A Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, alterou o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal e outros dispositivos, substituindo a antiga denominação de “Crimes contra os costumes” para “Crimes contra a dignidade sexual”.
Como toda lei nova suscitará interpretações inusitadas, inclusive para o legislador, porque, como dizia o saudoso Ewelson Soares Pinto, “a Lei é como o samba do malandro: veste uma camisa listrada e sai por aí”, libertando-se da vontade do legislador. O que deve ser buscado é a vontade da lei, na sua realidade e seu contexto, mediante a aplicação de métodos técnicos, mas, antes ou mais que tudo, mediante o respeito à sua razão de ser no mundo jurídico.
Neste momento nacional, de violência de todas as formas, de preocupação de respeito à dignidade da pessoa humana, de combate à pedofilia e à violência sexual, em especial, a reforma empreendida pela lei somente pode ser interpretada com esses componentes.
Ameaça-se, contudo, uma interpretação que os nega e prestigia a violência sexual, a dignidade da criança e da mulher, especialmente, e, mais que tudo, afronta o bom senso e o princípio do respeito à proporcionalidade e preventividade do Direito Penal.
Entre as modificações da lei, houve alteração do art. 213, com incorporação do antigo 214 (atentado violento), desaparecendo a referência à mulher como sujeito passivo.
Ficou assim redigido:
“TÍTULO VI
DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL
CAPÍTULO I
DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL
Estupro
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
............................................”
Como se vê, o antigo atentado violento ao pudor passou a ser modalidade do estupro. E a razão foi simples: apesar da equiparação da pena, deixar claro que há práticas de atos libidinosos de igual ou maior gravidade que a conjunção carnal e que a vítima pode não ser mulher.
A interpretação que se está querendo entrujar é a de que, tendo sido revogado o art. 214, deixou de existir o crime de atentado violento ao pudor, cuja lei é mais branda e, portanto, retroage para beneficiar os condenados por atentado violento ao pudor em concurso com o estupro, para que se entenda que o crime é único, de estupro, ainda que mais de uma agressão sexual à mesma vítima tenha sido praticada em momentos diferentes e sob diversas formas. O estupro na forma de conjunção carnal absorveria as demais condutas.
A situação fática poderia ser, exemplificativamente, a seguinte: “A” mantém “B” (no caso mulher) em cativeiro e a submete, mediante violência ou grave ameaça e a própria condição do sequestro, a conjunção carnal, coito anal, penetração de objetos e outras práticas.
Segundo a tese sugerida, haveria somente uma incidência do art. 213, vigente e retroativo, porque mais benéfico.
A interpretação é absurda, viola o espírito da lei e viola o princípio da juridicidade.
Dissemos, em outra oportunidade, quanto aos crimes de ação múltipla, que, segundo a doutrina alemã, que primeiro estudou a matéria, os dispositivos que hipotisam mais de uma conduta são chamados de Mischgesetze (leis misturadas ou mistas), aos quais correspondem os Mischtatbestande (tipos misturados ou mistos).
Delogu e Santoro, para denominá-los, usam a expressão “normas penais conjuntas”, que, a nosso ver, exprime melhor a idéia da reunião, num mesmo artigo, de mais de uma conduta que determinaria a incidência penal.
Os tipos, mistos ou conjuntos, de acordo com o ensinamento de Binding, Wertheimer, Mezger etc., podem ser de duas espécies: alternativos, quando a violação de uma ou várias condutas previstas importa sempre no cometimento de um único delito; cumulativos, quando há, na verdade, a previsão de mais de um delito distinto, de modo que cada violação determina a aplicação de uma pena, dando causa a um concurso de crimes (material, formal, crime continuado).
Delogu (Le norme penali congiunte, in Annali, 1936, p. 521) nega a existência de tipos conjuntos alternativos, porque admiti-los equivaleria a aceitar que algumas violações devam ficar impunidas, ou seja, que para o legislador é indiferente que um interesse penalmente tutelado seja lesado uma ou mais vezes. Haveria, outrossim, desprezo ao princípio segundo o qual a cada violação deve corresponder uma sanção.
Delogu parte do princípio, portanto, de que a conjugação de normas é unicamente fruto de considerações de técnica legislativa, devendo ser consideradas como normas autônomas. Todavia, segundo o mesmo autor, também em relação a normas conjuntas pode ocorrer o fenômeno do concurso aparente de normas, em que os princípios da consunção, subsidiariedade e especialidade impedem o bis in idem e excluem a aplicação de outras hipóteses igualmente adequadas ao caso.
