275 - Regularização Fundiária Considerações sobre a Medida Provisória nº 459/2009

 
VENICIO ANTONIO DE PAULA SALLES - Desembargador
 

 

(1) Política Urbana

 

A regularização fundiária se insere no rol dos deveres essenciais do Estado, na medida em que encerra direito fundamental dos cidadãos que vivem e circulam nos grandes centros urbanos.

 

Representa, na prática, a organização ou reorganização das cidades, através de esforço que envolve: (a) edição legislação compatível conferir rumos adequados e seguros ao correto desenvolvimento dos centros urbanos; (b) o aporte de investimentos públicos e privados para urbanização e edificação, reforma e manutenção de toda infra-estrutura de apoio populacional; e (c) a desburocratização de procedimentos, abreviando temporal e materialmente as exigências necessárias para o adequando reconhecimento de direitos patrimoniais. Enfim a regularização envolve providências múltiplas necessárias para a conquista de melhor qualidade de vida, instigada com a disponibilização adequada e compatível às necessidades populacionais, de  equipamentos e serviços públicos.

 

Obviamente que o processo de regularização fundiária deve ter início com a estruturação ou reestruturação das cidades, pensadas por “leis” locais incumbidas, constitucionalmente, de prever e orientar o crescimento dos centros populacionais com base em instrumental jurídico completo e necessariamente estável.

 

A política urbana enfatizada nos artigos 182 e 183 da Carta Suprema, se encontra estruturada nacionalmente com a fixação de diretrizes gerais, que compõem a lei federal cognominada Estatuto das Cidades. Conquanto tenha sido editada sob os aplausos de urbanistas e juristas esta lei de diretrizes nacionais expõe um expressivo rol de programas e intenções e pouca materialidade prática, aceitando instrumentos de duvidosa eficácia[1]  ou de comprovada rejeição pelas classes carentes[2].

 

Contudo, o vetor mais relevante na orientação e reorganização das cidades, sem dúvida, deve vir esmiuçado no plano diretor ou lei municipal, que deve ser montado em atenção às peculiaridades locais, para representar orientação segura à adequada e gradativa expansão urbana, que exige perenidade nos rumos, sem reformas ou alterações pontuais, pois as cidades se resolvem por inteiro, face às múltiplas e variadas interferências de local para local, ou bairro a bairro.

 

Portanto, a legislação municipal carrega a missão de traduzir  o sentido estrutural das cidades, prevendo a forma e os espaços necessários para o crescimento equilibrado e sustentável, buscando compatibilizar as necessidades decorrentes do adensamento populacional, com a existência efetiva ou potencial de equipamentos urbanos e serviços públicos, que devem existir, ou constarem previstos, em quantidade compatível à eficiente utilização da população, sem maiores sacrifícios, sem grandes deslocamentos.

 

De forma genérica, as medidas ligadas à organização das cidades devem ser direcionadas e implementadas para conferir qualidade de vida coletiva, que é um conceito jurídico indeterminado, mas que vem ganhando conteúdo e corpo, ligado ao propósito de assegurar à população, mormente aos moradores das periferias das cidades, amplas facilidades e disponibilidade para utilização dos serviços públicos de infra-estrutura básica e de apoio, que envolvem todos os serviços indispensáveis para o bem viver, como o saneamento público; o fornecimento de água potável; a coleta de esgoto e lixo, assim, como o adequado fornecimento de energia elétrica e telefonia. Evidente, que este preceito normativo deve igualmente prever a disponibilização de vagas nas escolas, creches, hospitais e serviço de segurança pública, tudo em locais acessíveis e ajustados à demanda.  

 

Fundamental, ademais, a previsão de eficiente sistema de vias de circulação, e principalmente a criação ou projeção de transporte público estruturado em função das necessidades de deslocamento da população.

 

Os centros urbanos devem se organizar com a transformação de cada bairro ou zona, em uma célula da cidade, carregando o mesmo DNA, para cumprir suas funções próprias de bem abrigar e apoiar a população.

 

A complexidade e grandiosidade das medidas voltadas à regularização fundiária bem justificaram o cuidado Constitucional, que credenciou essa tarefa na condição de política pública prioritária.

 

Muitas são as medidas necessárias à implementação da regularização fundiária dos centros urbanos, esforço que envolve indistintamente, providências das três órbitas de poder. Ao Legislativo cobra-se postura junto ao Congresso, para a manutenção ou aperfeiçoamento do programa nacional de diretrizes, assim como, a nível municipal, exige-se que as Câmaras tenham a redobrada sensibilidade para reverenciar a melhor forma de organização das cidades no corpo de suas leis municipais ou plano diretor, observando as necessidades e as peculiaridades locais, inibindo quaisquer investidas tendentes a alteração ou mudanças de rumos. Cobra-se igualmente ao Executivo a aplicação de maciços recursos financeiro indispensáveis à implementação prática do plano legal, mediante a construção de vias de circulação, melhoria do sistema de transportes público, edificação de escolas, creches e hospitais, enfim, de toda a infra-estrutura básica. Por fim, espera-se do Judiciário que cumpra seus desígnios promovendo a justiça social, proclamando a regularização de parcelamentos e declarando e reconhecendo o direito à propriedade individual.

