280 - Respeito à proporcionalidade: a necessária reforma política a ser realizada

 
ANDRÉ AUGUSTO SALVADOR BEZERRA - Juiz de Direito
 

 

A crise por que passa o poder Legislativo brasileiro há muitos anos trouxe à tona a discussão acerca da necessidade de realização de uma ampla reforma política no país.

 

Necessário advertir que a crise do Legislativo não é uma particularidade brasileira. Trata-se de um poder que, embora advindo das revoluções burguesas européias como predominante sobre os demais[1], passou por um longo processo de descrédito em países democráticos após a consagração do Welafare State e a conseqüente exigência de realização de tarefas positivas por parte do Estado (como implementação de direitos como saúde, educação e previdência social, hoje chamados de direitos fundamentais de segunda geração), incompatíveis com os extensos e morosos debates que normalmente se exige na elaboração de leis.

 

No Brasil, porém, a crise em questão apresenta-se de maior gravidade.  Tal fato não se dá em razão da ausência de tradição democrática do país, mormente quando se considera que outras nações também passaram por recentes traumas ditatoriais (como Portugal e Espanha), mas que, retomada a normalidade democrática, vieram a ostentar invejável estabilidade política - institucional. Também não se dá apenas em razão de freqüentes denúncias de prática de irregularidades envolvendo parlamentares, ainda que por vezes haja certo exagero da imprensa, vez que agentes de outros órgãos de soberania também já se submeteram a acusações semelhantes a sofridas por deputados e senadores. 

 

Na realidade, há dois fatores que dão caráter peculiar à crise parlamentar brasileira e que revelam que esta situação não decorre apenas da necessidade de realização de prestações positivas inerentes a um Estado social, na forma consagrada pela Constituição de 1.988.  O primeiro fator decorre dos amplos poderes dados ao chefe do Executivo de editar medidas provisórias, tornando-o o principal legislador do país e concentrando excessivas atribuições em suas mãos, a ponto de Gomes Canotilho chamar o presidencialismo brasileiro de “cesarismo representativo” ou “centralismo presidencialista”[2].  O outro fator origina-se de um inegável distanciamento dos parlamentares com os cidadãos, o que é comprovado mediante a análise de qualquer pesquisa de opinião pública a qual, certamente, revelará que grande parcela dos eleitores brasileiros não sabe em quem votou nas últimas eleições.

Diante desses dois fatores, a crise no Parlamento torna-se um fato inexorável.

 

As conseqüências dessa situação são nefastas, pois geram na população sentimento de descrença e de não legitimidade de um poder de suma importância para a consolidação dos direitos fundamentais. O perigo à democracia, por seu lado, é evidente, pois, em vez de ser visto como órgão de soberania essencial para a realização das tarefas estatais e para evitar a concentração de funções nas mãos se um único governante (no caso, o chefe do Executivo), o Legislativo pode passar a ser enxergado como estorvo que tem de ser eliminado, o que certamente deixará as instituições brasileiras a um passo daquelas vigentes em regimes ditatoriais.

 

Em tal quadro, é compreensível que, realmente, sempre venha à tona a discussão acerca da necessidade de uma ampla reforma política que possa dar legitimidade ao Parlamento.  Advém, então, diversas propostas oriundas da sociedade civil e dos próprios parlamentares que, em tese, aperfeiçoariam o processo de escolha dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado, tais como a instituição de voto distrital, da fidelidade partidária e do financiamento público das campanhas eleitorais, dentre outras.

 

Ainda que muitas das idéias, como as acima exemplificadas, mereçam respeito, verifica-se, contudo, que nenhuma delas toca no que entendemos como o cerne da crise do poder Legislativo: a desproporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados.     

