaca o sociólogo Zygmunt Bauman[10], o que veio impregnar também as relações de trabalho, trazendo novos desafios.
5. O desafio do acesso à justiça no século XXI
Neste contexto, já não basta garantir inafastabilidade da jurisdição para antecipar as tutelas de urgência e evidencia, ou conceder reparação pecuniária para a lesão já ocorrida.
A nova realidade exige a tutela do direito à precaução e à prevenção, como bens que podem ser judicialmente exigidos para evitar a lesão, de tal sorte que no século XXI o direito processual trabalhista é chamado a conferir suporte de eficácia a esta nova configuração do princípio da proteção.
Neste cenário, a atividade jurisprudencial se revela indispensável para colmatar as lacunas do ordenamento infraconstitucional, levando à edificação de novos marcos normativos, num movimento que cada vez mais estimula o diálogo entre as diferentes fontes de direito.
Explica Cláudia de Lima Marques[11] que, ao construir espaços de confluência para atuação das diferentes fontes normativas, o método utilizado para implementar o diálogo das fontes se revela “valorativo e inovador”, pois considera as especificidades do conflito concreto, a fim de “preservar a coerência do sistema”.
Assim, para além do pensamento de Norberto Bobbio, que via nesta interrelação situações de subordinação ou coordenação[12], os desafios da era contemporânea exigem a construção de um novo modelo, baseado na harmonização, em que a maior atuação de um ou de outro depende da ponderação dos valores que se apresentam em conflito, para garantir que o ordenamento jurídico se mantenha apto a operar com funcionalidade, não só na solução, mas também na prevenção dos conflitos.
Ressalta Luiz Guilherme Marinoni[13] que:
“a idéia de igualdade formal” veio unificar o “valor dos direitos”, permitindo a sua expressão em dinheiro e, assim, que a jurisdição pudesse conferir a todos eles um significado em pecúnia. Foi quando surgiu a idéia de reparação do dano pelo equivalente, o que obviamente também teve influência sobre a concepção de jurisdição como função dirigida a dar tutela aos direitos privados violados. Ora, se todos os direitos podiam ser convertidos em pecúnia, e a jurisdição então não se preocupava com a tutela da integridade do direito material, mas apenas em manter em funcionamento os mecanismos de mercado, logicamente não era necessária a prestação jurisdicional preventiva, bastando aquela que pudesse colocar no bolso do particular o equivalente monetário.
Entretanto, a valorização da vida e da integridade física, resguardadas como direitos fundamentais pelo inciso XXII, do artigo 7º da CF/88, ao garantir a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”, tornou insustentável esta perspectiva reducionista. Com efeito, veio imprimir-lhes “eficácia irradiante”, que penetra por todo o ordenamento jurídico, “como impulsos e diretrizes”, não só para a atividade do legislador e do administrador, mas também para o juiz, como ressalta Daniel Sarmento[14] o que implica no reconhecimento da necessidade de tutela da prevenção e precaução como bens jurídicos, assim garantindo o acesso eficiente à justiça substancial.
6. As tutelas de prevenção e precaução no processo trabalhista
Conforme anteriormente ressaltado, em artigo sobre o meio ambiente de trabalho[15], o princípio da prevenção consiste na adoção de medidas definidas, que possam evitar a ocorrência de um dano provável, em uma determinada situação fática, reduzindo ou eliminando suas causas, quando se tem conhecimento de um risco concreto, como esclarece Germana Parente Neiva Belchior[16].
Distintamente, o princípio da precaução implica na adoção antecipada de medidas amplas, que possam evitar a ocorrência de possível ameaça à saúde e à segurança. Deste modo, afirma Paulo Affonso Leme Machado[17], enquanto o princípio da prevenção está direcionado a evitar riscos determinados, o princípio da precaução aponta para a adoção de medidas acautelatórias gerais, considerando o risco potencial.
A tutela jurídica da precaução e da prevenção representa a quebra do paradigma até então imperante, criando um espaço de confluência da segurança jurídica com a efetividade da jurisdição, agora imbricadas em articulação constante como vasos comunicantes, em benefício de todos os envolvidos, fazendo valer as diretrizes traçadas pelo Estado constitucional para reger um novo modelo de processo, muito mais comprometido com a eficiência do direito material, como valor intrínseco à própria formação do direito do trabalho.
