260 - Uso de algemas: Súmula Vinculante 11 e princípio da proporcionalidade
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THIAGO BALDANI GOMES DE FILIPPO – Juiz de Direito |
SUMÁRIO: Introdução; 1. Emenda Constitucional 45 e súmulas vinculantes em geral; 2. Súmula vinculante n. 11: embasamento e abordagem prática; 3. Principio da proporcionalidade: origem e aplicação; 4. Súmula vinculante n. 11 e proporcionalidade: tentativa de estabelecimento de critérios; Considerações finais.
RESUMO: Este trabalho refere-se à utilização de algemas. Após breve abordagem sobre a Emenda Constitucional n. 45 e as súmulas vinculantes, passa-se a discorrer sobre a Súmula Vinculante n. 11 e interpretá-la à luz do princípio da proporcionalidade. Ao final, procura-se estabelecer critérios um pouco mais seguros para sua aplicação.
ABSTRACT: This work concerns the use of hand cups. After brief consideration about Constitutional Amendment 45 and binding decisions, it considers Binding Decision 11 and its interpretation according to the principle of proportionality. At the end, it is aimed to establish safer criteria for its application.
PALAVRAS-CHAVE: Súmula vinculante. Princípio da Proporcionalidade. Critérios. Aplicação.
KEY WORDS: Binding decision. Principle of proportionality. Criteria. Application.
Introdução
No dia 07 de agosto de 2008, no julgamento do HC 91952, o Supremo Tribunal Federal declarou nula a condenação de Antônio Sergio da Silva pelo Tribunal do Júri da Comarca de Laranjal Paulista, no Estado de São Paulo, pelo fato de ele ter mantido algemado durante o julgamento. No entender dos Ministros, o uso de algemas não se justificou naquele caso. Desse julgamento adveio a Súmula Vinculante n. 11, aprovada aos 13 de agosto de 2008, coincidentemente, dois dias após atitude ostensiva da Polícia Federal, que se valeu de algemas para prender cerca de 30 pessoas no Estado do Mato Grosso e em outros.
Pelo teor da súmula aprovada, confirmando tendência da Corte Suprema, a utilização de algemas apenas pode ocorrer em situações excepcionais, expressamente previstas.
No presente trabalho, procura-se abordar aludida súmula, cotejando-a com o princípio da proporcionalidade, para se tentar estabelecer critérios mais seguros para sua aplicação. Ao final, conclui-se que o sopesamento é imprescindível nessas hipóteses, devendo a autoridade decidir, diante das vicissitudes do caso que se lhe apresenta, qual a solução mais consentânea com a ordem constitucional, nunca perdendo de vista os fundamentos da regra, tampouco os interesses maiores da sociedade.
1. Emenda Constitucional 45 e súmulas vinculantes em geral
A Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, conhecida como “Reforma do Judiciário” trouxe importantes modificações no Texto Constitucional.
Várias foram as alterações. Dentre elas, destacam-se: determinação expressa da “razoável duração do processo”; equivalência às emendas constitucionais dos tratados que versem sobre direitos humanos, desde que obedeçam ao mesmo trâmite dessas emendas; modificação dos critérios de ingresso nas carreiras da Magistratura e do Ministério Público, exigindo-se do bacharel três anos de atividade jurídica; critérios mais concretos para a aferição da promoção por merecimento; determinação de que a atividade jurisdicional seja ininterrupta, vedando-se férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau; proibição de que os juízes exerçam a advocacia perante o juízo ou tribunal que se afastaram, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo, quer seja por exoneração ou aposentadoria (regra da “quarentena”); criação do Conselho Nacional de Justiça; ampliação da competência da Justiça do Trabalho; criação da súmula vinculante, entre outras modificações.
Especificamente, no tocante às súmulas vinculantes, esclarecem Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gonet (2008, p. 965):
O precedente vinculativo, que se caracteriza pelo fato de a decisão de um alto tribunal ser obrigatória, como norma, para os tribunais inferiores, tem as nações anglo-americanas, a exemplo da Inglaterra, Canadá e Estados Unidos, como reputado ambiente natural, por serem eles de direito de criação eminentemente judicial
Na realidade do sistema jurídico dos Estados Unidos, Roland Sèroussi (2001, p. 110) faz uma distinção entre precedentes absolutos (binding precedents) e precedentes relativos (persuasive precedents):
Os binding precedents, cuja autoridade é total, implicam: o respeito de um tribunal às suas próprias decisões; o respeito às decisões das jurisdições superiores pelos tribunais inferiores da mesma alçada; o respeito pelos juízos do Estado, em matéria de direito federal, às decisões judiciárias que emanam das jurisdições federais. Os persuasive precedents só têm autoridade reduzida, secundária, situando-se mais no plano da moral: um tribunal pode não seguir uma decisão tomada por um juízo que lhe é inferior; um tribunal de um Estado tem o direito de não seguir a decisão tomada por um tribunal de categoria equivalente que pertence a um outro Estado.
