261 - Formação no ensino médio com habilitação no magistério – Requisito mínimo para ser professor na educação infantil e no ensino médio até a quarta série – Análise da competência legislativa federal e do controle das prognoses legislativas

 

 

 

FERNANDO ANTÔNIO DE LIMA - Juiz de Direito
 

 

RESUMO: Muito se fala, hodiernamente, em “década da educação”. Nessa expressão, muitas metas exsurgem, entre as quais a de exigir que todo professor tenha curso superior. Provar-se-á, por meio de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, que essa exigência, feita por leis municipais, é inconstitucional, no tocante à educação infantil e ao ensino fundamental até a quarta série, por violar a competência legislativa da União, bem como o princípio da proporcionalidade, o qual propicia o controle das prognoses legislativas pela jurisdição constitucional.

 

PALAVRAS-CHAVE: Formação no ensino médio. Educação Infantil. Ensino Fundamental até a 4ª Série. Exigência. Leis municipais e estaduais. Curso Superior. Inconstitucionalidade. Competência Legislativa Federal. Princípio da Proporcionalidade. Controle das prognoses legislativas.

 

 

Introdução

 

Nos vários cantos do País, abrem-se concursos públicos para o preenchimento de cargo de professor, na educação infantil e no ensino fundamental da 1ª até a 4ª série.

 

Cada vez mais os governos exigem que esses cargos sejam ocupados por professores com curso superior.

 

A grande questão que se impõe é a seguinte: pode a Administração Pública negar o direito de participar desse concurso público àqueles que detêm, apenas, a formação em Nível Médio, embora com Habilitação na educação infantil e no ensino fundamental da 1ª até a 4ª série?

 

Trata-se de um problema que já está chegando ao Judiciário, havendo, inclusive, sentença favorável ao impetrante, reconhecendo que a restrição é descabida, sentença, essa, que será objeto de comentários mais adiante[1].

 

O óbice imposto pela administração, como se verá, contraria não apenas o disposto em leis federais, mas também princípios e dispositivos constitucionais.

 

O imbróglio se acentua, quando se descobre haver leis complementares municipais autorizando mencionada restrição, tentando conferir legitimidade aos editais que proíbem o acesso a tais cargos por pessoas com formação no ensino médio.

 

Analisar-se-á a legislação do Município de Santa Fé do Sul, Estado de São Paulo, a qual promoveu indevidamente essa restrição. Tal análise servirá de mote para todas as outras legislações municipais ou estaduais restritivas, para cuja declaração de inconstitucionalidade o intérprete poderá valer dos mesmos argumentos aqui desenvolvidos.

 

 

Criação de requisitos para o preenchimento de cargo de professor na educação infantil e no ensino fundamental até a 4ª série – Competência legislativa federal

 

Em concurso público realizado no início de 2007, a Prefeitura Municipal de Santa Fé do Sul, Estado de São Paulo, confeccionou um edital, mediante o qual quem tivesse cursado o ensino médio, mesmo com habilitação no magistério, não poderia realizar o concurso para o cargo de professor na educação infantil.

 

Esse ato administrativo tentou buscar lastro em duais leis complementares municipais, que impunham restrições semelhantes às do edital[2].

Assim, com base nessa legislação municipal, bem como no edital mencionado, aquele que possui formação em Nível Médio não poderia ocupar o cargo de professor na educação infantil.

 

Em sentido diametralmente oposto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), a qual estabelece os requisitos mínimos para que se possa exercer o magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, aceita, expressamente, a formação extraída do ensino médio, verbis:

 

Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal (grifos nossos).

 

Como se vê, as leis complementares municipais aludidas contrariaram o disposto na Lei Federal de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que exige, apenas, nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, ou – e isso alternadamente, é bom que se frise – habilitação em nível médio, na modalidade normal[3].

 

A questão, nesse sentido, merece uma olhada na Carta da República. Isso porque compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional[4].

 

Poderia, diante dessa norma constitucional, o Município legislar sobre tema da competência privativa da União?

 

É óbvio que não. Os vinte e nove incisos do art. 22 da Constituição trazem matérias da mais alta relevância, de tal modo que o constituinte houve por bem entregá-las ao mister legislativo da União. Trata-se, pois, de temas que devem ser versados por lei federal, conforme o entendimento de Alexandre de Moraes[5]:

 

A Constituição Federal prevê nos 29 incisos do art. 22 as matérias de competência privativa da União, definindo preceitos declaratórios e autorizativos da competência geral na legislação federal e demonstrando clara supremacia em relação aos demais entes federativos, em virtude da relevância das disposições.

