268 - Companheiro leva vantagem na herança

 
EUCLIDES DE OLIVEIRA – Advogado
 

 

Ao dispor sobre os direitos de herança do companheiro sobrevivente de união estável, o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.790, estabelece critérios inteiramente distintos daqueles previstos nos artigos 1.829 e 1.832 para o cônjuge sobrevivente. Ou seja, o Código diferencia o companheiro do cônjuge, sem atentar para o relevante fato de que, numa e noutra das situações, a proteção do Estado deveria estender-se na forma superiormente ditada pela Constituição Federal, artigos 226, incisos I a III, porque tanto no casamento quanto na união estável subsiste uma entidade familiar.

 A comparação entre os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro mostra sensíveis vantagens ao cônjuge, seja por cuidar-se de herdeiro necessário, como por receber quantia superior ao companheiro, nos percentuais de quotas em concorrência com os descendentes. Além disso, o cônjuge participa da herança sobre os bens particulares do falecido, enquanto o companheiro só tem direito hereditário sobre os bens havidos onerosamente durante a convivência.

Mas, em determinadas situações, inverte-se o tratamento legal, aparecendo o companheiro como privilegiado em relação aos direitos sucessórios do cônjuge. Isso acontece em duas hipóteses de fácil exame:

A primeira decorre do direito do companheiro em concorrer na herança com os descendentes sem restrições quanto ao regime de bens adotado na união estável. Não importa que tenha vivido sob o regime legal da comunhão parcial, ou se adotou outro regime por meio de um contrato escrito. Em qualquer situação, e mesmo que tenha iniciado a união estável com mais de 60 anos, hipótese em que o casado se vincula ao regime da separação obrigatória de bens, o companheiro continua partícipe da herança sobre os bens havidos onerosamente durante a vida em comum. Para o casado existem as ressalvas do artigo 1.829 do Código Civil, pois o direito de concorrer na herança com descendentes não ocorre se o casamento foi celebrado no regime da comunhão universal, no regime da separação obrigatória, ou se no regime da comunhão parcial o falecido não deixou bens particulares.

A outra vantagem do companheiro resulta da forma da concorrência, que se dá cumulativamente, isto é, direito de meação sobre os bens havidos onerosamente durante a convivência e mais o direito de uma quota na herança devida aos descendentes.

Com efeito, da forma como está no texto do Código, apresenta-se flagrantemente  vantajoso ao companheiro o direito sucessório, comparativamente ao cônjuge, no que respeita aos bens havidos onerosamente durante a convivência. Dá-se a cumulação, para o companheiro, dos direitos de meação e de herança, pois o art. 1.790 manda aplicar a concorrência com os descendentes, sobre aquela categoria de bens, sem qualquer ressalva.

Vale insistir que, sobre os bens adquiridos onerosamente durante a convivência, o companheiro já é meeiro, por força do regime da comunhão parcial de bens previsto no art. 1.725 do Código Civil, com nítida inspiração no “condomínio em partes iguais”, que constava do art. 5° da Lei n. 9.278/96, salvo hipótese de contrato escrito dispondo de forma diversa.

Parece demasia esse favorecimento maior do companheiro em comparação com o cônjuge, pois, além da meação sobre tais bens, tem ainda direito a percentual na herança atribuível aos descendentes. Tome-se, como exemplo, o caso de o autor da herança deixar um imóvel adquirido onerosamente durante a convivência, tendo um herdeiro filho e companheira. Então a companheira receberá 50% do bem pela meação e mais 25% pela concorrência na herança com o filho. Se o autor da herança fosse casado, nas mesmas condições, o cônjuge-viúvo teria direito apenas a 50% pela meação, enquanto a herança, em igual percentagem, restaria íntegra para o herdeiro filho.

Se não se admite tratamento discriminatório, prejudicial ao companheiro em outros pontos, tampouco se mostra compatível com o princípio isonômico esse benefício maior que o Código Civil concede a quem não tenha sido casado, sem falar na diminuição que essa atribuição de bens ao companheiro, que já tem a meação, ocasiona aos descendentes do autor da herança.

Ora, a Constituição Federal, no citado artigo 226, § 3º, manda que a lei deva facilitar a conversão da união estável em casamento. Supõe-se que o casamento seja mais vantajoso, pois ninguém, em sã consciência, haveria de mudar para um estado civil que rebaixe os seus direitos. Ou seja, sob o ponto de vista jurídico, não se concebe que a lei possa outorgar menos direitos ao casado que ao companheiro. Constitui inadmissível paradoxo, esse critério afrontoso ao mandamento constitucional.

Foi como decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão pioneiro, ao rejeitar pretensão de companheira sobrevivente à percepção cumulativa de meação e cota na herança dos filhos.

Assenta o julgado que o preceito do art. 1.790, inc. II, do Código Civil comporta interpretação teleológica e sistemática, pois do contrário estar-se-ia admitindo favorecimento maior ao convivente do que em relação ao cônjuge. E acrescenta que o dispositivo citado há de ser entendido em conjunto com os arts. 1.725 e 1.829, inc. I, do referido diploma legal, posto que a intenção do legislador certamente não foi autorizar a cumulação dos direitos de meação e herança acarretando diminuição da participação dos herdeiros necessários no acervo hereditário, mas sim evitar que o convivente ou o cônjuge sobrevivente fique desamparado e desprovido dos bens que pertenciam ao falecido.

Ainda, vista a questão sob o plano constitucional: Assim, à luz também do preceito contido no art. 226, § 3º, da Constituição Federal, não há razão de se atribuir também à agravante participação na sucessão do companheiro em concorrência com os descendentes do falecido, sendo pertinente salientar que a pretendida duplicidade de direitos, se admitida, redundaria em prejuízo aos herdeiros necessários, os quais teriam suas quotas diminuídas em benefício da companheira, que já tem uma participação considerável em relação aos bens adquiridos em comum pelos conviventes (TJSP, 9ª. Câm. Direito Privado, AI n. 336.392-4/8, j. em 29.06.2004, rel. Des. Ruiter Oliva, em JTJ, São Paulo: Lex, vol. 285/278).

Realmente, não se justifica essa indevida vantagem patrimonial ao companheiro na sucessão do autor da herança, quando concorre com os descendentes. Nada que explique e, muito menos, que justifique o privilégio em relação ao cônjuge viúvo. Nem seria possível fazê-lo, pela evidente afronta ao princípio isonômico e pelo desatendimento ao preceito constitucional de proteção à família, que se supõe justa e igualitária, não importa a sua origem.

Além disso, vale anotar que o art. 226, § 3º, da Constituição, ao determinar aquele manto protetor sobre a entidade familiar, termina por definir a necessidade de a lei facilitar a conversão da união estável em casamento. Ora, que facilitação haverá quando se sabe que o companheiro, em determinadas circunstâncias, pode vir a receber herança maior do que aquela atribuível ao cônjuge?

Muito ao contrário, o Código, no artigo em comento, inexplicavelmente se alinha em favor do companheiro, como que a estimular a união estável. Não facilita, muito ao contrário, o dispositivo desencoraja e assim dificulta a conversão da união estável em casamento, na contramão do superior preceito constitucional que protege a família.

 

 

 

Euclides de Oliveira é Magistrado aposentado. Doutor em Direito Civil. Autor de Direito de Herança, Inventários e Partilhas (com Sebastião Amorim), União Estável e outras obras.



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