Massimo Punzo (Reato continuato, p. 74), em relação à teoria de Delogu, alerta que, ao se recorrer ao princípio da consunção para explicar a existência de um delito único em normas conjuntas, há implicitamente o reconhecimento de que existem normas conjuntas alternativas, porque estas existem segundo a doutrina alemã quando um determinado comportamento, que realiza mais de um tipo hipotisado conjuntamente, é punido com uma única sanção, por se tratar de um único delito.
Não se pode negar que o legislador, ao punir de forma equiparada atos preparatórios ou atos de execução, já previu que a consumação representa a violação, também, das incriminações anteriores, daí ter previsto normas conjuntas alternativas. Mas Delogu tem razão quando vê, nos princípios da solução do concurso aparente de normas, as regras para o crucial problema da identificação das hipóteses de normas conjuntas alternativas ou cumulativas.
O problema é agravado em virtude da precariedade da técnica legislativa; muitas vezes um mesmo tipo é, em algumas hipóteses, cumulativo e, em outras, alternativo e, por exemplo, num parágrafo vamos encontrar, ora uma norma alternativa porque poderia ser contida no caput em outra incriminação, ora normas de aplicação independente.
Assim, a tipo do art. 213 é daqueles em que a alternatividade ou cumulatividade são igualmente possíveis e que precisam ser analisadas à luz dos princípios da especialidade, subsidiariedade e da consunção, incluindo-se neste o da progressão.
Vemos, nas diversas violações do tipo, um delito único se uma conduta absorve a outra ou se é fase de execução da seguinte, igualmente violada. Se não for possível ver nas ações ou atos sucessivos ou simultâneos nexo causal, teremos, então, delitos autônomos.
Por outro lado, pergunta-se: as normas conjuntas admitem o delito continuado?
Massimo Punzo (op. cit., p. 83) resume a solução do problema em três itens, válidos para o nosso estudo:
1) a continuação é possível entre tipos conjuntos representando violações da mesma norma, sempre que a realização dos tipos singularmente seja consequência de uma ação distinta e não de um ou mais atos da mesma ação, porque, neste caso, o delito seria único;
2) a continuação não é possível em relação aos tipos conjuntos alternativos, porque a realização das figuras, em tal caso, dá vida a um único delito. Entende-se que é possível um delito continuado composto de vários tipos cumulativos alternativos cometidos em execução de um mesmo desígnio criminoso (note-se que no Direito brasileiro a unidade de desígnio não é requisito do crime continuado, bastando a homogeneidade das circunstâncias de tempo, lugar, modo de execução e outras);
3) a continuação não é possível entre as figuras de um tipo conjunto cumulativo, porque a realização de cada uma delas representa a violação de um diverso preceito primário, ou seja, de uma disposição de lei diferente.
Em outras palavras, se houver repetição de condutas em circunstâncias de tempo e lugar semelhantes, poderá configurar-se o delito continuado, mas não haverá delito continuado entre figuras consideradas cumulativas.
Aplicando-se esses conceitos ao exemplo trazido como paradigma em face do atual art. 213 a interpretação, data vênia, única correta é a seguinte.
*Se, durante o cativeiro, houve mais de uma vez a conjunção carnal, pode estar caracterizado o crime continuado entre essas condutas; se, além da conjunção carnal houve outro ato libidinoso, como os citados, coito anal, penetração de objetos, etc., cada um desses caracteriza crime diferente, cuja pena será cumulativamente aplicada ao bloco formado pelas conjunções carnais. A situação em face do atual art. 213 é a mesma do que na vigência dos antigos 213 e 214, ou seja, a cumulação de crimes e penas se afere da mesma maneira, se entre eles há, ou não, relação de causalidade ou consequencialidade. Não é porque os tipos agora estão fundidos formalmente em um único artigo que a situação mudou. O que o estupro mediante conjunção carnal absorve é o ato libidinoso em progressão àquela e não o ato libidinoso autônomo e independente dela, como no exemplo referido.
Não houve, pois, abolitio criminis, ou a instituição de crime único quando as condutas são diversas. Em outras palavras, nada mudou para beneficiar o condenado cuja situação de fato levou à condenação pelo art. 213 e art. 214 cumulativamente; agora, seria condenado, também, cumulativamente à primeira parte do art. 213 e à segunda parte do mesmo artigo.
Por todos esses argumentos e em respeito ao espírito da lei e à dignidade da pessoa humana, essa é a única interpretação possível, eis que, inclusive, respeita a proporcionalidade. Não teria cabimento aplicar-se a pena de um único estupro isolado se o fato implicou na prática de mais de um e de mais de uma de suas modalidades, a conjunção carnal e outros atos libidinosos autônomos.
Vicente Greco |