 

A Constituição não pede, mas ordena, sob a foram de política pública imperativa, que os Poderes participem ativamente da edificação de cidades melhores, granjeando à população, conquistas coletivas.

 

Dentre os múltiplos aspectos da “regularização fundiária”, um dos mais relevantes, por sua importância intrínseca e por materializar anseio íntimo e legítimo de toda população, envolve o aparato judicial e extrajudicial, ligado à titulação dominial.

 

A conquista do título de propriedade individual ao ocupante regular ou informal, representa aspiração maior que alimenta toda a população e todas as famílias, que sonham com um espaço de terra, garantido pela certeza do “papel passado” e do registro conquistado.

 

É de se frisar que a titulação dominial se revela eficiente, não apenas por alimentar este foco de esperanças da população, mas também por capturar aliados, que, ao passarem de meros posseiros informais à condição de proprietários, se engajam em movimentos comunitários, exercendo de forma mais expressiva o ideal solidário.

 

Entretanto a tarefa ligada à titulação dominial enfrenta sérias dificuldades e desafios, que normalmente se agravam porquanto envolvem população carente, de baixa renda e pouca instrução.

 

A inflexibilidade no manejo do instrumental jurídico disponibilizado para a regularização  fundiária, tem gerado muitas frustrações, que poderiam ser contornadas com facilidade, caso fosse compreendido o melhor sentido e alcance de princípios de relevo como o da função social da propriedade, que foi lançado na Constituição Federal, para cumprir desiderato de “regra jurídica”, na forma de conteúdo do plano diretor, mas também foi concebido como “princípio jurídico” de primeira grandeza, que atinge e impregna todas as regras pertinentes, amarrando interpretações, para reverenciar a supremacia do interesse coletivo quando contraposto ao individual.

 

O arsenal jurídico existente, se revela apto ao desafio das cidades, mas deve ser pensado e repensado com base na principiologia constitucional que aponta as prioridades a serem observadas, para destravar o sistema registral.

 

Normalmente as Corregedorias judiciais manifestam extremo interesse na intervenção positiva do Judiciário nas questões atinentes à REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA, mas não conseguem se desprender de retrógradas posturas, que não mais se harmonizam com o novo instrumental exibido pela Carta Maior e Estatuto da Cidade.

                     

 

(2) Gargalos da regularização

 

É fato que as cidades, principalmente os grandes centros urbanos, foram formados e desenhados por movimentos de ocupação desorganizada, definidos por ocupações sob a forma de parcelamento do solo irregulares ou clandestinos, efetivados sob a forma de loteamentos, desmembramentos ou desdobros, transmudando grandes glebas e novos e carentes bairros, que nascem e se desenvolvem carregando deficiências que inviabilizam o bem viver.

 

Grande parte dos parcelamentos irregulares são estudados e detalhados em plantas, recebendo urbanização básica do Poder Público Municipal, que neste mister cumpre os desígnios do art. 40, da Lei 6.766/79. Contudo um número expressivo de fracionamentos, a despeito do esforço Municipal, não obtém o necessário ingresso registral, deixando à mingua uma parcela expressiva da população, entre outros, pessoas que compraram e pagaram pelo pedaço de terra que ocupam.

 

Frise-se que a regularização dos parcelamentos representa o melhor e mais correto ponto de partida para a regularização fundiária no que afeta à titulação dominial, pois quando reconhecida registrariamente a situação REAL de cada lote ou fração, em substitução das grandes e imprecisas glebas, viabiliza-se as etapas subseqüentes da regularização, que permitem aos moradores detentores de título hábeis, o registro imobiliário com a conquista do direito de propriedade, bem como, àqueles que dispõem de títulos imperfeitos, prerrogativas para revalidação de tais títulos, tudo no caminho da obtenção do registro que consagra o justo direito à propriedade provada. Por fim, aos que possuem apenas a “posse”, a regularização dos parcelamentos permite o aforamento da usucapião com melhores possibilidades, permitindo uma rápida tramitação da ação judicial, com maior economia, pela simplicidade da perícia (mera constatação da posse), e pela facilidade no cumprimento do ciclo citatório.