 

Na competência privativa, a União não pode delegar a atividade legislatória para nenhum outro ente da Federação.

 

O que se admite, apenas, é que a mesma União, por meio de Lei Complementar Federal, autorize os Estados-membros a legislar sobre pontos específicos relacionados à matéria catalogada no art. 22 da Constituição Federal[6].

 

A questão já chegou ao Supremo Tribunal Federal, o qual declarou a inconstitucionalidade de lei estadual que versava sobre matéria da competência privativa da União, qual seja, a atividade legislatória sobre diretrizes e bases da educação nacional.

 

Nesse julgamento, a Lei Estadual n. 9.644/65, do Estado de São Paulo, exigia que a disciplina de educação artística, mesmo nas quatro primeiras séries do 1º grau, fosse ministrada por especialista.

 

Ora, a lei federal não fazia essa exigência, de modo que não competia ao legislador estadual se imiscuir em área para cuja atividade legislativa lhe faltava competência.

 

Em razão disso, em sede de controle abstrato, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade dessa lei estadual, por invadir o círculo restrito da competência legislativa federal, verbis[7]:

 

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL 9164/95. ESCOLA PÚBLICA ESTADUAL. ENSINO DE EDUCAÇÃO ARTÍSTICA. FORMAÇÃO ESPECÍFICA PARA O EXERCÍCIO DO MAGISTÉRIO. LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. INICIATIVA PARLAMENTAR. VÍCIO FORMAL. INOCORRÊNCIA.

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Iniciativa. Constituição Federal, artigo 22, XXIV. Competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional.

Legislação estadual. Magistério. Educação artística. Formação específica. Exigência não contida na Lei Federal 9394/96. Questão afeta à legalidade.

Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente em parte.

 

Ficou claro, portanto, para o Supremo Tribunal Federal, que uma lei estadual não poderia criar um elemento não contido em lei federal, no tocante às diretrizes e bases da educação nacional.

 

Em outras palavras, o legislador estadual não poderia exigir que o professor de educação artística fosse um especialista, se essa exigência não estava contida em lei federal.

 

Muito claro, a respeito, o voto proferido pelo Ministro Maurício Corrêa, Relator dessa Ação Direta de Inconstitucionalidade, verbis:

 

É da União a competência privativa para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, consoante dispõe o artigo 22, inciso XXIV, da Constituição de 1998 (grifo nosso), que recebeu as Leis federais 4024, de 20.12.61 e 5692, de 1.08.71, esta última alterada pela Lei 7044, de 18.10.82, todas versando sobre a matéria.

Está claro, portanto, que a norma impugnada, ao prescrever que o ensino de educação artística nas escolas públicas estaduais de 1º e 2º graus ‘deverá ser ministrado por professor com formação específica’, extrapolou a competência do Estado-membro, não simplesmente porque foi além do disposto na lei federal, mas por ter regulamentado matéria reservada à União (grifo nosso).

 

Em resumo, o Supremo Tribunal Federal deixou claro que a competência legislativa sobre diretrizes e bases da educação nacional é privativa da União.

Não se desconhece, contudo, que há precedente, na mesma Suprema Corte, segundo o qual o tema reclama a competência concorrente[8].

 

Mas, ainda que se admita essa tese, à União compete legislar sobre normas gerais[9], e aos Estados cabe suplementar essa competência federal[10].

 

Nesse precedente, inclusive, o Supremo Tribunal Federal, embora admitindo a competência concorrente, suspendeu a norma estadual que legislou sobre tema afeto a normas gerais, cuja atribuição impende ao legislador federal[11].

 

Diante disso, exigir requisito para preenchimento de cargo de professor adjunto não é matéria que diz respeito a normas gerais? O legislador municipal poderia imiscuir-se nesse tema, mormente estabelecendo requisitos que transcendem a esfera municipal?

 

Temos que não. Se entendermos que a competência constitucional é privativa, cabe à União legislar sobre o tema, tarefa deferida só excepcionalmente ao Estado-membro (e, ainda assim, desde que cumpridos rigorosos requisitos[12]).

