267 - O potencial cancelamento da Súmula 690 do STF

 
JAYME WALMER DE FREITAS – Juiz de Direito
 

 

SUMÁRIO: 1 – Introdução. 2 – A quebra dos princípios. 3 – A ausência de razoabilidade. 4 – O início do fim da Súmula 690 do STF. 5 – Conclusão.

 

 

1 – Introdução. Quando do estudo dos Juizados Especiais Criminais sempre tivemos a atenção chamada para as inúmeras novidades que a Lei 9099/95 trazia à época de sua entrada em vigor, mormente por se afastar das diretrizes básicas do processo penal com resquícios ditatoriais. A uma, porque os institutos despenalizadores da composição civil, transação penal, suspensão condicional do processo e representação nos crimes de lesão corporal culposa e dolosa leve, tinham como objetivos concretos a não aplicação de pena privativa de liberdade e a reparação do dano; a duas, porque o rito processual destoava de tudo que se praticara no processo penal tradicional, possibilitando acordos mesmo após o oferecimento da denúncia e trazendo o princípio da instrumentalidade das formas, dando valor ao fim proposto para o ato, desimportando sua forma; a três, porque tornando a justiça criminal consensual desafogaria as Varas Criminais e os distritos policiais.

 

No fundo, no fundo, o que o legislador almejava era a redução do tamanho da inconveniente e desmedida carga de processos nas Varas Criminais e, especialmente, nos distritos policiais.

 

Há treze anos atrás, objetivava-se uma justiça capaz de solucionar os conflitos de menor potencial ofensivo com brevidade, sobrando para a justiça comum debruçar-se com maior acuidade ao processo e julgamento dos crimes mais gravosos. A finalidade sempre se mostrou a mais coerente com a realidade nacional do momento, ainda que os resultados não tenham sido os esperados.

 

Atualmente, no Estado de São Paulo, a ausência de varas especializadas nos maiores centros, recrudescida pela carência de juízes e a presença constante de conciliadores, continua a prejudicar o desempenho da administração do maior Tribunal da nação e impedir que as causas menores tenham um tratamento mais consentâneo com a sua finalidade.

 

2 – A quebra dos princípios. O habeas corpus à luz da CF. Na esteira da busca desta agilidade na prestação jurisdicional, sempre entendi destoante destes objetivos a competência do STF para o julgamento de habeas corpus por atos dos juízes integrantes de Turmas Recursais dos Juizados Especiais Criminais estaduais ou federais.

 

É certo que o art. 102, I da Carta Magna, dispõe sobre a competência originária da Suprema Corte. E, em sua alínea “i”, segundo redação dada pela emenda 22, preceitua que o STF processará e julgará “o habeas corpus, quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância”.

 

Mais. Segundo o enunciado da Súmula 690 do STF: "Compete originariamente ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de habeas corpus contra decisão de turma recursal de juizados especiais criminais".

 

Será que os dizeres do enunciado guardam compatibilidade com o texto constitucional? Creio que não, porquanto a doutrina e a jurisprudência maciças sempre aludiram que os juizados especiais não são tribunais.

 

No art. 102, I, “i”, a Carta Magna se refere a coação exercida por tribunal superior ou autoridade ou funcionários sujeitos à jurisdição do STF, bem como agente julgado por crime em instância única – competência originária. Nada, absolutamente nada aproxima os sujeitos ativos apontados dos juízes integrantes de Turma Recursal.

 

Pois bem, este fundamento, do mesmo modo, não pode servir como parâmetro para definir a competência do STF.

 

Importante consignar, paralelamente à discussão ora travada, que a ausência de menção específica aos juizados ou turmas recursais foi o mote para afastar o cabimento de recurso especial ao STJ[1]. Respaldando esta interpretação, nesta linha de raciocínio, foram editadas as Súmulas 640 do STF e 203 do STJ[2], afirmando que o único recurso típico contra decisões de Turmas Recursais Criminais é o extraordinário. E a competência para processo e julgamento dos recursos extraordinários é indiferente das circunstâncias que arrimam a competência nos HC’s mencionados.

 

Não é só.

 

Os juizados são órgãos afetos à Justiça Estadual ou Federal e se seus integrantes perpetrarem qualquer infração serão julgados pelos tribunais aos quais estão vinculados. Assim, seus atos porventura desarrazoados devem ser avaliados pelos respectivos Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais[3].