 

Ademais, permite a utilização do chamado usucapião plúrimo, que pode abarcar todos ou grande parte dos ocupantes de uma mesma quadra fiscal, conquistando eficiências, celeridade e economicidade, ao mesmo tempo.         

 

 

(2) Regularização dos Parcelamentos Irregulares

 

Estima-se que dois terço (2/3) das propriedades na Capital Paulista, acusem problemas registrais, sendo que grande parte deste contingente é formado por ocupantes com títulos imperfeitos que não lograram acesso tabular. São os quase-proprietários, obrigados a viver em um submundo sem regras oficiais e sem controle do Estado.

 

Como destacado, grande parte do problema registral, que emperra a regularização fundiária, tem origem nos parcelamentos irregulares do solo urbano, que na Capital paulista chegam a ultrapassar a marca de dois mil. São empreendimentos irregulares ou clandestinos, que ostentam condições propícias para a regularização, pois, em princípio, não abarcam áreas de risco e de mananciais.

        

Assim, o primeiro e difícil passo a ser dado para o destravamento da regularização ligada à titulação dominial, encontra-se dependente de uma nova leitura jurídica das questões que afetam os parcelamentos irregulares ou clandestinos, pautado nos princípios e comandos constitucional que exigem e instigam a regularização urbana.

 

O poder público municipal, ao menos em São Paulo, não se mostra inerte, pois ao longo dos anos a Prefeitura vem investindo em urbanização de loteamentos irregulares, demarcando áreas e as reproduzindo em plantas denominadas “AU”. Não obstante o esforço e os gastos despendidos, a regularização formal e completa não está sendo obtida, pois as plantas e os memoriais elaborados pelos técnicos municipais, muitas vezes não tem obtido a qualificação registral positiva junto às serventias imobiliárias.

 

A negativa de registro invariavelmente decorre de impedimentos determinados por padrões e princípios registrais que são “normalmente” tratados de forma inflexível, mormente no que afeta à aplicação prática dos princípios da continuidade e especialidade, que são comandos estruturais de toda ordem registral, que conferem relevo à sequência lógica e cronológica das inscrições. A continuidade exige que o título que atesta o trespasse imobiliário, obtenha qualificação registral positiva e acesso ao fólio real, quando outorgado pelo legítimo proprietário, reconhecido pelo fólio real. A apresentação singela do princípio revela sua lógica, mas não expõe as dificuldades práticas na sua aplicação.

 

A especialidade objetiva exige que o título contemple descrição imobiliária impecável, absolutamente idêntica àquele prevista na última transcrição ou na matrícula, não podendo se desviar minimamente de qualquer referência numérica.

 

Não há como negar a estrutural importância destes princípios, pois indispensáveis à conquista e preservação de segurança jurídica garantidora da higidez dos dados registrais. A continuidade e especialidade são ícones de proteção à propriedade privada, esteio maior de nossa estrutura constitucional.

 

Entretanto, em certos casos, mormente no campo da regularização fundiária, o trabalho registral deve ser sopesado e precedido de consciente análise, para não frustrar todo o empenho e esforço demonstrados pelo legislador constituinte e complementar, que enfatizam a grande importância e prevalência dos interesses coletivos.

 

As dificuldades da regularização dos parcelamentos, não decorrem apenas de padrões interpretativos, pois a circunstância que mais estorva tal intento, é determinada pela precariedade descritiva dos dados tabulares, que em grande parte não se mostram confiáveis.

 

Mesmo na capital paulista, as descrições constantes das transcrições e matrículas presentes nas Serventias Imobiliárias padecem de deficiências descritiva, decorrentes de erros, omissões  ou imprecisões.

 

O mundo tabular não conversa adequadamente com o mundo “real”, e alguns dogmas que alimentam certas crenças de registradores e peritos, são absolutamente falsas, principalmente a idéia de que a informação tabular mais antiga ou longínqua possa ser a mais precisa (não resta dúvida da importância do passado no que afeta a especialidade subjetiva, mas a informação longeva pode não atender as necessidades da especialidade objetiva).

 

Justamente para evitar ou banir padrões e descrições erradas ou incompletas, é que a Lei de Registros Públicos em seu art. 212, exige que a informação tabular deva exprimir a verdade, que é aquela revelada pela sede física do imóvel que o prende ao solo por suas marcas e marcos.

 

Pois bem, comuns são os casos em que a descrição tabular se descuida de indicações relevantes errando ou omitindo pontos fundamentais. Os erros mais freqüentes dizem respeito à falta de indicação da área total do imóvel; ausência total ou parcial da perimetria; silêncio quanto aos rumos, ângulos e deflexões; omissão quanto a pontos de amarração.