 

Em tema de competência privativa, falece ao Município competência para legislar, dado o teor expresso do art. 22, parágrafo único, da Constituição Federal.

 

Se considerarmos que o tema é de competência concorrente, o Município, sim, possui competência legislativa suplementar, mas apenas para legislar sobre assuntos de interesse local[13].

 

Não cabe, portanto, a esse ente federativo editar normas gerais, sob pena de afrontar os dispositivos constitucionais que regulam a competência legislativa concorrente, que impõem à União, e somente à União, a possibilidade de editar normas gerais[14].

 

Como se vê, as leis complementares municipais já referidas obstaculizaram o acesso ao cargo de professor (na educação infantil)  àqueles que tivessem habilitação em nível médio.

 

O Município, no ponto, invadiu o espaço reservado à União, já que legislou sobre diretrizes e bases da educação nacional, tarefa, essa, privativa do legislador federal[15].

 

Extrapolou, ainda, o Município, a possibilidade de editar normas gerais, incumbência afeta apenas à União, no tocante à atividade legislativa concernente à educação, se entendermos que a matéria entra nos temas de competência legislativa concorrente[16].

 

Nessa ordem de idéias, as Leis Complementares n. 102 e 106, ao invadirem a competência legislativa da União, padecem, no ponto em que criaram requisitos não previstos na Lei Federal de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de manifesta inconstitucionalidade.

 

 

Leis Complementares Municipais Nº 102 e 106 – Ofensa ao princípio da proporcionalidade (razoabilidade ou devido processo legal substancial) – verificação das prognoses legislativas

 

Como se viu em linhas anteriores, as Lei Complementares Municipal nº 102, de 24 de novembro de 2005, e 106, de 29 de março de 2005, ambas extraídas do Município de Santa Fé do Sul, Estado de São Paulo, impedem àqueles com formação no Nível Médio prestar concurso público para o cargo de professor na educação infantil.

 

Tais leis invadiram a competência da União, o que, por si só, já serviria para imprimir a pecha da inconstitucionalidade a esses diplomas normativos municipais[17].

 

Mas a ousadia dessas leis complementares não parou por aí.

 

Ora, uma pessoa com curso em nível médio não possui a qualificação necessária para educar crianças de tenra idade? As restrições contidas nessas leis são razoáveis?

 

Pisamos, então, num dos terrenos mais férteis e fascinantes do atual desenvolvimento do nosso Direito Constitucional. Trata-se de saber se o Poder Judiciário pode controlar os atos emanados do Poder Legislativo, ou se esses atos são imunes ao controle judicial.

 

O grande problema é: a lei provém de maiorias, e as maiorias compõem-se de representantes democraticamente eleitos. Os Juízes, sem essa legitimação popular, poderiam invalidar uma decisão oriunda dos representantes do povo?

 

Entramos no campo profícuo do controle de constitucionalidade das leis, em que ganha relevo a jurisdição constitucional.

 

Não remanesce nenhuma dúvida de que qualquer Juiz, desde os de primeira instância até os Ministros do Supremo Tribunal Federal, possa controlar a constitucionalidade das leis.

 

Mas como obter a necessária legitimidade democrática à jurisdição constitucional?

 

Segundo a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, proposta por Häberle, não apenas os personagens formais (juízes, promotores, advogados) realizam a interpretação constitucional. Essa tarefa, em abono ao princípio democrático, é entregue também às ciências sociais e a todos os que compõem o tecido social[18].

 

Como se vê, encarada sob essa perspectiva, a jurisdição constitucional realiza o princípio democrático. Esse objetivo também é conseguido quando a jurisdição constitucional protege os direitos das minorias, sustenta Kelsen, de modo que ela exerce papel fundamental na consolidação da democracia moderna.

 

A jurisdição constitucional, portanto, associa-se à democracia, na medida em que protege as minorias. A vontade da maioria só prevalecerá legitimamente, se realizada dentro dos limites da legalidade. Por isso é que toda minoria tem interesse em provocar a jurisdição constitucional, para que esta diga se a maioria agiu dentro dos quadros da legalidade.

 

Conferindo-se à minoria a possibilidade de invocar a jurisdição constitucional, evita-se a ditadura da maioria, ditadura, essa, perigosa para a paz social[19].

