628 - Retrospectiva 2014 – Direito Empresarial
MARCELO BARBOSA SACRAMONE [1] - Juiz de Direito
Num cenário marcado pela estagnação da economia, desvalorização da moeda, redução do consumo e insegurança, o ano de 2014 caracterizou-se por alterações legislativas para a proteção do crédito de alguns agentes econômicos.
Dentre as alterações realizadas, duas leis podem ser apontadas como as mais relevantes de 2014 no âmbito empresarial. A primeira delas, a Lei Complementar 147, efetivou a previsão constitucional de tratamento favorecido às microempresas e às empresas de pequeno porte.
A segunda, a Lei 13.043, assegurou tratamento mais célere e menos formalista para a recuperação do crédito bancário. Protegeu, também, o crédito tributário da União, ao tornar efetiva a necessidade de adimplemento dos créditos fiscais para a concessão da recuperação judicial.
Créditos de Microempresas e Empresas de Pequeno Porte submetidos à Recuperação
A Lei Complementar 147 foi promulgada em 7 de agosto de 2014 para incentivar o desenvolvimento econômico dos empreendedores de menor porte.
Além de ampliar o regime tributário do Simples Nacional, a LC 147 estabeleceu um tratamento favorável aos créditos das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte em face dos demais créditos submetidos à falência e à recuperação.
Na hipótese de falência do devedor, os créditos de ME e de EPP foram elevados à categoria dos créditos com privilégio especial e foram inseridos no art. 83, §4º, IV, da Lei 11.101/05.
A classificação dos créditos submetidos à falência, entretanto, era baseada na natureza da relação jurídica estabelecida entre o devedor e o credor. A alteração legislativa inclui, nesse particular, como critério diferenciador de pagamento, a titularidade do crédito, independentemente de qualquer característica distintiva quanto ao crédito e em detrimento de créditos similares.
A inserção permite que referidos créditos sejam integralmente satisfeitos logo após a satisfação dos credores extraconcursais, dos créditos derivados da legislação do trabalho, desde que até 150 salários mínimos, dos créditos decorrentes de acidentes de trabalho e dos créditos com garantia real. O pagamento, por seu turno, será realizado com primazia aos créditos com privilégio geral e, notadamente, aos créditos quirografários, que se diferenciam daqueles apenas por serem titularizados por pessoas distintas da ME e EPP.
Essa distinção com base na titularidade do crédito foi inserida também nos órgãos da falência e recuperação. A Lei Complementar 147 inseriu a possibilidade de existir um representante exclusivo para os credores ME e EPP no Comitê de Credores.
Inseriu também uma nova classe na assembleia geral de credores: a classe dos titulares de créditos enquadrados como ME e EPP. Para a referida classe, assim como ocorre para classe dos credores trabalhistas nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, a aprovação da proposta de plano de recuperação judicial deverá ser realizada pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor de seu crédito.
Essa alteração é ainda mais relevante pois, apesar da inserção da nova classe, manteve-se inalterada a forma alternativa de aprovação do plano de recuperação. Desde que haja votos favoráveis de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos, aprovação de ao menos duas das classes de credores e, nas classes que o rejeitaram, aprovação de ao menos 1/3 dos credores, computados na forma da Lei, poderá ser concedida a recuperação judicial.
Assim, longe de apenas aumentar a representatividade dos credores ME e EPP, o tratamento favorecido modificou a dinâmica da própria recuperação judicial. A satisfação dos interesses de determinados credores passa a ser mais relevante do que de outros credores detentores de créditos idênticos ou ainda mais importantes à continuidade da empresa.
Não apenas os credores ME e EPP foram favorecidos pela nova disciplina legal. Os devedores ME e EPP também receberam tratamento privilegiado pela Lei Complementar 147.
A remuneração do administrador judicial não mais possuirá o teto de 5% do valor devido aos credores submetidos à recuperação judicial ou do valor de venda dos bens na falência. Caso o empresário em recuperação judicial ou falência for ME ou EPP, a remuneração do administrador será fixada com base no limite máximo de 2% dos referidos valores.
Além disso, o requisito negativo para a concessão da recuperação judicial de não ter obtido recuperação prévia com base em plano especial fora reduzido de oito para cinco anos. Assim como foram concedidos às ME e EPP prazos 20% superiores aos demais empresários para o parcelamento de seus créditos tributários em sede de recuperação judicial.
