286 - Direitos autorais. Direitos morais dos sucessores. Obra caída em domínio público

 

LUIZ FERNANDO GAMA PELLEGRINI - Desembargador
 

 

A respeito do que se entenda por domínio público vemos uma certa confusão a respeito, o que nos leva a discorrer sobre os bens que farão parte do patrimônio artístico/cultural do país, em decorrência do fato obra cair em domínio público, ou seja, quando do término dos direitos patrimoniais dos sucessores do artista.

 

HELY LOPES MEIRELLES conceitua o que se entende por domínio público: “é o poder de dominação ou de regulamentação que Estado exerce sobre os bens do seu patrimônio (bens públicos), ou sobre os bens do patrimônio privado (bens dos particulares de interesse público), ou sobre as coisas inapropriáveis individualmentte, mas de fruição geral da coletividade (res nullius)” (01)

 

A Constituição Federal discorre sobre patrimônio artístico/cultural em seu artigo 216, sendo que os artigos 23, III, IV, 24, VII, disciplinam as respectivas competências  sobre esse patrimônio, tanto quanto a legislar bem como preservar.

 

A lei autoral vigente prevê em seu artigo 22 que “pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou”, sendo que o artigo 24, incisos I a IV, e parágrafo primeiro, que os direitos de reivindicar a qualquer tempo a autoria da obra, o ter o nome do artista indicado como sendo o autor da obra na sua utilização, o conservá-la inédita e o de assegurar a sua integridade, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que por qualquer fora possam prejudicar a obra ou atingir o autor em sua reputação ou honra.

 

Por sua vez, o artigo 27 estabelece que os direitos morais são inalienáveis e irrenunciáveis e igualmente imprescritíveis, muito embora a lei autoral não tenha cogitado explicitamente, o que, no entanto pela sua própria essência por ser um direito personalíssimo nem por isso deixa de existir, muito pelo contrário.

 

Por derradeiro, o parágrafo primeiro do artigo 24 diz que “Por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV.”

 

E o seu parágrafo segundo estabelece que: “Compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público”.

 

Diz ainda o artigo 45 da mesma lei autoral que: “Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público; as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores.”

 

CARLOS ALBERTO BITTAR em seus estudos fez consignar: Características fundamentais desses direitos são: a pessoalidade; a perpetuidade; a inalienabilidade; a natureza pessoal, inserindo-se nessa categoria de direitos de ordem personalíssima; são também perpétuos ou perenes, são se extingui jamais; são inalienáveis, não podendo, pois, ingressar legitimamente no comércio jurídico, mesmo se quiser o criador, pois deles não pode dispor; são imprescritíveis, comportando, pois a exigência por via judicial al qualquer tempo; e por fim, são impenhoráveis, não suportando, pois constrição judicial.” (02)

 

O que se verifica já à primeira vista, é que aos sucessores cabe a incumbência e até mesmo a obrigação de zelar pela obra do artista que pelo lapso de tempo deixou de gozar da exclusividade de sua exploração patrimonial e, o Estado a defesa da integridade e autoria da obra.

 

Essas normas são compatíveis, muito embora os direitos morais dos sucessores também visam assegurar a integridade da obra (inciso IV) bem como a autoria, também denominada direitos de paternidade (inciso I), e ambos a defesa da obra, todavia o Estado não tem a legitimidade do exercício dos direitos morais dos sucessores, pois são situações parecidas, mas que não se confundem, mesmo porque legisladas com fundamentos diversos.

 

O jurista, advogado e Desembargador aposentado RENAN LUTUFO em comentários ao Código Civil vigente externa seu entendimento nos seguintes termos: “Os direitos da personalidade podem ser divididos em direitos à integridade física e em direitos à integridade moral. Em relação à integridade física, destacam-se o direito à vida, o direito sobre o próprio corpo e do direito ao cadáver. Quanto aos direitos à integridade moral, tem-se o direito à honra, à liberdade, à privacidade, e, numa esfera mais estreita, à intimidade, à imagem, ao nome e ao direitos morais sobre as criações pela inteligência . O dispositivo não tem precedentes na legislação anterior. Assim, para Gustavo Tepedino, considerados como direitos subjetivos privados, os direitos da personalidade possuem como características, além da extrapatrimonialidade e da irrenunciabilidade previstas no art. 11 deste Código, a característica da generalidade, o caráter absoluto, a inalienabilidade, a imprescribilidade e a intransmissibilidade. O absolutismo decore do fato de ser logicamente oponível erga omnes, impondo-se à coletividade o dever de respeitá-los. A generalidade, que consiste em ser concedida a todos, pelo simples fato do ser humano estar vivo, de ser, implica a existência e investidura dos direitos da personalidade. A extrapatrimonialidade, que decorre da indisponibilidade expressa na intransmissibilidade, ademais, é visa como característica desses direitos por serem insuscetíveis de avaliação econômica, mesmo que sua lesão gere efeitos econômicos. (Código Civil comentado, volume I, págs. 51 e 53, Saraiva).