 

Nesse sentido, a maioria dos países que adotam a jurisdição constitucional, embora reconheçam a democracia e a soberania popular como princípios básicos, prevêem limites aos órgãos de representação popular.  Esses órgãos estão obrigados a respeitar certos procedimentos, ainda que constituam tais órgãos a vontade majoritária. Com isso se reforça a democracia e se evitam conflitos capazes de abalar o próprio sistema[20].

 

A vontade da maioria, sem o freio imposto por limites e controles, pode desembocar em conflitos que extrapolam o âmbito constitucional. Daí por que se faz necessária a intervenção da Corte Constitucional, com o quê se reduz o âmbito do conflito e, assim, consegue-se produzir segurança jurídica[21].

 

O problema, porém, como se disse, é que a jurisdição constitucional está imune a qualquer controle democrático, podendo, inclusive, anular uma decisão tomada por um órgão democraticamente eleito.

 

Para resolver isso, é preciso uma abertura hermenêutica, adotando-se a já examinada idéia de Härbele, da “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”[22].

 

Firmada a idéia de que a jurisdição constitucional pode exercer o controle de constitucionalidade das leis, o novo imbróglio que surge consiste em saber como esse controle será exercido.

 

O direito alemão nos dá a resposta.

 

Com efeito, a jurisdição constitucional efetua o controle das prognoses legislativas, identificando se os eventos futuros previstos pelo legislador irão efetivamente ocorrer e, assim, passar pelo filtro de constitucionalidade.

 

Nesse sentido, a legitimidade de uma lei submete-se à confirmação dos prognósticos legislativos.

 

Urge, porém, que a jurisdição constitucional disponha de métodos racionais para desempenhar a tarefa. Entre esses métodos, o mais importante é o “processo-modelo”, que é um método de que se valem as ciências sociais para antever acontecimentos futuros[23].

 

A Corte Constitucional alemã já controlou prognoses legislativas. O Estado da Baviera editou uma lei, por meio da qual a instalação de farmácias dependeria da permissão da autoridade administrativa. A prognose legislativa dizia respeito a evitar a proliferação de farmácias, com vistas a não trazer males à saúde pública.

 

Nesse caso, a Corte Constitucional alemã infirmou a prognose legislativa, declarando a inconstitucionalidade da lei restritiva, em abono à liberdade de profissão. Não era verdade que a ausência de permissão da autoridade administrativa iria facilitar a proliferação de farmácias, já que a instalação destas reclama um alto custo financeiro[24].

 

Adaptemos a teoria alemã às nossas idiossincrasias: as Leis Complementares Municipais contestadas desejavam, deveras, contribuir para a educação infantil? Uma pessoa com Habilitação para o exercício do Magistério, embora com formação no Nível Médio, não teria condições intelectuais que a permitissem educar crianças de tenra idade?  O legislador federal não estaria mais apto a dizer quais os requisitos mínimos para o exercício da função de professor em nível de educação infantil?

 

A prognose de que se valeu o legislador municipal não foi correta.  Mostrou-se irrazoável, desproporcional, inadequada e desnecessária.

 

Pisamos, novamente, em um outro terreno, não menos fascinante. Como controlar as prognoses legislativas? Como dizer que o legislador agiu, ou não, segundo os critérios da justa razão?

 

Aí entramos no campo do vício de constitucionalidade substancial decorrente do excesso de poder legislativo.

 

Nessa seara, é preciso verificar a compatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos, ou a afronta ao princípio da proporcionalidade (adequação e necessidade)[25].

 

Segundo a Corte Constitucional alemã, o princípio da proporcionalidade fundamenta-se nos direitos fundamentais e no Estado de Direito[26].

 

O princípio se manifesta em várias decisões do Supremo Tribunal Federal. Assim, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade de uma taxa desmedida, que afrontava o direito de propriedade[27].

 

Em outro caso, foi editado o art. 48 do Decreto-lei n. 314, de 1967 (Lei da Segurança Nacional). Esse dispositivo estipulava que o acusado de crime contra a segurança nacional estava proibido de desempenhar qualquer atividade profissional ou privada. O Supremo declarou a inconstitucionalidade do preceptivo, de modo que a restrição era desproporcional, afrontosa ao direito à vida, já que impossibilitava a pessoa de exercer o trabalho e, com isso, obter os meios para a própria subsistência[28].