 

O chão registral é instável e de certa forma perigoso, não ostentando eficiência para atender satisfatoriamente a todas as circunstâncias e cumprir os rigores principiológicos. Portanto, as áreas que a Prefeitura mede, demarca e promove obras de infra-estrutura, em regra, compõe parte de antiqüíssimas glebas de terra, precariamente descritas no Registro Imobiliário. O desenho registral dessas glebas deixa de informar todas as linhas perimetrais, aludindo a deflexões sem indicar os respectivos ângulos, o que muito dificulta o fechamento do polígono que o imóvel encerra. A precariedade é aumentada em razão da ausência de pontos de amarração, que seriam necessários para a fixação da área ao solo (o que faz com que o imóvel, a nível teórico, flutue). Por fim, grande parte destas áreas experimentaram desfalques anteriores, sem qualquer delimitação ou indicação, elevando o campo de inseguranças.

 

São, destarte, descrições incertas quando a extensão e oscilantes quanto à fixação do solo.

 

As dificuldades na identificação das bases físicas destas antigas glebas impedem que o Registrador reconheça o exato local onde se insere o parcelamento medido e demarcado pela planta “AU” da Municipalidade, de forma que, não havendo condições de segurança para proceder ao desfalque da área regularizanda, esta não conquista o ingresso registral, impedindo a abertura de nova matrícula.

 

O vício é de origem, pois está na base registral, impregnando o desenho tabular, mas erro que inibe a regularização é de análise do contexto e da ausência de uma interpretação sistemática, sensível às necessidades e ao imperioso prestigio e privilégio dos interesses coletivos.

 

 

(4) Superação do entrave tabular

 

A superação deste impasse burocrático/registral, deve ter início com a inversão das prioridades legais, mediante o reconhecimento da prevalência do interesse coletivo dos ocupantes das áreas regularinzadas em relação aos interesses e direitos individuais dos antigos proprietários das glebas.

 

Observe-se, como já anotado, que a função social da propriedade não representa apenas um programa a ser cumprido pelo governo local em atenção à diretrizes nacionais. Representa muito mais do que “regras”, pois insculpida sob a forma de “princípio constitucional”, que confere prioridade ao interesse na organização das cidades, exigindo em certos casos a superação da tutela individual quando antagônica a interesses coletivos. No entanto o legislador ordinário foi muito cauteloso, dando ênfase à regularização fundiária, mas disponibilizando pouco instrumental prático para sua implementação. Neste sentido foi encartado pela Lei 10931/2004, como § 11º, inciso I, do art. 213 da Lei de Registros Públicos, comando que afasta a necessidade de retificação da área (correção das imperfeições tabulares) nas zonas especiais de interesse social – ZEIS, consolidadas há mais de vinte anos. O excessivo prazo (20 anos), muito superior àquele previsto para o usucapião constitucional, deixa a previsão legal com reduzida aplicabilidade, o que é lamentável, mas, a despeito da timidez do comando legal, a prioridade constitucional mantém o relevo no interesse coletivo.

 

Seria de grande utilidade, se as informações registrais fossem corrigidas por informações colhidas de PLANTAS aéreas, que dessem aos registros a exata situação fática dos imóveis e ocupações. No entanto, as fotos aéreas quando reproduzidas em plantas, somente podem trazer orientação para os pedidos de retificação ou de apuração de remanescentes, de forma que esse upgrade registral somente poderá ser conquistado de maneira gradativa, caso a caso, processo a processo, sendo que enquanto tal não ocorre, a questão da deficiência da descrição tabular deve ser superada por outros mecanismos.

 

Destarte, as áreas que a Prefeitura mede, delimita e demarca por suas plantas “AU”, devem conquistar ingresso registral, mesmo quando incertas as glebas que devem ser desfalcadas.

 

A solução proposta é a possível e não a ideal.

 

Apresentada a planta “AU”, ao registrador deve ser conferido 30 dias para que este confirme ou negue a localização da área, quando for indicada feita pela Prefeitura ou, no mesmo prazo, indicar a inscrição a ser desfalcada, por verificação direta.

 

Caso exista a dúvida sobre qual gleba deve ser atingida, o registrador deverá desfalcar todas os possíveis ou prováveis imóveis.

 

A nova matrícula da área regularizanda nascerá com a indicação de todos os pretensos proprietários das eventuais glebas afetadas.

 

Concomitantemente o registrador deverá AVERBAR nas respectivas transcrições desfalcadas as circunstâncias do desfalque, informando que o proprietário terá 30 dias para impugnar a averbação. Ao proprietário é franqueado direito de comprovar que o desfalque não pode incidir sobre seu imóvel. Observe-se que este procedimento representa, na prática, a inversão das prioridades, pois é o proprietário da área defeituosa que deverá correr ao serviço registral para corrigir suas medida e provar, se o caso, que a área regularizada não se encontra nos limites se seu imóvel.

