285 - Direito autoral. A venda da obra de arte somente transmite a propriedade. A possibilidade de transmissão de direitos patrimoniais constitui exceção e exige autorização por escrito

 
LUIZ FERNANDO GAMA PELLEGRINI - Desembargador
 

 

A relação do mundo das artes plásticas e o direito autoral constituem um mistério para aqueles que vivem nesse meio, inclusive para o denominado “familier/connaiseur” que na maioria das vezes vinculam a aquisição de uma obra como o direito de usar e abusar da mesma, que em outras palavras seria o exercício de direitos patrimoniais, pretensão essa que obviamente não encontra amparo na legislação autoral, como veremos.

 

A regra por óbvio é no sentido de que a venda da obra de arte plástica, como tal definida no artigo 7º e seus incisos da lei autoral, nada mais transmite do que a propriedade e posse da obra adquirida, também denominada corpus mechanicum, mesmo porque como se vê em  vários dispositivos da lei autoral – Lei nº 9610/98 –  que é pródiga ao separar e delimitar o campo de incidência dos institutos.

 

Para que se tenha uma idéia, os dispositivos a seguir envolvem-se de maneira direta e indireta com a matéria, a saber, os artigos 7º, inciso VIII, artigos 28, 29, “caput”, artigos  33, 37, 48,  77 e 78.

 

O artigo 7º da lei vigente estabelece o que são obras protegidas, ao assim dispor:

 

Artigo 7º - São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer forma meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se inventem no futuro, tais como: (grifei)

 

Por sua vez, o mesmo dispositivo no inciso VIII prevê entre outras “as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética.”

 

A Convenção de Berna em seu artigo 2 já previa tal disposição, ao assim consignar:

 

1) Os termosobras literárias e artísticas” abrangem todas as produções do domínio literário, , qualquer que seja o modo e a forma de expressão, tais como...as obras de desenho, de pintura, de arquitetura, de escultura, de gravura e de litografia...etc.”

 

Por sua vez, a mesma Convenção de Berna por seu artigo , 1º, estabelece que: “Os autores de obras literárias e artísticas protegidos pela presente convenção gozam, durante toda a vigência de seus direitos sobre as suas obras originais do direito exclusivo de reprodução destas obras, de qualquer modo ou sob qualquer forma que seja.”

 

 

Duas outras disposições legais encontram-se estampadas na lei em questão, coerentes inclusive com a norma constitucional, respectivamente nos artigos 33 e 37, a saber:

 

Artigo 33 – Ninguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la, sem permissão do autor.(grifei)

 

Essa disposição é de tal clareza no sentido de que nenhuma obra de arte plástica pode ser reproduzida, ou seja, dela não se pode efetuar exemplares em obediência à sua definição como tal contida no inciso VI do art. 5º da lei autoral.

 

Diz o referido inciso VI.

 

VI – reprodução – a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido.

 

O professor JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO analisando a matéria entende que : “Mas em Direito de autor desenvolveu-se um sentido específico, que limita ao que poderíamos designar por reprodução “corpórea”. Quando se fala em direito de reprodução só se tem em vista a produção de exemplares. É nesse sentido técnico que a expressão é usada na Convenção de Berna, como aliás em geral no direito português. Em sentido técnico, a reprodução pressupõe uma fixação e implica a produção de cópia” Direito Autoral, segunda edição, Renovar, pag.174/175)

 

Artigo 37 – A aquisição do original de uma obra, ou do de exemplar, não confere ao adquirente qualquer dos direitos patrimoniais do autor, salvo convenção em contrário, entre as partes e os casos previstos nesta Lei. (grifei)


Como se depreende, esses dispositivos se harmonizam e se completam, em que o artigo 33 é enfático a ressaltar que somente após a denominada queda no domínio público é que se pode cogitar de reproduzir o corpus mechanicum, dispositivo esse que se completa com o artigo 45 que adiante veremos.

 

Já por sua vez o artigo 37 acima é igualmente explícito ao dizer que o adquirente da obra de arte plástica – desenho, escultura, gravura, etc. – não adquire os direitos patrimoniais do (a) artista ou seus sucessores ou mesmo daqueles que os adquiriram em vida, salvo disposição em contrário.

 

Dispõe o referido dispositivo.

 

Artigo 37 –A aquisição do original de uma obra, ou do exemplar, não confere ao adquirente qualquer dos direitos patrimoniais do autor, salvo convenção em contrário entre as partes e nos casos previstos em lei. (grifei)

 

O artigo 48 da lei prescreve que:

 

Artigo 48 - As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais. (grifei)

 

Note-se, que a lei fala em que “...podem ser representadas...” mas por óbvio não fala em reprodução, que seria a exploração econômica da obra sobre as formas mais variadas, pois esse direito pertence ao autor(a), seus sucessores ou aqueles que sejam titulares de direitos patrimoniais.

 

 “A comunicação da obra depende da vontade do titular, que elege a forma e o modo, podendo perfazer-se por si ou por intermédio de outras pessoas, normalmente empresas especializadas que necessitam de sua expressa autorização, podendo interferir também as associações de titulares. O princípio básico, nesse ponto, é o de que qualquer utilização fica, como salientamos, sob a exclusividade do autor, compreendidas as existentes e as que vierem a ser introduzidas pela técnica das comunicações. Com efeito, compete ao autor, na linguagem legal, os direitos de utilizar, fruir e dispor da obra, ou autorizar sua utilização ou fruição por terceiros, no todo ou em parte (art. 29)”. (BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor; 2ª. Edição. Forense. 1997, pág. 49).