 

Por seu turno, para o Supremo Tribunal Federal, o legislador ordinário, ao regulamentar a capacidade, no que se refere à liberdade de trabalho, deve agir com razoabilidade[29].

 

Em outro caso interessante, tivemos a Lei n. 8.713, de 1993, a qual, no art. 5º, previa restrições a partidos pequenos[30].

 

O Supremo Tribunal Federal, então, entendeu que a lei, no ponto, era inconstitucional, já que a restrição com base em fatos passados ofendia o devido processo legal substancial, ou o princípio da proporcionalidade, previsto no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal[31].

 

A manifestação do excesso de poder legislativo percebe-se na violação ao princípio da proporcionalidade, como se vê dos precedentes acima mencionados.

 

O princípio da proporcionalidade traduz-se num princípio constitucional implícito, no direito alemão, e num princípio constitucional expresso, no direito português, aqui também chamado de princípio da proibição do excesso[32].

 

Inúmeras outras hipóteses de violação legislativa ao princípio da proporcionalidade podem ser colhidas da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

 

Com efeito, a Lei n. 383, de 4-12-1980, do Estado do Rio de Janeiro, elevava substancialmente o valor da taxa judiciária. Sabe-se que a taxa tem de servir de contraprestação à atuação dos órgãos da justiça, caso contrário será irrazoável, logo, inconstitucional[33].

 

Em outra situação, o pai presumido recusou-se a realizar o exame de DNA, em ação proposta por terceiro, para reconhecer a paternidade deste e afastar a do pai presumido. O Supremo decidiu haver ofensa ao princípio da proporcionalidade, já que havia outros meios de prova, como um laudo particular, já juntado aos autos, em que se analisava o DNA do autor, do menor e da mãe deste[34].

 

Todos esses precedentes apontam que o princípio da proporcionalidade encontra grande prestígio na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

 

Assim, toda lei, para não ser tida por inconstitucional, deve observar esse princípio, que, no direito americano, recebe o nome de princípio da razoabilidade ou do devido processo legal substancial.

 

Mas como descobrir se uma lei viola ou não esse comando?

Para responder à questão, é preciso investigar os subprincípios que compõem o princípio da proporcionalidade.

 

O primeiro deles é a adequação. O intérprete deve perguntar: as medidas interventivas adotadas são aptas a atingir os objetivos pretendidos?

 

O segundo, a necessidade: escolheram-se os meios menos lesivos aos direitos fundamentais?

 

O terceiro, por fim: a proporcionalidade em sentido estrito[35].

Valemo-nos desses subprincípios, para verificar a constitucionalidade das leis complementares municipais, aqui tantas vezes referidas.

 

Ora, tais leis exigem, para ser professor na educação básica, o curso superior, não bastando o Curso Normal em nível médio.

 

Deveras, tais leis parecem passar pelo teste da adequação, já que os meios (exigência de curso superior) são aptos a atingir a finalidade desejada (formação para o ensino na educação infantil).

 

No entanto, essas leis não conseguem atravessar o filtro da necessidade, já que escolhem os meios mais lesivos aos direitos fundamentais, para aprovar os candidatos aptos a exercer o cargo de professor na educação infantil.

 

Isso porque ferem os direitos fundamentais à liberdade de profissão[36] daqueles que detêm o Curso Normal em Nível Médio.

 

Ora, a formação em Nível Médio serve para que uma pessoa exerça o cargo de professor na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental.

 

Nessa hipótese, o educador trabalhará no aperfeiçoamento intelectual e moral de crianças de tenra idade, o que não reclama, por exemplo, a mesma formação exigida para um professor universitário.

 

As leis complementares municipais, portanto, feriram direitos individuais, já que usaram dos meios mais lesivos para atingir um certo desiderato, quando, na verdade, dispunham de meios menos lesivos para conseguirem o mesmo objetivo.

 

Correta, no ponto, a Lei Federal n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a qual exige no mínimo, para a formação de docentes na educação infantil, o Curso em nível médio, ou qualquer outro curso em nível superior[37].

 

Em razão disso, as Leis Complementares Municipais nº 102 e 106 padecem de insuperável inconstitucionalidade, no tocante aos requisitos para o exercício do cargo de professor na educação infantil e no ensino fundamental até a quarta série, por ofensa patente ao princípio da proporcionalidade, no que diz respeito ao critério da necessidade.