 

O procedimento previsto pode tramitar pela Serventia Imobiliária, e somente remetido para a Vara da Corregedoria Permanente, em casos de conflito e de relevante indagação. 

É verdade que a abertura de uma matrícula em nome de vários possíveis proprietários pode representar um estorvo para as etapas seguintes da regularização fundiária, ou seja, no momento em que o processo ganha sentido singular, pois dificultará o registro dos que dispõe de título e prejudicará o melhor andamento das ações de usucapião, que terão ciclo citatório muito mais demorado e incerto.

 

Na prática, o impulso deve ser viabilizado pelos superiores órgãos Administrativos do Judiciário, que poderão veicular recomendação administrativa às corregedorias permanentes, para que estas dêem especial atenção a todos os pedidos que envolvam regularização de parcelamento do solo, e que viabilizem, sem mais delongas, a abertura de matrícula nova para as áreas regularizadas pelas Prefeituras.

        

Também a regularização de parcelamentos quando implementadas pelo empreendedor ou adquirentes, poderá se beneficiar do padrão registrário ora apresentado, pois se submetem a mesma ordem de interesses coletivos.

 

 

(5)  Dificuldades Ambientais

        

Neste tópico é de se acrescentar que as questões ambientais são da responsabilidade do órgão Municipal, quando este promove o levantamento e urbanização da área. O credenciamento ambiental que pode exigir a recuperação de zonas degradadas e promover a recuperação das áreas devastadas, é tarefa que se ajusta ao âmbito de competência do Órgão executor da urbanização.

 

Nestes casos a fiscalização ambiental não se desloca para o Estado, pois tal incumbência foi entregue constitucionalmente às  três esferas de Poder, de forma que a realizada pelo Município torna superada a intervenção dos Estados.

 

Não se está afirmando que os Estados não possam realizar um controle supletivo de sentido ambiental, mais apenas que não devem necessariamente se imiscuir em tal tarefa, de forma que a regularização registral não dependa obrigatoriamente das duas esferas de Poder, em uma duplicidade sem sentido, com a participação dos Municípios e dos Estados.

        

Observe-se que art. 13 da Lei nº 6.766/79 tem sido aplicado de forma equivocada, pois não exige a intervenção dos Estados na regularização municipal de áreas situadas nos limites municipais.

        

Não há dúvida que a autonomia Municipal outorga essa competência ao Poder local, que nesse mister não necessita do aval do Estado.

        

Evidente que questões ambientais não podem ser desprezadas ou desconsideradas, mas estas podem atuar como foco de entrave e burocratização, mormente na regularização de empreendimentos consolidados há décadas.

 

(6)  Bens Públicos

 

Os parcelamentos irregulares exigem registro que indique os espaços públicos representados pelas vias, praças e área institucionais. Essas áreas são indicadas nos projetos “oficializados” de  loteamentos não concluídos, cujos projetos e plantas são mantidos precariamente pelas Serventias Imobiliária.

 

A questão da imprecisão e imperfeição da descrição das glebas sempre existiu, de forma que o empreendedor, quando se interessava em lotear seu espaço, se deparava com a necessidade de promover, previamente, à retificação da área para ajustá-la às suas reais dimensões. Apenas subseqüentemente a tal providência é que poderia promover o loteamento da área real.

 

As dificuldades, os custos e a extrema demora na tramitação dos procedimentos de retificação de área, mesmo perante o registro extrajudicial, fizeram com em com que o empreendedor omitisse esta etapa de RETIFICAÇÃO, utilizando as medidas erradas existentes no fólio registral, lançando os lotes por medidas aproximadas e sacrificando as áreas públicas.

 

As vias de circulação invariavelmente não ganham as dimensões indicadas nos projetos, criando sério impasse entre o registro (projeto) e a realidade das áreas públicas.

A superação deste entrave somente pode ser obtida quando o Poder Municipal passar a aceitar que a afetação deve corresponder à passagem FÍSICA da área para o USO PÚBLICO, correspondendo ao que  foi riscado e cortado no solo e não ao que consta unicamente do irreal projeto.

 

Com este posicionamento, empreendimentos poderão ser regularizados pela direta averbação das vias públicas e praças, sem a necessidade da planta completa.

 

A observação tem pertinência, pois na prática a passagem do bem privado para o domínio público pelo concurso voluntário, somente pode ser realizada em atenção à realidade física, que corresponde à implantação efetiva ou aos rasgos que compõem a abertura das vias.

 

A dificuldade apresentada tem impedido a regularização de muitas áreas, até porque, existe um certo temor das Procuradorias Municipais na adoção de posição mais “liberal” que podem não ser entendas como corretas pelo Ministério Público, que portanto, deve ser chamado a opinar sobre esta questão da afetação pública.

