288 - Direito autoral e de nome. Locação e comodato de obras de arte plástica. Reflexos

 
LUIZ FERNANDO GAMA PELLEGRINI - Desembargador
 

 

Procuraremos diante do enunciado analisar esses dois tipos de contratos em face da lei autoral e da legislação civil,  que ocorrem com certa frequência, mormente entre  museus, fundações, e mesmo entre particular e museu ou instituição análoga, tendo em vista a obra objeto da locação ou comodato ser uma obra de arte protegida ou não.

 

O Código Civil estabelece por seu artigo 565, verbis:

 

Artigo 565 - Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição.

 

Característica fundamental dessa relação contratual é a sua onerosidade, ou seja, a cobrança de determinada importância por parte do locador – proprietário da obra – e o pagamento pelo locatário dessa importância, nos termos e condições avençados.

 

NELSON NERY JUNIOR E ROSA MARIA DE ANDRADE NERY em anotações ao referido código assim fazem consignar: “É absolutamente incontestável que a gratuidade é elemento essencial ao contrato de comodato, dado que a diferença entre esse contrato e a locação está precisamente no caráter gracioso do primeiro, em contraste com o pagamento de aluguel imprescindível à caracterização da segunda. E não havendo locação, descabido é o despejo.”  (01)  

 

No tocante às artes plásticas a matéria apresenta a nosso ver situações interessantes em face dos dispositivos que disciplinam a matéria.

 

Primeiramente vejamos o nascedouro do direito de autor, consignado no artigo 5º, incisos XXVII e XXVIII alínea “ b”, em que o texto maior outorga aos autores e seus herdeiros o direito de utilizar e aproveitar economicamente dessas criações do espírito, ou seja, as obras de arte plástica.

 

A Lei Autoral nº 9.610/98 estabelece por seu artigo 22 que ao autor – entenda-se também os herdeiros – pertencem os direitos patrimoniais decorrentes da exploração da obra, da mesma forma que o artigo 28 estabelece que cabe ao autor – entenda-se também os herdeiros – o direito exclusivo de utilizar, fruir, e dispor da sua criação, dependendo do autor, por força do disposto no artigo 29 sua autorização expressa para a utilização da sua obra, por quaisquer modalidades, cujo rol exemplificativo ainda prevê a utilização direta ou indireta (inciso VIII), bem como quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas (inciso X).

 

Veja-se ainda que o artigo 37 da lei prevê que a aquisição do original de uma obra de arte plástica não confere ao adquirente qualquer dos direitos patrimoniais do autor, salvo convenção em contrário, cabendo ainda na hipótese o artigo 30 do mesmo diploma legal.

 

O artigo 5º, inciso VI considera comunicação ao público ato mediante o qual a obra é colocada ao alcance do público, por qualquer meio ou procedimento e que não consista na distribuição de exemplares, e que se insere no contexto da exploração dos direitos patrimoniais do autor ou dos herdeiros, como bem preleciona o saudoso autoralista CARLOS ALBERTO BITTAR:

 

“(...)

 

Com efeito, compete ao autor, na linguagem legal, os direitos de utilizar, fruir e dispor da obra, ou autorizar sua utilização ou fruição por terceiros, no todo ou em parte (art. 29).

Fica submetida, pois, à sua licença, ainda no sistema da lei, qualquer modalidade de utilização, como as de edição, tradução (em qualquer idioma), adaptação, inclusão em fonograma ou película cinematográfica, comunicação (direta ou indireta) ao público pelos processos possíveis, como execução, representação, recitação, declaração, radiodifusão sonora ou áudio-visual (televisão), emprego de alto-falante, de telefonia, com ou sem fio, ou de aparelhos análogos e vídeofonografia (art. 30), entendendo-se que, autorizada a fixação, a execução pública por qualquer meio, só se poderá fazer com a permissão prévia, para cada vez, do titular dos direitos (parágrafo único).

 Observe-se, no entanto, que, consoante as orientações já expostas, estão compreendidas nesse contexto todas e qualquer outras utilizações, encerradas ou encerráveis, nos dois grupos de direitos econômicos (de representação e de execução), dado o transparente caráter exemplificativo da enumeração e sempre sob o domínio do autor”. (02) O grifo é nosso)

 

 

Uma menção ainda aos artigos 77 e 78 da lei, em capítulo específico às obras de arte plástica, quando dispõe sobre a alienação da obra e suas conseqüências, que já foi objeto de trabalho anterior. 