 

 

Precedente no Judiciário paulista – Curso normal em nível médio – Formação mínima exigida para professor na educação básica

 

A 9ª Vara da Fazenda Pública, comarca da Capital - São Paulo, já decidiu um caso muito semelhante a este aqui discutido. Uma pessoa, portadora de diploma de curso normal em nível médio, pretendia prestar concurso estadual para o preenchimento de cargo de professor de educação básica.

 

O Estado, porém, não aceitou a inscrição, sob o argumento de que estávamos na “década da educação”, em que se exigiria dos professores a melhor qualificação possível.  

 

O Centro do Professorado Paulista impetrou mandado de segurança coletivo, contra o ato ilegal do Poder Público estadual. Argumentou que a Lei Complementar Estadual n. 836/97 e a Lei n. 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) estabelecem requisitos alternativos: diploma de curso superior, licenciatura de graduação plena ou curso normal em nível médio.

 

O d. Juiz aceitou a argumentação, vindo a deferir a liminar e, depois, a confirmá-las, por sentença (processo nº 583.53.2005.017545-3), verbis:

 

No mérito, cremos que a razão está com o impetrante. A Lei 9394/96 fixou, como condição para atingir o cargo de professor de nível fundamental, nas quatro primeiras séries e na educação infantil, o diploma de curso superior ou a formação em nível médio, na modalidade normal. A Lei Complementar 836/97, para professor educação básica I, estipula como exigência ter o diploma de curso superior, licenciatura de graduação plena ou curso normal em nível médio. Ora, se a lei estabelece condições alternativas, não cabe à Administração cercear o seu alcance por critérios ditos discricionários. Sua discricionariedade esbarrará sempre na legalidade. Admitida a formação em nível médio, não pode a autoridade coatora, a pretexto de melhorar a qualidade do quadro docente do Estado, excluir aqueles que, legalmente, têm o direito de concorrer às vagas postas em concurso.

(...)

Se a lei objetivasse apenas dar um prazo para que todos os possuidores de titulação de nível médio (normal) atingissem formação superior, tal medida deveria ter ficado explicitamente inserida no texto ou mesmo em disposição transitória. Não foi o caso. Por ora, os requisitos do edital de concurso para professor educação básica I, voltado às primeiras séries do ensino fundamental, não pode excluir do certame os possuidores de formação de nível médio.

Em face do exposto, julgo procedente a ação e concedo a segurança para que todos os docentes com titulação média (normal) possam continuar a prestar o concurso, confirmando-se a liminar de 9 de agosto deste ano.

 

Em resumo, basta que o candidato possua a formação de nível médio, com habilitação na educação infantil e no ensino fundamental até a quarta série, para que possa concorrer ao cargo de professor, relacionado a essas funções.

 

 

Esclarecimento sobre pareceres e resolução da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CEB/CNE) – Formação mínima dos docentes da educação infantil e do ensino fundamental até 4ª série



O presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, diante de matérias publicadas na imprensa, prestou, no dia 14 de agosto de 2003, relevantes esclarecimentos.

 

Segundo essa autoridade, o art. 62 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96) estabelece os requisitos mínimos para que o docente possa atuar na educação infantil e nos quatro anos iniciais do ensino fundamental, verbis: “Os pareceres apenas reconhecem o que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional afirma, no seu artigo 62, isto é, que o ensino normal médio é admitido como formação mínima (grifo nosso)”.

 

Por seu turno, a Resolução CEB/CNE 03/97, no seu artigo 5º, determinou aos sistemas de ensino que envidassem esforços para promover a qualificação dos docentes, inclusive com a implementação de programas destinados à formação, em nível superior, desses mesmos docentes[38].

 

Para reforçar esse objetivo, a mencionada resolução previu, no art. 6º, inciso V, que a remuneração dos docentes com formação superior seria 50% maior do que a dos docentes sem essa formação[39].

 

Em razão disso, a Lei n. 10.172 de 9/12/2001[40] determinou o cumprimento de algumas metas, no que se refere à valorização do magistério e à formação dos professores.

 

Entre essas metas, consta a que exige, mediante esforço concentrado dos entes federativos, que pelo menos 70% dos professores da educação infantil e do ensino fundamental (em todas as modalidades) tenham formação específica de nível superior, de licenciatura plena em instituições qualificadas, no prazo de dez anos, prazo, esse, que se esgotará no ano 2011[41].