 

 

(7) Registro e revalidação de títulos

 

Não existe expressamente uma ação, judicial ou administrativa, denominada de revalidação de títulos, mas os princípios gerais do direitos exigem que a “qualificação registral” nos casos de regularização fundiária, recebam um tratamento diferenciado, para viabilizar, o quanto possível, o ingresso de títulos decorrentes da compra de lotes de loteamentos regularizados pelas Prefeituras ou pelos Empreendedores. São títulos que ostentam imprecisões superáveis, ligadas à dimensão e principalmente à titularidade ativa.

 

Assim, após a conclusão do parcelamento, e obtido o seu reconhecimento registral, inicia-se a fase ligada à regularização  individual de cada “lote”, mediante o registro dos títulos existentes, o que inclui esta possibilidade de superação de eventuais imperfeições que habitam os documentos aquisitivos. 

 

O fato da nova matrícula do loteamento ou desmembramento acusar o nome de vários proprietários, representa um fator que dificulta o ingresso dos títulos aquisitivos, o que torna necessário, a previsão deste procedimento administrativo de tramitação célere junto às Serventias ou frente à Vara incumbida da corregedoria permanente, para exame dos títulos aquisitivos e a verificação das possibilidades de seu ingresso registral.

 

Todos os proprietários devem ser notificados no endereço constante no Registro de Imóveis ou no endereço fornecido pela Municipalidade, quando existente, ou por EDITAL. Deve ser conferido prazo de 30 dias para apresentação de eventual defesa para, ao final, ser aceito ou descredenciando o título particular. Havendo silencio por parte dos interessados e sendo constatada a aparência de regularidade no título sub examine, este poderá conquistar ingresso, com a superação das exigências determinadas pela especialidade subjetiva.

 

A questão da especialidade objetiva, ou seja, a adequada identificação do lote ao título, pode ser obtida com simples exame da ocupação e a indicação pericial neste sentido.

 

Sem o procedimento de “revalidação de título” ( - que pode ser entendido como uma pretensão meramente DECLARATÓRIA - ), não há maiores perspectivas para o registro dos adquirentes dos lotes.

 

 

(8) Da Usucapião Judicial

 

O processo de usucapião de “lotes” regularizados pela Prefeitura, poderá ter uma tramitação mais ágil em face da perfeita identificação da posse, o que dispensa a realização de perícia minuciosa, bastando apenas uma constatação do local da posse na planta “AU”. De outro lado, terá um ciclo citatório mais longo, pois as novas matrículas poderão acusar o nome de vários proprietários.

 

A solução, nestes casos é a adoção da citação por EDITAL, em respeito às regras da Lei 10.931/2004, que exige a citação pessoal no endereço do imóvel e no endereço constante no Serviço Imobiliário, esgotados estes meios, a citação deve ser realizada por EDITAL, considerando todos os titulares.

 

Entre as formas possíveis de usucapião, a que melhor atende aos anseios da população e à necessidade de celeridade na tramitação é viabilizada pela promoção de usucapião plúrimo, que agrupa vários possuidores vizinhos ou confrontantes em um mesmo pedido.

 

Preferivelmente devem participar da mesma ação, todos possuidores que integrem uma mesma quadra fiscal, pois neste caso a citação, dos confrontantes, se esgota com o chamamento da Municipalidade. A perícia se revela muito facilitada, de forma que, em não havendo maiores delongas com a citação dos proprietários, o processo pode se findar em curto espaço de tempo.   

 

A regularização exige determinação para a superação dos entraves burocráticos, sendo que a ênfase inicial deve ser dada aos parcelamentos irregulares.

 

 

(9) Da Usucapião Administrativa – MP 459/2009

 

A nova medida provisória que deverá enfrentar resistências junto ao Congresso na sua conversão em lei ordinária, representa um auspicioso passo no sentido da desburocratização do setor e o destravamento dos processos e procedimentos necessários para a regularização das cidades.

 

Estranha-se que a providência tenha vindo no corpo de Medida Provisória, pois esta questão quase que secular, conquanto necessária e impregnada de certa urgência, não atende ou cumpre os pressupostos constitucionais que autorizam produção legislativa direta pelo Executivo. O processo democrático exige respeito e a tripartição não poderia ser tão vilipendiada pelo açodamento do Chefe de Estado.

 

Evidente que a ausência de uma discussão mais ampla e com interlocutores à altura para interferir, modificar ou acrescentar sugestões, podem comprometer a legitimidade do projeto, e conquista a superação e pequenas máculas e desvios que poderiam ser evitados. No entanto, considerando-se a possibilidade de aprovação da nova medida provisória, necessário ao menos que o processo interpretativo, sério e consistente, reduza as imperfeições e amenize as críticas e os descaminhos.