Assim, haurida dos binding precedentes, embora de forma pouco mais tímida, as súmulas vinculantes advieram ao ordenamento jurídico pátrio, sendo veiculadas na Lei Maior, em seu art. 103-A, dispositivo que exige requisitos de forma e de fundo para sua elaboração e validade.
Desse modo, nos termos do mencionado dispositivo, ela deverá ser aprovada por maioria qualificada de 2/3 dos votos do Supremo Tribunal Federal (8 Ministros), havendo de incidir sobre matéria constitucional que tenha sido objeto de decisões reiteradas pelo tribunal.
Exige o texto constitucional, ainda, que, para a validade da súmula, ela seja publicada na imprensa oficial. Procura-se assegurar o conhecimento do entendimento sumulado, assim como ocorre com as leis.
Determina o parágrafo 1º do artigo 103-A que “a súmula terá por objetivo a validade, a interpretação, e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre os órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”.
Estão abrangidas, assim, as questões atuais sobre interpretação das normas constitucionais ou o cotejo destas com normas infraconstitucionais.
Exige-se, ainda, reiteradas decisões sobre matéria constitucional, ou seja, que a matéria seja objeto de outras discussões na Suprema Corte, impedindo-se que a súmula retire todo o seu fundamento de uma única decisão, mesmo que oriunda do Pleno.
O parágrafo 2º do artigo 103-A, da Constituição, regulamentado pela Lei n. 11.417, de 19/12/2006, dispõe que a aprovação, revisão ou cancelamento da súmula podem ser provocados por aqueles que têm legitimidade para o oferecimento de ação direta de inconstitucionalidade, cujo rol encontra-se no artigo 103, da Lei Maior.
Finalmente, o parágrafo 3º do mesmo artigo dispõe sobre o cabimento de reclamação direta ao Supremo Tribunal Federal contra ato, judicial ou administrativo, que tenha contrariado o teor da súmula. A conseqüência será a nulidade do ato administrativo ou cassação da decisão judicial e a determinação que outra seja proferida, sem se chocar contra o entendimento sumulado, que traça os próprios limites objetivos da súmula, não se desconhecendo a necessidade de se proceder às eventuais distinções (distinguishing) na aplicação.
2. Súmula Vinculante n. 11: embasamento e abordagem prática
O Direito Brasileiro pouco disciplinava acerca do uso das algemas. O artigo 199, da Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execuções Penais), determina, de forma recatada, que “o emprego será disciplinado por decreto federal”. Por seu turno, o artigo 284, do Código de Processo Penal, apesar de não fazer referência expressa às algemas, podia ser utilizado como parâmetro para seu emprego. Determina, literalmente, que “não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”. Outra regra tímida extrai-se do Código de Processo Penal Militar (Decreto-lei 001.002/1969), ao dispor, em seu artigo 234, parágrafo 1º, que “o emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga, ou de agressão da parte do preso...”.
Apenas muito recentemente foi editada a Lei n. 11.689/2008, lei alteradora do procedimento do Júri, estatuiu, no artigo 474, parágrafo 3º, do Código de Processo Penal que “não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”.
Com relação a este último dispositivo, escrevem Luís Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2008, p. 183):
A manutenção do réu algemado é cena capaz de influir no espírito do julgador leigo. Há situações, aliás, em que se verifica uma certa compaixão do jurado com a figura do réu que, cabisbaixo e por vezes choroso, ingressa em plenário imobilizado pelas algemas. O uso de algemas no plenário é tão controvertido quanto o chamado banco dos réus. Não deveria ser utilizada essa locução. Os jurados podem ser sugestionados com esse posicionamento. A rigor, nem de réu o acusado deveria ser chamado, sob pena de se violar o princípio da presunção de inocência. A utilização do uniforme cedido pelo estabelecimento prisional é outra situação complicada. A presença de policiais ao lado do acusado, por si só, já pode ensejar a antecipação de um veredicto condenatório, sem mencionar no inadmissível vexame acarretado ao réu com tão incômoda presença. O correto é evitar qualquer tipo de pré-julgamento. Quanto mais isenta for a forma de apresentação do acusado, tanto melhor. O bom senso e a presunção de inocência regerão cada situação concreta. De qualquer modo, quando a situação concreta exige providências enérgicas, o juiz deve tomá-las.