É certo que o art. 87, §4º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96) determinava que os docentes, até o fim da década da educação (ou seja, até 2007), deveriam ter curso superior ou treinamento em serviço.

Mas a Lei nº 10.172, de 9/12/2001, editada sob bases mais realistas, revogou tacitamente o art. 87, §4º, da Lei nº 9.394/696.  Isso porque determinou que, em até dez anos (agora, o prazo se esgota em 2011), 70% dos docentes deveriam ter curso superior.[42].

Com essa nova lei, foi expulso do ordenamento jurídico o art. 87, §4º, da Lei nº 9.394/696, preceptivo, esse, cuja vigência já estaria por se esgotar neste ano de 2007, já que compunha a parte das disposições transitórias da lei.

 

Assim, a lei mais recente exige que, até o final de 2011, 70% dos docentes tenham curso superior, devendo os entes federativos envidar esforços para que se possa atingir esse desiderato.

 

Nesse sentido, permanece em vigor o art. 62 do corpo permanente da Lei nº 9.394/696, de modo que o Curso Normal em Nível Médio, com habilitação para a educação infantil e para o ensino fundamental até a 4ª série, habilita o docente a lecionar nesses ciclos da educação básica.

 

Logo, qualquer ato estatal que negue a essas pessoas o acesso ao cargo de professor na educação infantil e no ensino fundamental até a 4ª série padece de manifesta e insuperável inconstitucionalidade.

 

 

Bibliografia

 

MENDES, Gilmar. Controle de Constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial, p. 3. Revista Diálogo Jurídico Salvador, DAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, nº 3, 2001. Disponível em: <http: // www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 14 de fevereiro de 2007. Material da 5ª aula da Disciplina Direitos e Garantias Fundamentais, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Constitucional – UNISUL – IDP – REDE LFG.

 

_______ Limitações dos direitos fundamentais. Material da 6ª aula da Disciplina Direitos e Garantias Fundamentais, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Constitucional – UNISUL – IDP – REDE LFG.

 

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 6ª ed. São Paulo: Atlas: 1999.

 

SENTENÇA, 9ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA, SÃO PAULO-CAPITAL, PROCESSO Nº 583.53-2005-017545-3 – Sentença extraída do sítio: www.tj.sp.gov.br. Processos.

 

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:

ADI 1.399-8/SP, Rel. Maurício Corrêa, j. em 3/3/2004 – extraída do sítio: www.stf.gov.br – jurisprudência.

ADI, 3098/SP, Pleno, Rel. Carlos Velloso, j. Em 24/11/2005.

RE 18.331, Rel. Orozimbo Nonato, RF, 1953, v. 145, p. 164 e s., 1953.

HC 45.232, Relator Themístocles Cavalcanti, RTJ, nº 44, p. 322 (327-328).

REPRES. nº 930, Relator Rodrigues Alckimin – transcrição na Rep. 1.054, Relator Moreira Alves, RTJ 10/93 (967).

ADI 855, RTJ 152, p. 455 e s., Relator Moreira Alves.

REPRES., 1077, Relator Moreira Alves, RTJ, v. 12, p. 34 (58-59, decisão de 28 de março de 1984).

HC 76060, Relator Sepúlveda Pertence, Lex-STF, v. 237, p. 304 (309).



[1] 9ª Vara da Fazenda Pública, São Paulo, Capital, processo nº 583.53.2005.017545-3.

[2] Trata-se das Leis Complementares nº 102, de 24 de novembro de 2005, e 106, de 29 de março de 2005, ambas extraídas do Município de Santa Fé do Sul, Estado de São Paulo.

[3] A Lei Federal nº 9.394/96, como já se disse, exige, apenas, no art. 62, para a habilitação no cargo de professor na educação básica, os seguintes requisitos, os quais, conforme a redação da lei, são alternativos, verbis: “Art. 62. A formação de docentes para atuar na formação básica far-seá em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal.

[4] CF, art. 22, inciso XXIV.

[5] Alexandre de Moraes, Direito constitucional, p. 273, 6ª ed. Atlas: São Paulo.

[6] CF, art. 22, parágrafo único.

[7]STF, ADI 1.399-8/SP, Pleno, Relator Ministro Maurício Corrêa, j. em 3/3/2004.