 

A MP 459/2009 tem muitos méritos que devem ser destacados, na medida em que concebeu uma forma de Usucapião Administrativo, que tem início, sensatamente, na regularização dos parcelamentos do solo irregulares ou clandestinos, mediante o instrumento denominado corretamente de “demarcação”.

 

A Municipalidade, assim como também os Estados e a União, poderão demarcar áreas de interesse social ou interesse específico, individualizando as ocupações sob a forma de lotes.

 

A norma Federal identifica como área de interesse social aquela que atende a dois requisitos básicos:

 

(1) ocupações que cumpram as exigências do usucapião constitucional previsto no art. 183 da lei maior, que são: (1.a) ocupação pacifica  por mais de cinco anos; (1.b) áreas de até 250 m²; (1.c)  utilizadas como única moradia; (1.d) beneficiado famílias que não tenham propriedade imobiliária urbana ou rural;

 

(2) que a área a ser demarcada esteja situada em zona de interesse sócia - ZEIS, assim prevista lei municipal ou no plano diretor.

 

Conquanto numerosos, os pressupostos para a deflagração da demarcação urbanística, estes se fazem presentes em todo e qualquer parcelamento localizando nas zonas periféricas das grandes cidades, o que torna o endereçamento legal factível de alavancar grandes mudanças na regularização imobiliária.

 

Áreas de interesse especifico, nos termos da medida provisória, atingem outras glebas ou imóveis não incluídos nas  ZEIS, mas que poderão ser indicadas ou definidas em lei local, ou até mesmo em regulamento e aventa-se a possibilidade de tal indicação habitar diretamente o corpo do projeto a que alude o art. 55, confeccionado na forma do art. 66 da medida provisória.

 

Estas áreas de “interesse específico” também devem envolver, necessariamente, área de interesse social, pois a regularização fundiária tem esse propósito, de forma que no rol destas áreas poderão participar todo e qualquer parcelamento existente mesmo em zonas mais desenvolvidas urbanisticamente, inclusive incluindo áreas de risco e de preservação permanente, respeitando as restrições à ocupação.

 

Trata-se de instrumento necessário para que o Município corrija as eventuais falhas da previsão geral constante na lei ou do plano direito que, por vezes, não desce a minúcias, conferindo o necessário sentido isonômico à regularização

 

A Medida Provisória trata em seções distintas as áreas interesse social e interesse específico, o que expõe certa fragilidade da técnica legislativa utilizada e na consideração dos temas, pois é evidente que ambas as áreas são destacadas pela similaridade dos apelos e necessidades, de forma que não podem receber tratamento diferenciado. De rigor, portanto, a submissão de ambas, a um procedimento uniforme de demarcação urbanística e de legitimação de posse.

 

Portanto, compõe pressuposto interpretativo necessário, que a MP 459/2009 conferiu tratamento uniforme para as áreas de interesse social e interesse específico, exigindo para situações excepcionais que envolvam “risco” e “preservação ambiental”, medidas complementares, especificamente nas hipóteses em que a ocupação não tenha determinado o traçado viário, bem como, não disponha de infra-estrutura básica, instalada ou projetada.

 

Este complemento que é exigindo apenas para as situações específicas, pode vir previsto, projetado e implantado com a colaboração da comunidade, que poderá arcar com os custos totais ou parciais das obras, na forma do art. 67, parágrafo único. Assim, parece viável que a própria comunidade, uma vez organizada, possa postular junto à Prefeitura e às Subprefeituras, a regularização fundiária de parcelamento utilizado por população de baixa renda, atendido os requisitos do art. 183 da Constituição Federal[3].

 

O auto de demarcação de áreas de interesse social ou específico deverá ser registrado na serventia imobiliária. O Poder Público deve apresentar o projeto, consistente de plantas e memoriais, bem com a indicação de que se trata de área pertencente às ZEIS, ou que tenha situação de fato similar às ZEIS. Deverá apresentar comprovação testemunhal de que a ocupação geral tenha mais de cinco anos, abrigando população de baixa renda, que desenvolve no local sua única moradia, juntamente com o cadastro dos ocupantes.

 

Havendo ocupação mista estas deverão ser mantidas no projeto, mas excluídas dos efeitos da demarcação urbanistica, salvo quando os pontos comerciais são utilizados também como moradia.

 

Observe-se que quando a área engloba ocupações com área superior a 250 metros ou realizadas por famílias que não atendam ao requisito do art. 183 da Constituição Federal, tais lotes ou ocupações deverão ser mentidos como referência no projeto, mas excluídos dos efeitos da demarcação urbanística, o que permitirá a seus ocupantes, com muita mais facilidade a utilização de outras vias da usucapião, em sendo o caso.