A conotação de natureza instrumental ao processo, além do reconhecimento dos efeitos e consequências que as lesões, mesmo as individuais, provocam em todo entorno social, levam à necessidade de garantir novas vias de acesso à jurisdição, notadamente quanto às tutelas de prevenção e precaução, concedidas como obrigação de fazer/não fazer com esteio no artigo 461 do CPC, inclusive no que se refere à pretensão específica e direta quanto às “providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”.
Assim, ao ter conhecimento que determinada empresa procede ao controle da jornada de forma incorreta, que provoca não só prejuízo econômico, mas também dano às condições de saúde dos empregados, se revela juridicamente sustentável que um sindicato, na qualidade de substituto processual, ingresse em Juízo pleiteando tutela específica, ou seja, a obrigação de fazer consistente na alteração deste sistema. O atendimento desta pretensão confere efetividade substantiva ao acesso à justiça, porque além de resguardar os direitos trabalhistas da coletividade dos envolvidos na mesma situação fática, também propicia a eficiência da jurisdição, ao evitar o ajuizamento de inúmeras ações individuais futuras.
No caso de pagamento incorreto, “por fora”, com sonegação não só de direitos trabalhistas, mas também fundiários e previdenciários, fato que vem sendo constatado cada vez mais de forma recorrente, perfeitamente possível à atuação judicial do sindicato para que seja determinado o cumprimento da obrigação de fazer (lançamento correto em folhas de pagamento), o que também contribuirá para evitar o ajuizamento de inúmeras ações no futuro.
Importante pontuar, que a matéria em que as tutelas de prevenção se revestem de maior relevância, em virtude da importância do bem jurídico protegido, se referem ao meio ambiente de trabalho, pois se trata de adotar conduta acautelatória para evitar o dano in re ipsa, cuja ocorrência, por si só pode configurar irreversibilidade da lesão quanto à integridade física, ou perda da vida, casos em que a tutela restrita à ameaça ou a reparação “será não só tardia como inócua”, explica Scarpinella Bueno[18]. Assim, propõe uma nova leitura do inciso XXXV, do artigo 5º, por entender que veio ampliar o acesso à justiça, convidando a uma “renovada reflexão” e sua “correspondente sistematização” no sentido “de pensar na tutela jurisdicional preventiva ao lado da tutela jurisdicional repressiva”.
Nesta senda, o inciso XXII do artigo 7º da CF 88 veio assegurar, como fundamental, o direito à “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”, diretriz reiterada no inciso VIII do artigo 200, de modo que o local de trabalho também deve observar as exigências contidas no artigo 225 da Carta Constitucional, no sentido de propiciar “sadia qualidade de vida”.
A CLT dedicou todo o capítulo V para tratar deste assunto, merecendo destaque o constante dos artigos 163, 164 e 166 quanto à atuação da CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) e fornecimento de EPI (equipamento de Proteção Individual), bem como o constante da Portaria 3214/78 que instituiu as NRs, periodicamente atualizadas para oferecer respostas aos novos problemas que surgem no ambiente de trabalho.
Destarte, se o empregador não fornece os equipamentos de proteção individual, ou deixa de atender às providencias indicadas pela CIPA, tais pleitos poderão ser objeto de ação judicial intentada pelo sindicato e também pelo Ministério Público do Trabalho, com estipulação das respectivas obrigações de fazer. Assim, por exemplo, ao invés de ficar exposto anos a fio a elevado nível de ruído, o que poderá provocar surdez irreversível e incapacitar o empregado para a atividade laboral, além de comprometer para sempre sua qualidade de vida, o acesso à justiça se mostrará muito mais eficiente e efetivo se, durante a vigência contratual, for imputada à empresa obrigação de fazer preventiva que evite o aparecimento da lesão.
Tal se dá porque o meio ambiente de trabalho, pela dimensão e importância que apresenta, congrega direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, cujo descumprimento provoca consequências que desbordam os limites de uma relação meramente contratual entre empregado/empregador, espraiando seus efeitos para todo o entorno social, além de comprometer a credibilidade das instituições judiciais quanto à eficácia de sua atuação. Conforme já sustentei em artigo sobre o tema[19] a eficácia dos direitos fundamentais não se restringe mais ao plano vertical com o Estado, abrangendo também as relações horizontais entre particulares, de sorte que assim pode ser exigido.