[8] Interpretação resultante da combinação dos seguintes preceptivos contidos na Constituição Federal: art. 22, inciso XXIV, e art. 24, IX, §2º e §3º.

[9] CF, art. 24, §§1º e 2º.

[10] CF, art. 24, §3º.

[11] STF, ADI 3098/SP, Pleno, Relator Ministro Carlos Velloso, j. em 24/11/2005.

[12] Para o Estado-membro legislar sobre matéria atinente à competência privativa da União, é necessária a edição de Lei Complementar Federal que o autorize. Além disso, o Estado-membro só pode legislar sobre questões específicas, atinentes às suas peculiaridades. Disso se infere que o Município não tem nenhuma competência legislativa a respeito, não podendo, nem mesmo, legislar sobre suas peculiaridades locais. Esse, pois, é o conteúdo que se extrai do art. 22, parágrafo único, da Constituição Federal.

[13] CF, art. 30, inciso I.

[14] CF, art. 24, §1º.

[15] CF, art. 22, inciso XXIV.

[16] CF, art. 24, inciso XI, §§1º e 2º.

[17]Vide tópico: CRIAÇÃO DE REQUISITOS PARA O PREENCHIMENTO DE CARGO DE PROFESSOR ADJUNTO – COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO.

[18] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e ‘Procedimental’ da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, 1997, p. 1-10, apud  Gilmar Mendes, Controle de Constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial, p. 3. Revista Diálogo Jurídico Salvador, DAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, nº 3, 2001. Disponível em: <http: // www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 14 de fevereiro de 2007. Material da 5ª aula da Disciplina Direitos e Garantias Fundamentais, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Constitucional – UNISUL – IDP – REDE LFG.

[19] KELSEN, Hans. Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtabarkeit, VVDStRL5, 1928, p. 80-81, apud Gilmar Mendes, ob. cit., p. 5 e 6.

[20]GRIMM, Dieter. Verfassungserichtsbarkeit – Funkition und Funktionsgrenzen in demokratischem Staat, in Jus – Didaktik, Heft 4, Munique, 1977, p. 83 (95), apud Gilmar Mendes, ob. cit.,  p. 6.

[21]MENDES, Gilmar, ob. cit., p. 6 e 7.

[22]MENDES, Gilmar, ob. cit., p. 7.

[23] MENDES, Gilmar, ob. cit., p. 10.

[24] MENDES, Gilmar, ob. cit., p. 297 e 298.

[25] MENDES, Gilmar. Limitações dos direitos fundamentais. Material da 6ª aula da Disciplina Direitos e Garantias Fundamentais, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Constitucional – UNISUL – IDP – REDE LFG.

[26] MENDES, Gilmar, ob. cit., p. 299 e 300.

[27] STF, RE 18.331, Relator Orozimbo Nonato, RF, 1953, v. 145, p. 164 e s., 1953.

[28] STF, HC 45.232, Relator Themístocles Cavalcanti, RTJ, nº 44, p. 322 (327-328).

[29] STF, Repres. Nº 930, Relator Rodrigues Alckimin – transcrição na Rep. 1.054, Relator Moreira Alves, RTJ 10/93 (967).

[30] Entre essas restrições, constava que o partido deveria ter pelo menos 5% dos votos apurados na eleição de 1990 para a Câmara dos Deputados, sob pena de não poder lançar candidato a presidente da República.

[31] ADI 855, RTJ 152, p. 455 e s., Relator Moreira Alves.

[32] MENDES, Gilmar, ob. cit, p. 305 e 308.

[33] STF, Rp., 1077, Relator Moreira Alves, RTJ, v. 12, p. 34 (58-59, decisão de 28 de março de 1984).

[34] STF, HC 76060, Relator Sepúlveda Pertence, Lex-STF, v. 237, p. 304 (309).

[35] MENDES, Gilmar, ob. cit, p. 307 e 308.

[36] CF, art. 5º, inciso XIII.

[37] Vide art. 62 da lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

[38]Esclarecimentos prestados pelo presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, p. 3.

[39] Vide Esclarecimentos, p. 3.

[40] Essa lei dispõe sobre o Plano Nacional de Educação.

[41] Vide meta nº 18, estabelecida pela Lei nº 10.172, de 9/12/2001.

[42] Meta nº 18, constante do capítulo “Formação dos professores e valorização do magistério”, da Lei nº 10.172, de 9/12/2001.



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