 

O propósito da Medida Provisória é viabilizar a regularização, de forma que pequenos entraves e impedimentos, devem ser pensados no sentido da superação e não do travamento.

 

Apresentado o PROJETO (art. 55) e demais documentos, o oficial imobiliário deverá, em prazo razoável, indicar a matrícula ou a transcrição que deve ser desfalcada. Trata-se de obrigação do registrador e não mais do Poder Público, este deverá diligenciar internamento, para indicar as glebas a serem desfalcadas, de forma a viabilizar a abertura da NOVA MARTRICULA da área demarcada (o §4º, do art. 61, afirma que a demarcação urbanística deve ser registrada na matrícula da área a ser regularizada, determinação que deve ser entendida como a averbação do registro do desfalque, pois a área acertada e demarcada urbanisticamente, na forma de um loteamento ou desmembramento, para conquistar segurança jurídica, facilidade e viabilidade das legitimações, deve compor nova matrícula).

 

Havendo dúvida insuperável sobre qual(is) gleba(s) ou área(s) a ser(em) atingida(s), o Oficial deverá indicar todas as eventuais glebas que deverão experimentar a averbação do desfalque, notificando pessoalmente todos os prováveis proprietários, no endereço constante do próprio Registro de Imóveis e naquele fornecido pela Municipalidade, conferindo 15 dias para impugnação.

 

O procedimento instaurado com o pedido de demarcação, após o encerramento do ciclo de notificações, que se finda, quando não localizado o titular do domínio, pela notificação por edital, determinará o descerramento de nova matrícula, que conterá a descrição total da área, sua periferia, indicada por ângulos ou rumos, área total, pontos de amarração, confrontantes de fato e se possível de direito, e a indicação dos proprietários notificados. Indicará os lotes ou as ocupações, sem a necessidade da individualizada do nome dos ocupantes, que estarão identificados no cadastro arquivado. Particularizará as áreas públicas, destinadas às vias, áreas de lazer, praças, e áreas institucionais, quando houver.   

 

O georeferenciamento somente deve ser utilizado para imóveis de grandes proporções, que não conquistem pontos adequados para a amarração da área no solo, afinal o projeto tem uma racionalidade que também se orienta pela economicidade.

 

Somente após a conclusão do registro imobiliário da demarcação urbanística é que o Poder Público poderá conceder os títulos de legitimação de posse, que por coerência deverão vir instruídos com o nome e depoimentos das testemunhas que confirmem a posse longeva ou dos documentos que atestam no mesmo sentido, como contas de água e luz, ou contratos imperfeitos de aquisição da área.    

 

Os títulos serão averbados e convertidos em propriedade após o transcurso de cinco anos sem impugnação ou havendo  oposição,  quando esta for afastada por insubsistente em decisão proferida pelo juízo corregedor permanente das serventias imobiliárias.

 

 

(10) Observações finais

 

A regularização fundiária enfrente sérios desafios, que deverão ser rompidos, pelo melhor manejo dos instrumentos jurídicos disponibilizados.

 

A fórmula exige que o primeiro passo seja a REGULARIZAÇÃO dos parcelamentos irregulares ou clandestinos, pela via tradicional, ou pelo mecanismo eficiente da Medida Provisória 459/2009.

 

O registro imobiliário das áreas regularizadas pelas Prefeituras (plantas “AU”) ou pelos projetos de demarcação urbanísticos devem receber a prioridade determinada pela “função social da propriedade”, para que não sejam obstados por regras rígidas de sentido registrário, mormente, pela aplicação inflexível dos princípios da especialidade e continuidade.

 

A imperfeição constante da base tabular deve ser superada pela preferência do interesse coletivo que impulsiona o pedido de regularização das plantas e dos projetos de demarcação.

 

O registro dos parcelamentos irregulares ou clandestinos consolidados, abre espaço para a segunda etapa que se materializa com o ingresso das ações de USUCAPIÃO, cuja forma para eficaz é o usucapião plúrimo por quadra fiscal, pela revalidação de títulos e pela legitimação de posse, que dependem fundamentalmente do registro do parcelamento ou da demarcação.



[1] Como por exemplo a transferência de potencial construtitivo, que representa um foco de difícil administração Municipal, pois o Poder local recebe os recurso da outorga onerosa, mas não promove as obras e as melhorias necessárias para estancar o impacto decorrente do adensamento populacional.

 

[2] a usucapião coletiva, que pensada por intelectuais, jamais representou anseio das classes mais desprotegidas, que aspiram à conquista da propriedade individual, que ampare sua família.

 

[3]  existem experiências bem sucedidas em parcerias desta natureza no Paraná, que conta inclusive com empresas especializadas que promovem as obras de  urbanização.



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