290 - Direito autoral. O acesso por parte do autor de obra de arte plástica a exemplar único e raro que se encontre na propriedade de outrem. Condições

 
LUIZ FERNANDO GAMA PELLEGRINI - Desembargador
 

A matéria enunciada efetivamente após 11 anos da promulgação da lei autoral vigente – 9.610/98 – apresenta uma inovação contida no seu artigo 24, inciso VII, no capítulo dos direitos morais, mas que pouco ou quase nada se escreveu a respeito, muito embora a nosso ver seja de grande relevância, mormente num país em que a memória praticamente inexiste.

 

Este tópico diz respeito a qualquer obra, artística, literária, a científica, enfim qualquer manifestação do espírito e que como tal são obras protegidas (artigo 7º) pela lei vigente, muito embora nos preocupemos nesta oportunidade das obras de artes plásticas.

 

Primeiramente esclareça-se que esse direito moral não é extensivo aos herdeiros como ocorre nos incisos I a IV, sendo titular do seu exercício apenas e tão somente o criador da obra (artista), o que a nosso ver errou o legislador ao restringir o acesso a uma obra em princípio tida como rara e exemplar único, pois a história nos comprova que raridades são descobertas anos após a morte do seu criador e isso viria de encontro ao próprio texto da lei, contra a memória cultural, portanto um retrocesso, v.g. partituras de Mozart, Beethoven e quadros de artistas consagrados, bem como pinturas que são descobertas séculos após a morte do seu autor.

 

Dispõe o dispositivo em questão:

 

VII – o de ter acesso a exemplar único e raro da ora, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado. (grifei)

 

O dispositivo em questão estabelece que o acesso pelo autor (artista) à sua obra tida como rara e exemplar único poderá ocorrer para fins de preservação da memória, através processo fotográfico, assemelhado ou ainda audiovisual, ressaltando que essa iniciativa por parte do artista não deverá causar inconvenientes ao proprietário da obra, pois caso contrário responderá por perdas e danos.

 

Verifica-se primeiramente que a permissão é de cunho basicamente cultural, o que é salutar, porém sem objetividade diante de um mundo financeiramente feroz.

 

Verifica-se, ab initio, que a previsão legal contém conotações extremamente subjetivas e que podem dificultar a iniciativa do artista, a começar pelo o que se entende por raro, avaliação essa que partirá do artista e até, mesmo especialistas, mas que pode para os fins pretendidos não atender ao disposto em lei.

 

Já com referência ao exemplar único, não vemos qualquer dificuldade por parte do artista, tratando-se de quadro ou desenho, mesmo porque as demais formas de concepção artística não seriam beneficiadas por esse inciso, muito embora as denominadas gravuras e assemelhados, a matriz (estampa) é um exemplar único.

 

Essas dificuldades justificam que a previsão legal deveria ser extensiva aos herdeiros, pois é muito comum como dito a aparição de obras após muitos anos da morte do artista dificultando assim a preservação da memória, se for o caso, para que haja coerência inclusive com os incisos I a IV do mesmo dispositivo legal, uma vez que os herdeiros são legítimos titulares do exercício dos direitos morais mencionados nos nesses incisos, mesmo porque aos herdeiros compete v.g. o direito de paternidade, assegurar a integridade da obra opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma possam prejudicar o autor.

 

Nesse particular há que se distinguir o posicionamento do artista-autor e do proprietário-possuidor da obra

 

Há que se salientar que a preservação e manutenção da memória é matéria de cunho constitucional prevista nos artigos 215 e 216 da CF/88, em que o Estado garantirá o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes culturais, estabelecendo ainda que constituam patrimônio cultural os bens de natureza material, as formas de expressão e as obras para fins de manifestações culturais e que se harmoniza com a disposição contida na lei autoral, pois a iniciativa do artista não visa apenas a sua curiosidade ou outro interesse, mas o acesso à sua criação intelectual que certamente se insere no contexto das normas constitucionais, dado que a condição é que se trate de obra rara.

 

JOSÉ AFONSO DA SILVA em comentários ao artigo 23 nos ensina que: “Aqui, estamos diante de bens culturais, que encontram normatividade mais desenvolvida nos arts. 215 e 216. A Constituição, neste inciso, especifica os bens, para melhor proteção. Depois são as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural. São, na verdade, obras e bens culturais – expressão que abrange o histórico e o artístico, que já se incluem no cultural. O que se tem, como vimos, são bens culturais históricos, bens culturais artísticos, bens culturais arqueológicos, paleontológicos, etnográficos, folclóricos, paisagísticos – por que todos são manifestações da cultura.” (Comentários A Constituição, 5ª. Ed., M., pág. 273,2008).

 

Uma curiosidade que nos chega é a inserção desse dispositivo no capítulo dos direitos morais, que tem sua razão de ser por tratar-se de direito personalíssimo, inalienável, intransferível e imprescritível e o fato da obra pertencer a terceiro em nada interfere no exercício dos seus direitos.

 

Todavia, a norma pode ensejar efeitos não desejados, como v.g. a eventual procura de algum enriquecimento por parte do artista diante daquilo que seria uma obra única e rara.

 

Por outro lado, da leitura do inciso em questão podemos entender que as hipóteses ali contidas impediriam os seus direitos de utilização, fruição e gozo que tem sobre a obra, disposições que se inserem no capítulo dos direitos patrimoniais, cabendo relacionar esse dispositivo aos artigos 77 e 78 da lei autoral, pois a exploração econômica da obra por parte de terceiros, salvo disposição em contrário encontra óbice no artigo 78 mencionado, independentemente do mandamento constitucional previsto no artigo 5º, incisos XXVII e XXVIII.

 

Se o objetivo é preservar a memória, tal fato a nosso ver não poderia restringir os direitos patrimoniais do artista. Os interesses  têm que se conciliar.

 

Nada impede, a nosso ver, que o artista queira fotografar essa obra e explorá-la nos termos do inciso VII, mesmo porque sua memória estaria não apenas protegida, mas igualmente divulgada e explorada economicamente, pois todas essas iniciativas são privativas do artista, exclusivamente dele, pois envolve direitos morais/patrimoniais.

 

Acrescente-se, que nos termos dos artigos 28, 29, 31, e 33, o proprietário como salientado nos artigos 77 e 78, salvo disposição em contrário, são apenas proprietários e possuidores da obra, inexistindo qualquer direito de explorá-la, seja a que título for.

 

In summa, a não permissão de que herdeiros (os direitos morais são inalienáveis, intransmissíveis, irrenunciáveis) possam exercer esse direito não é compatível com o mundo moderno, pois como já salientado anteriormente é muito  comum a localização de obras que até então eram desconhecidas quando o seu criador-artista já tiver morrido.



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