 

Com efeito, o parágrafo 1º do artigo 45 da Constituição Federal dispõe o número mínimo de oito e o número máximo de setenta Deputados por Estado da Federação e pelo Distrito Federal, em proporção à população de cada uma destas unidades.  Tal critério revela-se absurdamente injusto aos Estados mais populosos, pois a referida expressa fixação de número mínimo e máximo de parlamentares jamais representará a realidade da diferença de população entre as diversas localidades do país, conforme anota José Afonso da Silva:

 

“Essa regra, que consta do art. 45, parágrafo 1º, é fonte de graves distorções do sistema de representação proporcional nele mesmo previsto para a eleição de deputados federais, porque, com a fixação de um mínimo de 8 deputados e o máximo de 70, não se encontrará meio de fazer uma proporção que atenda ao princípio do voto com valor igual para todos, consubstanciado no art. 14, que é aplicação particular do princípio democrático da igualdade de direitos perante a lei.  É fácil ver um Estado com 400 mil habitantes terá 8 representantes, enquanto que um de 30 milhões terá apenas 70, o que significa um deputado para cada 50 mil habitantes (1:50.000) para o primeiro, e 1 para 428.571 para o segundo (1:428.571).”[3]

 

Nem se alegue que tal desproporção garante a harmonia entre os Estados da Federação, evitando a prevalência dos interesses daqueles de maior população sobre as menores unidades.  É que já existe o Senado justamente para esta finalidade, o que seria suficiente para a manutenção do equilíbrio inerente ao pacto federativo.

 

Ora, se a Casa parlamentar que representa os cidadãos brasileiros não é formada proporcionalmente por membros que efetivamente os representam, como pode receber crédito da população? Como pode o cidadão de uma unidade da Federação mais populosa se sentir representado por um Congresso em grande parte formado por representantes de Estados menores?  Em que pese o trabalho de muitos parlamentares que diuturnamente procuram defender o interesse público, fica difícil à Câmara dos Deputados receber a devida aprovação (e legitimidade) dos cidadãos, o que, indubitavelmente, fortalece a figura do Presidente da República, este, sim, receptor direto dos votos dos eleitores e realmente legitimado para a comandar a vida política do país.

 

O problema é que a História jurídica brasileira é a História da concentração de poderes nas mãos do Executivo.  Desde a instituição do poder Moderador na Constituição imperial, passando pela figura do “pai dos pobres” do Estado Novo e dos presidentes populistas eleitos posteriormente e alcançando a figura do ditador militar e, por fim, do editor de medidas provisórias, o chefe do Executivo sempre teve primazia sobre o Legislativo, gerando o permanente – e conhecido - paternalismo na vida política pátria.

 

Sendo assim, reparar a desproporcionalidade na representação da Câmara dos Deputados significa muito mais do que aproximar o eleitor de seu deputado.  Significa também, como natural conseqüência desta aproximação, dar legitimidade ao Legislativo para que este exerça plenamente suas funções constitucionais e não fique a reboque do Executivo na análise de medidas provisórias.  Em suma, significa retirar o Parlamento da função de mero coadjuvante nas relações políticas, excluindo os dois fatores acima referidos que dão caráter peculiar aos problemas sofridos pelo Legislativo brasileiro.

 

Está mais do que na hora de promover a tão esperada reforma política pela correção da verdadeira gênese da crise do Parlamento, de modo a fortalecê-lo para fazer cumprir sua função de equilibrar os extensos poderes do Executivo e fazer desaparecer o fantasma do paternalismo que sempre ameaça a democracia do Brasil.  



[1] Muito embora a teoria da separação de poderes tenha sido consagrada à luz do pensamento de Montesquieu relativo ao equilíbrio entre Legislativo, Executivo e Judiciário, na obra de John Locke, um dos pais do liberalismo, encontra-se verdadeira defesa da proeminência do Parlamento sobre o Executivo.  A respeito, anota Noberto Bobbio: “A solução de Locke nada a tem ver com a teoria do equilíbrio dos poderes, porque sustenta a separação entre Legislativo e Executivo, no sentido preciso de que fazer leis e aplicá-las são funções que devem ser atribuídas a órgãos distintos, o Parlamento e o Rei, mas não atinge a sua coordenação. Locke sustenta que, uma vez separados, os dois poderes devem ficar subordinados um ao outro; precisamente, o poder executivo deve estar subordinado ao legislativo. Assim, a teoria de Locke não é uma teoria da separação e do equilíbrio dos poderes, mas sim de sua separação e subordinação” (BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Trad. Sergio Bath. 2ª edição. Brasília: Editora UNB, 1.998, pp. 236).

 

[2] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição. Coimbra: Editora Almedina, 2.003 p. 588.

 

[3] SILVA, JOSÉ AFONSO DA. Comentário Contextual à Constituição. 4ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2.007, p. 391.



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