Aliás, esta é a ponderação exarada pelo ministro Marco Aurélio nos autos do HC 86.834/SP, cuja ementa é a seguinte, verbis:

 

COMPETÊNCIA - HABEAS CORPUS - DEFINIÇÃO. A competência para o julgamento do habeas corpus é definida pelos envolvidos - paciente e impetrante. COMPETÊNCIA - HABEAS CORPUS - ATO DE TURMA RECURSAL. Estando os integrantes das turmas recursais dos juizados especiais submetidos, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, à jurisdição do tribunal de justiça ou do tribunal regional federal, incumbe a cada qual, conforme o caso, julgar os habeas impetrados contra ato que tenham praticado. (...). STF (HC 86834 / SP - Relator: Min. MARCO AURÉLIO, j. 23/08/2006; Órgão Julgador: Tribunal Pleno).

 

3 – A ausência de razoabilidade. Com a devida vênia, entendo que a competência do STF para julgamento dos remédios heróicos de atos praticados por integrante de Turma Recursal ofende ao princípio constitucional implícito da razoabilidade, bem como ao princípio da celeridade, um dos corolários que norteia os juizados especiais criminais e que vem explícito no art. 62, da Lei 9099/95.

 

É irrazoável, o STF, com apenas onze ministros, ser a sede única nacional para processo e julgamento de cada habeas corpus impetrado contra ato de juiz de Turma Recursal de toda a nação.

 

Penso que nosso maior tribunal deva se preocupar com temas mais relevantes. Lembro que a tônica dos juizados se cinge ao julgamento de questões menores e que demandam menor aprofundamento técnico dos julgadores. Impunha-se que os ministros atulhados de processos de grau de dificuldade imenso, ativessem-se a estes, eliminando aqueloutros de ínfima complexidade.

 

Ainda que o tema sub examen verse o direito à liberdade de locomoção, os tribunais estaduais e os tribunais regionais federais atenderão o pleito em lapso temporal mais exíguo. Equivale dizer, em harmonia com a celeridade propagada pela Lei 9099/95.

 

Ademais, pela mesma via, a parte inconformada poderá chegar ao STF, via habeas corpus, depois de percorrer o STJ, bastando sua impetração após o TJ ou TRF a que corresponda a Turma Recursal. Lembre-se que em nosso país, existe a possibilidade de se discutir em quatro instâncias distintas – 1º grau, TJ ou TRF, STJ e STF – um tema de natureza constitucional.

 

Quando a questão chegar via recurso extraordinário para decidir sobre decisão que contraria dispositivo da Constituição, para declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, para julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição ou para julgar válida lei local contestada em face de lei federal, por certo a expressão máxima da Corte se mostrará imprescindível[4].

 

 

4 – O início do fim da Súmula 690 do STF. Felizmente, julgados recentes singram no sentido de retirar daquela corte a competência para o julgamento dos remédios constitucionais proferidos por integrantes de Turmas ou Colégios Recursais de Juizados Especiais.

 

É que o decisório firmado no HC 86.834/SP serviu de lastro e de inspiração para que no mês p.p. o STF se desse por incompetente e remetesse os autos para o TJSP julgar habeas corpus impetrado contra ato de juiz integrante de Turma Recursal Criminal paulista.

 

Estava em pauta a tipicidade do crime de porte de arma desmuniciada (Lei 9.437/97, art. 10). Depois de pedido de vista formulado pelo ministro Gilmar Mendes, passados quase três anos de tramitação, o plenário, por maioria, julgou prejudicado o julgamento do habeas corpus impetrado. No caso, o STF declinou de sua competência para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

A íntegra das ementas que retratam a evolução do pensamento dos ministros consta de informativos do STF até o decisório de fevereiro/08 é a seguinte:

 