 

Por derradeiro, o artigo 48 da lei vigente modificando a redação contida na lei anterior, estabelece que com relação às obras em logradouros públicos estas poderão apenas ser representadas, - pois a lei vigente não mais fala em reprodução”- mas apenas para o diletantismo do interessado, não podendo por conseguinte ser fotografadas sem autorização do titular do direito,  como bem salientou PLINIO CABRAL:

 

“Não é assim. Trata-se de um patrimônio público, sem dúvida. Mas um patrimônio público sobre o qual existem direitos morais e materiais do autor. A lei não fala reprodução. Fala em representação e exemplifica:” por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.”Já de início temos uma conclusão: uma estátua pode ser representada, dentro daquilo que a lei indica, mas não pode ser reproduzida, ou seja: não pode dela fazer cópias em qualquer escala, grande, pequena, ou mesmo minúscula, para adornar chaveiros ou lembranças do local, o que é muito comum. Ora, se a obra colocada em logradouro público não está em domínio público, o autor continua exercendo sobre ela seus direitos patrimoniais e morais. É ainda Luiz Fernando Gama Pellegrini que diz: Note-se, e.g., estando a estátua ou monumento fazendo parte integrante um todo, como objeto de reprodução, não haveria impedimento. No entanto, se se pretende fotografar o monumento uma estátua isoladamente, haverá então a necessidade de autorização por parte do titular do direito, sob pena de violação.(ob.cit., págs.97/98). (g.n.).

 

Finalmente chegamos aos artigos 77 e 78 da lei autoral, que assim prescrevem:

 

Artigo 77 – Salvo convenção em contrário, o autor de obra de arte plástica, ao alienar o objeto em que ela se materializa, transmite direito de expô-la, mas não transmite ao adquirente o direito de reproduzi-la. (grifei)

 

Artigo 78 – A autorização para reproduzir obra de arte plástica, por qualquer processo, deve se fazer por escrito e se presume onerosa. (grifei)

 

A interpretação e aplicação desses dispositivos está intimamente ligada aos artigos supra invocados, mormente os 33 e 37, em que dúvidas não pairam quanto a manutenção do alienante sobre o seu direito de reprodução, sob as formas mais variadas, inclusive do próprio corpus mechanicum, salvo se as partes convencionarem de forma diversa.

 

O professor JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO assinala que “A essência do direito patrimonial encontra-se na reserva da exploração econômica da obra. São em qualquer caso excluídas utilizações por terceiro que visem o lucro direto ou indireto, portanto em concorrência com o autor na exploração econômica da obra.”.(ob., cit., pág.163).

 

Por sua vez, o eminente autoralista EDUARDO S. PIMENTA em estudo específico assim consignou: “O princípio do suporte físico é o divisor entre o corpus mysticum e o corpus mecanicum. O suporte físico é a materialização física da criação intelectual. O suporte físico é o objeto material que juridicamente se enquadra na natureza de coisa, que pode compor o universo de riqueza do homem. Com a venda da obra intelectual o autor transmite a propriedade sobre o suporte material da sua criação. O adquirente fica investido de todas as prerrogativas inerentes ao direito de propriedade (uso, gozo e fruição) sobre o suporte material que incorpora a criação intelectual, respeitados os direitos autorais de autor dentre estes os direitos morais (direito de paternidade, a modificação, destruição, transformação, direito de seqüência (ver 6.3.II,b, etc.). Tendo em vista que estes direitos morais são irrenunciáveis e inalienáveis o adquirente do suporte material terá sempre uma relação com o autor, de guardião da criação intelectual – a obra.” (Princípios de direitos autorais, Livro I, Lúmen Editora, pág. 360, 2004)

 

Temos então, diante do que dispõe a Convenção de Berna bem como as normas contidas na lei autoral nº 9610/98, que a venda de uma obra de arte, ou seja, o seu corpus mechanicum que é o objeto em que ela se exterioriza não transfere ao adquirente nada mais do que a posse e propriedade da mesma, salvo se o autor(a) ou o sucessor bem como o titular de direitos patrimoniais assim desejar.

 

Entendemos, contudo, que o corpus mechanicum não deve ser transferido para o adquirente, que poderá dar à obra uma trajetória não desejada, inclusive com conseqüências graves, e as demais formas de reprodução que não exatamente a do corpus mechanicum deverão ser sopesadas com muita calma, pois a obra poderá ser reproduzida das maneiras mais diversas, tais como fotografias, pôster, inserção em livros e periódicos e porque não na Internet, cujas conseqüências em face da sua imensidão é incontrolável.

 

E é exatamente na área cultural que se encontram as maiores dificuldades, em que museus e estabelecimentos análogos julgam-se “donos das obras” e da vida e obra do(a) artista pelo simples fato de ser o proprietário dela, o que como se viu um é um grande nonsense, isso ocorrendo tanto com as instituições particulares e acima de tudo com as pertencentes ao poder público.

 


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