 

Vejamos assim como as coisas acontecem na prática.

 

É muito comum museus solicitarem determinada obra ou obras pertencentes a particulares ou mesmo outras entidades para uma exposição coletiva ou individual e acima de tudo quando se realiza uma retrospectiva do artista.

 

Determinado proprietário ou entidade pode alugar a obra advindo daí indagar se a exploração econômica fica inibida em face das disposições acima invocadas, o que a nosso ver sim, pois tem ele, proprietário, apenas a propriedade da obra, mas não a sua exploração patrimonial, salvo convenção a respeito, que se pode dar mediante cessão, autorização ou mesmo licença, como aliás ressaltamos em outro trabalho.         

 

Como bem salientado pelo doutrinador acima, a exploração patrimonial da obra pertence ao autor ou seus herdeiros ou eventualmente cessionários, o que valer dizer no exemplo formulado, que se um museu ou qualquer outra pessoa jurídica ou física desejar alugar a obra e desde que seja uma obra protegida, terá que obter expressa autorização do titular do direito ou herdeiros, sob pena de violação dos dispositivos acima citados.

 

Mas haveria como enunciado ainda uma outra situação inibidora da locação ou mesmo comodato, prevista no artigo 18 do Código Civil, no sentido de que “Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial”.

 

O dispositivo não poderia receber redação mais infeliz, muito embora seu alcance seja muito claro, ou seja, a exploração do nome do autor precedida de remuneração, como é o caso das firmas de publicidade que levam o produto para as empresas e ai exploram a obra e o nome do artista-autor. Em outras palavras, quando uma terceira pessoa tira proveito do nome, no caso, do artista, ou de seus sucessores, essa exploração é vedada sem a expressa autorização por quem de direito.

 

Essa disposição constitui inovação, pois anteriormente o nome era apenas objeto de doutrina e jurisprudência, e agora texto de lei em boa hora.

 

Vejamos agora a questão do comodato.

 

O mesmo Código Civil por seu artigo 579 prescreve que:

 

Artigo 579 – O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Perfaz-se com a tradição do objeto.

 

Essa modalidade contratual também é muito comum no mundo das artes plásticas, quiçá em número bem maior do que a locação, muito embora o mundo econômico não pode relegar o direito do artista ou seus herdeiros em prol de terceiros.

 

Todavia, é da essência do comodato a sua gratuidade, o que reforça o entendimento que essa é a modalidade adotada, não obstante nos dias de hoje todas as iniciativas culturais dos museus e estabelecimentos análogos venham precedidas de patrocínio, inclusive incentivos fiscais, o que deve servir de alerta para que a obra ao ser explorada direta ou indiretamente seja onerada e acima de tudo respeitados os direitos existentes, muito embora o contrato de comodato, como se viu, é gratuito.

 

Se por um lado a avença é gratuita como essência do contrato, isso não quer dizer que a relação contratual não gere a incidência do artigo 18 do Código Civil como acima visto, uma vez que essas iniciativas não podem viver sem patrocínio, como dito, acabando, ipso facto, em exploração econômica, ainda que indiretamente.

 

Da mesma forma, e com as mesmas consequências acima apontadas poderá ocorrer violação de direito autoral, bem como do nome e eventualmente da imagem do artista, não na contratação em si como dito, mas no seu resultado final, em que a obra estará sendo objeto de reflexos patrimoniais – financeiros – pelo seu envolvimento em patrocínios e exploração da obra e do nome do artista, ainda que tudo isso ocorra sob o manto da cultura, o que é uma falácia.

 

IN SUMMA, artistas, herdeiros e instituições culturais, inclusive patrocinadores, têm que se compor, sem que isso interfira nos direitos constitucionais acima invocados, respeitando-se igualmente a lei autoral e civil.

 

 

01 - NELSON NERY JUNIOR E ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, ADCOAS 68.136, 1980), in ( NOVO CÓDIGO CIVIL, RT, 2002, pág. 217)

 

02 - CARLOS ALBERTO BITTAR, Direito de Autor, 2ª edição revista e atualizada, editora Forense Universitária, p. 49



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