Por fim, quanto às ME e EPP devedoras, novidade importante inserida pela Lei Complementar 147 foi a alteração da disciplina do plano especial de recuperação judicial. Pela nova redação conferida ao art. 71, da Lei 11.101/05, os créditos que poderão ser submetidos ao plano especial de recuperação foram estendidos e não se circunscrevem mais aos créditos quirografários. Poderão ser abrangidos pelo plano todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
Outrossim, apesar de tímida, a Lei ampliou as formas de reestruturação da empresa no referido plano. Ainda que tenha mantido a previsão de parcelamento em até 36 meses, com a novidade de incidência da SELIC sobre as parcelas, permitiu que a proposta contivesse o abatimento do valor das dívidas. Essa recuperação judicial especial para as ME e EPP não será concedida, todavia, se houver objeções de credores titulares de mais da metade de qualquer uma das classes de credores, computados na forma da Lei.
Procedimento da Alienação Fiduciária em Garantia
A segunda alteração legislativa importante ocorreu com a Lei 13.043, de 13 de novembro de 2014.
Referido ato normativo alterou diversos institutos jurídicos. Para a retrospectiva em direito empresarial, dois são de grande relevância: a alienação fiduciária e, novamente, a recuperação judicial.
A lei 13.043 alterou, inicialmente, a redação original do Decreto-Lei 911/1969, que dispõe sobre as normas procedimentais para a alienação fiduciária em garantia de bens móveis.
Caracteriza-se a alienação fiduciária por seu um contrato acessório, que procura garantir a obrigação principal contraída entre as partes. Pelo contrato de alienação fiduciária em garantia, transfere-se a propriedade de uma coisa ou direito ao credor originário para garantia de uma dívida principal do devedor. A propriedade do bem é transferida ao credor, mas apenas de modo resolúvel; o credor fiduciário se obriga a restituir a propriedade ao devedor fiduciante, depois que satisfeita a obrigação principal.
Referido contrato é popularmente usado no Brasil para a aquisição de automóveis. O adquirente de um automóvel, sem que possua recursos para o pagamento à vista, contrai um financiamento com a instituição financeira para a sua aquisição. Em garantia ao mútuo contraído, realiza-se um segundo contrato, de alienação fiduciária em garantia, para assegurar o cumprimento do primeiro. Pelo contrato de alienação fiduciária, a propriedade do próprio veículo é transferida normalmente à instituição financeira credora, que passa a ser a proprietária resolúvel do bem até que satisfeito o mútuo. Por seu turno, a posse se desdobra, de modo que a posse direta permanece com o adquirente e a indireta com a instituição financeira, que passa a ser a proprietária do bem.
Em 2004, para tornar mais célere o procedimento e a recuperação do crédito, a Lei 10.931 já havia alterado diversos dispositivos do Dec-lei 911/69. Dentre os dispositivos mais relevantes, alterou-se a redação do art. 3º, que previa que o réu inadimplente, após a execução da liminar de busca e apreensão do bem, seria citado para, em três dias, apresentar contestação ou purgar a mora, em prazo assinalado pelo juiz, desde que já tivesse pago 40% do preço financiado.
Na redação da Lei 10.931/04, fora concedido o prazo de 15 dias para contestar, fora suprimida a possibilidade de purgação da mora e garantiu-se ao devedor, para evitar que a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem se consolidassem no patrimônio do credor fiduciário, o pagamento no prazo de cinco dias da execução da liminar da integralidade da dívida pendente segundo os valores apresentados na inicial.
A redação fornecida pela Lei 10.931 gerou interpretações diversas dos operadores e aplicadores. Parte da jurisprudência entendeu que o dispositivo era eivado de inconstitucionalidade por afronta aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Ao exigir o pagamento integral da dívida, e não apenas das parcelas vencidas e não pagas, o dispositivo violaria o princípio da proporcionalidade. Ademais, a exigência de pagamento sob pena de consolidação da propriedade plena ocorreria antes mesmo do decurso do prazo para a apresentação de contestação, o que afrontaria o contraditório e ampla defesa, garantias constitucionais.