Porte Ilegal de Arma e Ausência de Munição

O Tribunal iniciou julgamento de habeas corpus impetrado em favor de condenado pela prática do crime previsto no art. 10 da Lei 9.437/97 (porte ilegal de arma), no qual se pretende a nulidade da sentença, sob alegação de atipicidade da conduta, em razão de a arma portada estar desmuniciada. O Min. Carlos Britto, relator, denegou a segurança por entender, na linha do voto da Min. Ellen Gracie no julgamento do RHC 81057/SP (DJU de 29.4.2005), que o porte da arma, ainda que sem munição, configura o tipo penal em análise, que é crime de mera conduta e de perigo abstrato, sendo que o fato de estar desmuniciado o revólver não o desqualifica como arma, haja vista que a ofensividade de uma arma de fogo não está apenas na sua capacidade de disparar projéteis, mas também no seu potencial de intimidação. Ressaltou que os objetivos da Lei 9.437/97 foram o de impedir que a arma seja usada como instrumento de ataque, bem como de evitar que haja risco de constrangimento de quem possa se sentir ameaçado pelo sujeito portador do artefato, ocasionando sensação de insegurança coletiva, ante o descrédito na eficácia das próprias instituições juridicamente incumbidas de velar pela ordem pública e pela incolumidade das pessoas e de seus respectivos bens materiais (CF, art. 144). Asseverou, ademais, que ainda houve ponderação de valores por parte do legislador que, diante da empírica possibilidade de uso necessário da arma de fogo como instrumento de defesa e a desnecessidade de sua utilização ou o risco de ser esta descomedida, optou por desfavorecer a primeira hipótese. Em divergência, o Min. Sepúlveda Pertence concedeu a ordem, reiterando os fundamentos expendidos em seu voto no julgamento do referido RHC no sentido de ser atípica a conduta, já que, à luz dos princípios da lesividade e da ofensividade, a arma sem munição, ou sem possibilidade de pronto municiamento, é instrumento inidôneo para efetuar disparo, sendo, portanto, incapaz de gerar lesão efetiva ou potencial à incolumidade pública. Em seguida, após pedido de vista do Min. Carlos Velloso, o Tribunal, por unanimidade, concedeu a liminar até a decisão final. HC 85240/SP, rel. Min. Carlos Britto, 5.10.2005. (HC-85240)

 

Porte Ilegal de Arma e Ausência de Munição - 2

O Tribunal retomou julgamento de habeas corpus impetrado em favor de condenado pela prática do crime previsto no art. 10 da Lei 9.437/97 (porte ilegal de arma), no qual se pretende a nulidade da sentença, sob alegação de atipicidade da conduta, em razão de a arma portada estar desmuniciada - v. Informativo 404. O Min. Carlos Velloso, em voto-vista, seguiu a divergência iniciada pelo Min. Sepúlveda Pertence, que concedeu a ordem, reiterando os fundamentos expendidos em seu voto no julgamento do RHC 81057/SP (DJU de 29.4.2005), no sentido de ser atípica a conduta, já que, à luz dos princípios da lesividade e da ofensividade, a arma sem munição, ou sem possibilidade de pronto municiamento, é instrumento inidôneo para efetuar disparo, sendo, portanto, incapaz de gerar lesão efetiva ou potencial à incolumidade pública. Após os votos dos Ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa e Cezar Peluso, que também acompanhavam a divergência, o julgamento foi suspenso em virtude do pedido de vista do Min. Gilmar Mendes. HC 85240/SP, rel. Min. Carlos Britto, 30.11.2005. (HC-85240)

 

Porte Ilegal de Arma e Ausência de Munição - 3

 

O Tribunal, por votação majoritária, julgou prejudicado habeas corpus impetrado em favor de condenado pela prática do crime previsto no art. 10 da Lei 9.437/97 (porte ilegal de arma), no qual se pretende a nulidade da sentença, sob alegação de atipicidade da conduta, em razão de a arma portada estar desmuniciada, e declinou de sua competência para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo — v. Informativos 404 e 411. Considerou-se o julgamento do HC 86834/SP (j. em 23.8.2006), no qual o Tribunal, por maioria, firmou entendimento no sentido de que é incompetente para apreciar e julgar pedidos de habeas corpus impetrados contra atos de Turmas ou Colégios Recursais de Juizados Especiais. Vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Carlos Velloso e Joaquim Barbosa, que deferiram o pedido em assentada anterior. Reajustaram seus votos os Ministros Eros Grau e Cezar Peluso.

HC 85240/SP, rel. Min. Carlos Britto, 14.2.2008.  (HC-85240)



 

5 – Conclusão. Embora a discussão sobre a atipicidade da arma desmuniciada tenha permanecido entre os ministros da mais alta corte do país[5], em outra ponta, o STF não mais é competente para o processo e julgamento de habeas corpus impetrados contra atos de Turmas ou Colégios Recursais de Juizados Especiais. Equivale dizer, a Súmula 690 do STF está com os dias contados. 

 



[1] CF, Art. 105 - Compete ao Superior Tribunal de Justiça: (...) III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida;

[2] Súmula 640 do STF: "É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal.".

Súmula 203 do STJ: “Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais".

[3] A Constituição Federal em seu art. 96, III, define a competência dos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.

Preceitua, outrossim, no art. 108, I, alínea “a” que compete aos Tribunais Regionais Federais processar e julgar originariamente os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da união, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral:

[4] CF, art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta  Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.

[5] O voto condutor sobre a questão da atipicidade da arma desmuniciada foi proferido pelo ministro Sepúlveda Pertence no RHC 81.057 (Informativo 385 do STF). Balizou suas ponderações, fundamentalmente, na doutrina de Luiz Flávio Gomes e William Terra de Oliveira que na obra Lei das Armas de Fogo (RT, 2002).


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