Prevenir lesões beneficia não só o empregado durante a vigência do contrato de trabalho, mas também o empregador, pois não terá que arcar com um expressivo passivo trabalhista advindo de múltiplas demandas, além da sociedade como um todo, porque levará à redução dos níveis de conflitualidade, evitará a falta de recolhimentos fiscais e fundiários, diminuirá os custos com assistência médica e concessão de aposentadorias precoces por invalidez, além de impedir a saturação da máquina judiciária.
7. A mudança de paradigma
O positivismo dogmático baseou-se na interpretação radical da teoria de separação dos poderes, atribuindo ao legislador a exclusividade na criação do direito e restringindo a atuação do juiz à sua aplicação e o conceito de jurisdição “à reparação do direito violado”, explica Luiz Guilherme Marinoni[20], negando-lhe o “poder de dar tutela preventiva aos direitos, uma vez que, na sua perspectiva, a função de prevenção diante da ameaça de não observância da lei era da administração”, mediante implementação de políticas públicas, ficando para o judiciário a incumbência de “dar tutela aos direitos privados violados”.
Entretanto, a complexidade e a exposição à riscos crescentes na sociedade contemporânea veio demonstrar que se trata de modelo superado, que se tornou insustentável por comprometer os princípios da eficácia, eficiência e efetividade do ordenamento legal. Com efeito, ao invés de garantir tutelas de prevenção e precaução, que evitem a ocorrência do evento danoso, admitir que a conduta ilícita possa ser tolerada, provoca ao longo do tempo expressivo passivo trabalhista, que pode comprometer a viabilidade do empreendimento econômico e o perecimento de postos de trabalho, além do enorme custo previdenciário a ser suportado por toda a sociedade quanto aos tratamentos médicos, afastamentos por acidentes e doenças profissionais, mais a concessão de aposentadorias precoces. E, o mais importante, gera efeitos nocivos muitas vezes irreversíveis à saúde e integridade física, comprometendo as condições de empregabilidade dos trabalhadores que, alijados precocemente da atividade produtiva levam seus filhos a abandonar mais cedo a escola para poder ajudar na manutenção da casa, assim criando um circulo vicioso de subqualificação e pobreza.
Ademais, é preciso relembrar que o processo trabalhista nasceu com o compromisso de conferir efetividade ao direito material e o conceito de acesso à justiça sempre teve conotação ampliada, no sentido de impedir que a desigualdade econômica redundasse em desigualdade no exercício dos direitos de cidadania.
O estado constitucional veio desnudar o mito da lei “genérica, abstrata, coerente e fruto da vontade” do parlamento, revelando todo o embate e o jogo provocado pela correlação das diferentes forças que atuam numa sociedade cada vez mais heterogênea e complexa, que gera conflitos cuja solução não pode advir apenas das regras infraconstitucionais, tornando imperiosa a aplicação dos princípios constitucionais, o que vai conferir dimensão substantiva à legalidade.
Por isso, explica Marinoni, não há como reduzir a jurisdição apenas “à atuação da lei”, sendo necessário reconhecer ao judiciário a atribuição de construção, “já que dele se espera uma atividade essencial para dar efetividade” aos direitos postos pela Constituição. Tal reflexão se reveste de importância peculiar quando o processo está voltado para a concretização dos direitos inseridos no artigo 7º da CF/88 como fundamentais que “por serem mandamentos de otimização, tendem a irradiar efeitos por toda a ordem jurídica” como bem ressalta Virgílio Afonso da Silva[21].
Para tanto, cabe à jurisdição dar “tutela concreta ao direito material”, conferindo eficácia e eficiência ao seu “conteúdo operacional”. Este conceito adquire importância significativa na era contemporânea, quando se constata que reparar a lesão já ocorrida, ou antecipar a concessão apenas deste tipo de tutela, se torna insuficiente para dar efetividade aos direitos garantidos pela Constituição, que não só albergam interesses individuais, mas também coletivos, especialmente quando se trata de preservar o direito à saúde e à integridade física no meio ambiente de trabalho. Diante disso o acesso à justiça só se aperfeiçoa com a “atividade executiva”, esclarece Marinoni, pois mais do que o direito à sentença “o direito de ação, hoje, tem como corolário o direito ao meio executivo adequado”, o que redunda no reconhecimento da necessidade de concessão das tutelas de prevenção e precaução.