A questão fora pacificada esse ano em recurso repetitivo. Fora decidido que, nos contratos de alienação fiduciária celebrados após a Lei 10.931/2004, não é mais possível o pagamento apenas das prestações vencidas para que a propriedade não se consolide nas mãos do credor fiduciário. À falta de previsão da purgação, exige-se o pagamento integral da dívida.
“Direito Civil. Impossibilidade de purgação da mora em contratos de alienação fiduciária firmados após a vigência da Lei 10.931/2004. Recurso repetitivo” (RESP 1.418.593-MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/05/2014)
Com a nova Lei 13.041/2014, procurou-se acelerar ainda mais o procedimento de satisfação do crédito diante do inadimplemento do devedor.
Determinou a Lei que a mora do adimplemento da obrigação decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento, mora ex re, portanto. Sua demonstração, contudo, poderá ser feita de forma mais simples. Na redação original, exigia-se carta registrada expedida por intermédio de Cartório de Títulos e Documentos ou protesto do título. Na nova redação, a mora poderá ser demonstrada por mera carta registrada com aviso de recebimento. Nessa hipótese, será considerada a demonstração ainda que terceiro assine o aviso de recebimento, desde que endereçada ao endereço constante do contrato.
Demonstrada a mora, o credor poderá obter a medida liminar de busca e apreensão da coisa alienada fiduciariamente. A inovação realizada pela Lei 13.041, nesse aspecto, refere-se à possibilidade de apreciação do pedido de medida liminar inclusive em plantão judicial, de modo que o credor sequer necessita esperar o dia útil para pleitear a satisfação do seu direito.
A nova Lei também se despertou para os novos métodos de constrição dos bens, notadamente dos automóveis. Para tornar a busca e apreensão mais efetiva, determinou a Lei que o juiz deverá, ao conceder a medida liminar, inserir diretamente a restrição judicial ao veículo na base de dados do Renavam, via sistema eletrônico de constrição, o renajud.
Foi também alterada a redação do art. 4º, do Dec-Lei 911/1969. Pela nova redação, não localizado o bem ou se este não se achar na posse do devedor, não se faculta mais ao credor a conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito. A conversão, pela nova redação, restringe-se à ação executiva, em que os demais bens do devedor poderão ser constritos para alienação até a satisfação da dívida.
Essa alteração do Dec-Lei se conforma à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que consolidou o entendimento de que é ilícita a prisão civil do depositário infiel na hipótese do depósito, qualquer que seja ele. No julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, fora assentado pela Suprema Corte que o Pacto de San Jose da Costa Rica, que proibia, em seu art. 7º, a prisão do depositário infiel, possuía hierarquia supralegal e infraconstitucional, a ponto de, portanto, gerar a incidência paralisante dos dispositivos legais que permitiam a prisão. Após referida decisão, a impossibilidade de prisão do depositário infiel tornava a previsão de conversão da busca e apreensão no depósito como medida inócua.
Por fim, a Lei 13.041/2014 consolidou a jurisprudência que aplicava a disciplina da alienação fiduciária aos contratos de arrendamento mercantil, diante da proximidade dos institutos. Pela nova redação do Dec-Lei, os bens objetos de contratos de leasing se submetem ao mesmo procedimento para a busca e apreensão dos bens submetidos ao contrato de alienação fiduciária em garantia.
Propriedade fiduciária na Recuperação Judicial
Além de alterar as normas procedimentais da alienação fiduciária em garantia, a Lei 13.041/2014 realizou alterações quanto aos efeitos da propriedade fiduciária na falência e na recuperação.
Pelo novo art. 6-A, inserido no Dec-Lei 911/69, o pedido de recuperação judicial ou extrajudicial pelo devedor, nos termos da Lei no 11.101, não impede a distribuição e a busca e apreensão do bem.
O dispositivo, contudo, deverá ser interpretado juntamente com a Lei de Falências e Recuperações. Isso porque, na Lei 11.101/05, já havia a previsão, no art. 49, §3º, de que o credor titular da posição de proprietário fiduciário dos bens não terá o crédito submetido aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão sobre a coisa os direitos de propriedade.