 

Diante desse ordenamento já se pode concluir que o fato da obra cair em domínio público em nada afeta o exercício dos direitos morais dos sucessores do artista, posto que o exercício dos direitos morais é imprescritível, e além do mais a lei autoral no já citado artigo 45 é expressa quando estabelece o marco inicial que a obra cai no domínio público, ou seja, quando decorreu o prazo de proteção dos direitos patrimoniais, que neste caso são de 70 anos do dia 1º de janeiro do ano subseqüente ao do falecimento do autor, conforme norma expressa no artigo 41 da lei autoral.

 

E essa previsão legal é muito importante, mormente em um país de terceiro mundo, caminhando sem dúvidas para uma condição melhor, em que a memória é fraca e o poder público é absolutamente inepto e inerte quanto ao seu patrimônio histórico/cultural/artístico, em que a presença de titular ou titulares desses direitos morais é de suma importância.

 

Os exemplos existentes podem a qualquer momento ser constatados, como por exemplo o “Obelisco”  de autoria do escultor Emendabile que normalmente encontra-se em situação precária, em cujo local além da obra escultural em si é o local em que se encontram aqueles que serviram e honraram o Estado de São Paulo, “Monumento do Ipiranga” ou “à independência” de Ettore Ximenes,  que tantos danos já recebeu, o “Monumento às bandeiras” de autoria de Victor Brecheret, cujas pichações já fazem parte do seu cotidiano, o “Monumento a Caxias” cujo abandono pela municipalidade é uma vergonha e outros que nos fogem à memória, a “Mãe preta” e “Bandeirante” de autoria de Julio Guerra, que igualmente é muito é pichada, as “Graça I e II” de Victor Brecheret, que se encontram na galeria Prestes Mais cujo braço de uma delas quase foi arrancado muito embora hoje restaurada, tudo isso já existiu e existe com o patrimônio público e provavelmente continuará a existir, pois e depender do poder público constituído nada acontece a não ser que haja uma atitude enérgica dos sucessores dessas ou daquela obra.

 

Mas não é só os monumentos públicos que podem se sujeitar a atos de vandalismo, os painéis por exemplo como o do Teatro Cultura Artística de autoria de Di Cavalcanti, que salvou-se do recente incêndio em que poderia ter quiçá ocorrido má administração, mas que de qualquer o sucessor ou sucessores devem sempre estar atentos.

 

O estado dos painéis de mármore  travertino do Jockey Club na área externa encontram-se corroídos pela poluição sem que a administração tome qualquer medida a respeito.

 

E a cidade de São Paulo e outras são muito ricas com obras dessa natureza, criadas que foram em uma época em que a sociedade contratava a feitura de painéis, como por exemplo, os painéis do pintor Clovis Graciano na avenida 23 de maio e na avenida Paulista, perto da Brigadeiro Luis Antonio, o painel de Di Cavalcanti no antigo Hotel Jaraguá, os painéis de autoria de Fulvio Penacchi no belíssimo Hotel Turiba em Campos do Jordão, os afrescos de Portinari na igreja da Pampulha, um painel de Di Cavalcanti no aeroporto de Congonhas na ala reservada a autoridades, os afrescos de Di Cavalcanti e Fulvio Penacchi que juntamente com a “Via Sacra” de Brecheret ornamento a igreja que se encontra junto ao Hospital das Clínicas e assim por diante.

 

Com todas essas obras podem ocorrer danos, quer pertençam ao patrimônio público quer sejam particulares, mas em quaisquer das hipóteses os direitos morais exercidos pelos sucessores se farão presentes sempre que elas se inserirem nos incisos I a IV, do artigo 24 da lei autoral já invocado, o que torna os sucessores tão responsáveis quanto aos poderes constituídos e mesmo os particulares, que não podem permitir que as obras pertencentes a eles sejam danificadas ou de qualquer forma possam macular o nome, a obra e a imagem do seu criador que são riquezas oriundas do intelecto e do espírito, portanto personalíssimas.

 

Pode-se concluir, portanto, que a obra caída no domínio público em nada altera o exercício dos direitos morais dos sucessores do artista plástico, que continuam hígidos até a morte deles.

 

 

(01) HELY LOPES MEIRELLES in Direito Administrativo Brasileiro, 4ª ed. atualizada, RT, pág. 468.

 

(02) CARLOS ALBERTO BITTAR in Direito de autor, 2ª. Ed.,Forense, 1997, pág


O Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais do TJSP