Como bem observa Norberto Bobbio[22], a expressão “direitos humanos” pode provocar equívocos se a considerarmos como “direitos que pertencem a um homem abstrato e, como tal, subtraídos ao fluxo da história, a um homem essencial e eterno, de cuja contemplação derivaríamos o conhecimento infalível dos seus direitos e deveres. Sabemos hoje que também os direitos ditos humanos são o produto não da natureza, mas da civilização humana: enquanto direitos históricos, eles são mutáveis, ou seja, suscetíveis de transformação”.
8. Conclusão
Não se pode deixar de considerar que a nova configuração, que a Constituição Federal de 1988 atribuiu aos direitos fundamentais, veio impactar não só os direitos trabalhistas materiais, mas também os processuais, assim desafiando a edificação de uma jurisdição constitucional. Tal se dá porque, ao impedir a justiça pelas próprias mãos, o Estado trouxe para si o dever de dotar a tutela jurisdicional de efetividade, o que não pode ser obtido de forma satisfatória apenas com a reparação e o ressarcimento do dano já ocorrido.
A comemoração dos 70 anos de publicação da CLT e dos 25 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988 vem explicitar, de maneira contundente, que é necessário conferir maior amplitude às tutelas de urgência e evidência, além de abrir espaços para a implementação das tutelas de prevenção e precaução no processo trabalhista, a fim de dar cumprimento aos princípios constitucionais que estabelecem a eficácia e efetividade da jurisdição.
Tal ocorre porque a complexidade dos novos conflitos trabalhistas, que surgem na era contemporânea, geram efeitos que ultrapassam os limites de uma relação meramente contratual, exigindo a ampliação qualitativa do acesso à justiça. Tutelar a prevenção e a precaução, reconhecendo-lhes a condição de bens jurídicos passíveis de ser judicialmente exigidos, preserva a saúde e a integridade física do trabalhador, a um menor custo para o empregador, além de possibilitar que a máquina judiciária atue com maior eficiência em prol de toda a sociedade, restaurando a credibilidade das instituições que sustentam a república brasileira.
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[1] GEMIGNANI, Tereza Aparecida Asta é Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas. Doutora - pós-graduação stricto sensu - com tese aprovada pela Universidade de São Paulo (USP).
Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho (ANDT) - cadeira 70.
Membro da Rede Latino Americana de Juízes (REDLAJ).
[2] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002 - págs. 313 e seguintes.
[3] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. [s.l.]: Sergio A. Fabris, 1988.
[4] DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros Editores, 2005 – pág. 133.
[5] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil- Teoria Geral do Direito Processual Civil. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2008 - págs. 59 e seguintes.
[6] GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2012.
[7] FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione. Bari: Laterza, 1990 - págs. 891 e 892.
[8] GRINOVER, Ada Pellegrini. Tutela jurisdicional diferenciada: a antecipação e sua estabilização in O processo- estudos e pareceres. São Paulo: Perfil, 2005 - págs. 30 a 50.
[9] CASTELO, Jorge Pinheiro. O direito material e processual do trabalho e a pós-modernidade: a CLT, o CDC e as repercussões do novo Código Civil. São Paulo: LTR, 2003 - págs. 384, 391 e seguintes.
[10] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999 - págs. 172 e 190.
[11] LIMA MARQUES, Cláudia. O diálogo das fontes como método da nova teoria geral do direito: um tributo a Erik Jayme in Diálogo das Fontes: do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012 - pág. 63.
[12] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: Da UnB, 1997.
[13] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007 - págs. 32 e seguintes.
[14] SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008 - págs. 124 e seguintes.
[15] GEMIGNANI, Tereza Aparecida Asta; GEMIGNANI, Daniel. Meio ambiente de trabalho: precaução e prevenção. [s.l.]: Revista CEJ, ano XVI, 2012 - págs. 50 a 58.
[16] BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica Jurídica Ambiental. São Paulo: Saraiva, 2011 - págs.208 e seguintes.
[17] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006 – págs. 65 e seguintes.
[18] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Obra citada - págs. 102 a 103.
[19] GEMIGNANI, Tereza Aparecida Asta; GEMIGNANI, Daniel. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho. [s.l]: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, nº 35, 2009.
[20] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. Vol. 1 São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007 - págs. 32 a 46 e 110 a 120.
[21] AFONSO DA SILVA, Virgílio. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008 - pág. 175.
[22] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992 - págs. 32 e seguintes.