A Lei de Falência, contudo, restringe os direitos do proprietário fiduciário. Ainda que seu direito de propriedade prevaleça sobre a coisa, não poderá retirá-la, na busca e apreensão, do estabelecimento do devedor, se consistir em bem de capital essencial ao exercício da atividade do devedor durante o stay period. Esse prazo de até 180 dias contados do deferimento do processamento da recuperação permite que o devedor consiga se estruturar para discutir, com os seus credores, o melhor plano para a recuperação de sua atividade.
A interpretação literal do art. 6-A, do Dec-Lei 911/69, sem a restrição do prazo para o cumprimento de medidas de busca e apreensão de bens essenciais à atividade do devedor, comprometeria o próprio instituto da recuperação, na medida em que não permitiria a criação de um ambiente propício para que as cláusulas do plano fossem efetivamente discutidas.
Parcelamento Fiscal na Recuperação Judicial
Por fim, outra importante alteração promovida pela Lei 13.403/2014 foi a criação do parcelamento especial para os empresários ou as sociedades empresárias que pretendessem a recuperação judicial.
Até a propositura da Lei 13.403/2014, não havia a previsão de um plano de parcelamento dos débitos tributários para as empresas submetidas à recuperação judicial.
Pela Lei de Falência e Recuperações, em seu art. 57, o juiz poderia conceder a recuperação judicial do devedor cujo plano não tivesse sofrido objeção ou se tivesse sido aprovado pela assembleia geral de credores, desde que o devedor tivesse apresentado certidões negativas de débitos tributários. Para tanto, o art. 68 da mesma Lei estabelecia que as Fazendas Públicas e o INSS poderiam deferir, nos termos da legislação específica, parcelamento de seus créditos, em sede de recuperação judicial.
A falta de legislação que dispusesse até então sobre o parcelamento dos débitos tributários durante a recuperação da empresa e a constatação de que a imensa maioria dos empresários ou sociedades empresárias em crise econômica também acumulava passivo fiscal, o que impedia a apresentação de certidões negativas, implicavam a consideração de que a impossibilidade do parcelamento representava a vedação à aplicação do instituto da recuperação judicial às empresas.
Diante desse quadro e para que se pudesse preservar a empresa, os empregos e o próprio desenvolvimento econômico nacional, a jurisprudência orientou-se para dispensar a apresentação das certidões negativas de débitos fiscais como requisito para a concessão da recuperação judicial.
A partir da Lei 13.403/2014, o ordenamento passou a disciplinar o parcelamento especial dos débitos tributários para fins da recuperação judicial. Pela inserção do art. 10-A, na Lei 10.522/2002, fora permitido ao empresário ou sociedade empresária, que pleitear ou tiver deferido o processamento da recuperação judicial, requerer o parcelamento de seus débitos com a Fazenda Nacional em 84 parcelas mensais e consecutivas, calculadas conforme percentual disciplinado pela lei.
O parcelamento poderá envolver a totalidade dos débitos do empresário ou da sociedade empresária, constituídos ou não, inscritos ou não em Dívida Ativa da União, mesmo que discutidos judicialmente ou em fase de execução fiscal já ajuizada, exceto os já incluídos em parcelamentos regidos por outras leis.
Os empresários poderão ter apenas um único parcelamento para fins de recuperação judicial, e esse será rescindido, além de pelas hipóteses previstas no art. 14-B, pela não concessão da recuperação judicial ou pela decretação da falência da pessoa jurídica.
Conclusão
A Lei Complementar 147 e a Lei 13.403 foram promulgadas com o intuito de assegurar a celeridade e maior efetividade na satisfação do crédito de alguns determinados agentes econômicos.
O tratamento favorecido conferido, contudo, repercutiu no desenvolvimento de diversos institutos e na dinâmica dos interesses dos demais grupos de agentes envolvidos.
A interpretação da nova disciplina oferecida nesse ano de 2014 deverá ser feita, portanto, mais uma vez com parcimônia pelos aplicadores do direito para que o tratamento especial conferido não se transforme em discriminação arbitrária em prejuízo dos demais interesses envolvidos e da eficiência dos próprios institutos.
[1] Doutor e Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor de Direito Empresarial, Econômico e Negocial da Escola Paulista da Magistratura (EPM), Professor de Direito Empresarial da Faculdade de Direito de Itu (FADITU). Juiz de Direito do Estado de São Paulo. Autor de obras e artigos jurídicos.