Nesse diapasão, na sessão plenária de 13 de agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante n. 11, durante o julgamento do HC 91952, que ensejou a anulação de um julgamento pelo Tribunal do Júri da Comarca de Laranjal Paulista/SP, pois entenderam os Ministros que não houve razões suficientes para a manutenção do réu algemado durante o julgamento.
A súmula, publicada na imprensa oficial aos 22 de agosto de 2008, possui a seguinte redação:
“Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
A Suprema Corte, à edição da súmula, fez referência às seguintes disposições legais: artigo 1º, inc. III e artigo 5º, incs. III, X e XLIX, todos da Constituição; artigo 350, do Código Penal; artigo 284, do Código de Processo Penal; artigo 234, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal Militar e artigo 4º, alínea a, da Lei n. 4.898/1965.
Inequivocamente, a primeira conclusão que se extrai é a de que a utilização de algemas justifica-se apenas em situações excepcionais. A regra é sua não utilização, sob pena de constrangimento ilegal. Pelo cotejo dos dispositivos mencionados acima, tem-se que o Supremo Tribunal Federal, ao editar a súmula, fundamentou-a, basicamente, na dignidade da pessoa humana e no princípio da presunção (ou estado) de inocência.
A dignidade humana é, sabidamente, o valor-fonte de todo o ordenamento jurídico, sendo, por expressa disposição constitucional, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1º, inc. III, da Lei Maior. Possui, pois, conteúdo ético-jurídico. Conforme adverte Alexandre de Moraes:
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
Por outro giro, o princípio da presunção (estado) de inocência possui sua gênese constitucional no artigo 5º, inciso LVII, da Lei Maior, ao determinar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.
Conforme ensina Eugênio Pacelli de Oliveira (2004, p. 26):
Afirma-se freqüentemente em doutrina que o princípio da inocência, ou estado ou situação jurídica de inocente, impõe ao Estado a observância de duas regras específicas em relação ao acusado: uma de tratamento, segundo a qual o réu, em nenhum momento do iter persecutório, pode sofrer restrições pessoais fundadas exclusivamente na possibilidade de condenação, e a outra, de fundo probatório, a estabelecer que todos os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação.
E prossegue dizendo que (2004, p. 27):
...toda privação da liberdade antes do trânsito em julgado deva ostentar natureza cautelar, com a imposição de ordem judicial devidamente motivada. Em uma palavra, o estado de inocência (e não a presunção) proíbe a antecipação dos resultados finais do processo, isto é, a prisão, quando não fundada em razões de extrema necessidade, ligadas à tutela da efetividade do processo e/ou da própria realização da jurisdição penal.
A Súmula Vinculante de n. 11, apesar de aplicar-se, indistintamente, a réus processados ou pessoas já condenadas, como o caso de um preso definitivamente que comparece algemado a uma audiência admonitória qualquer, é fato que possui seu campo de aplicação bem mais amplo no primeiro caso. Por isso, justifica-se embasá-la, também, no princípio do estado de inocência, mandamento este que determina a excepcionalidade das prisões provisórias em geral (prisão temporária, prisão preventiva, prisão em flagrante, prisão decorrente de pronúncia e prisão advinda de sentença condenatória recorrível).
Ainda, é impositivo, invariavelmente, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, X, da CF) e que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (art. 5º, inc. XLIX, CF).
Conforme pensamento já existente antes da edição da súmula, as prisões provisórias somente se justificam em situações excepcionais, com o escopo de garantirem a efetividade do processo ou realização da jurisdição penal.
No entanto, mesmo diante dessa premissa, poucas não eram as vozes no sentido de que a utilização de algemas era conseqüência natural da prisão. Em outras palavras, se presentes os requisitos necessários à prisão (garantia da ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal; pressupostos estes que, apesar de constarem de dispositivo específico às prisões preventivas, em verdade, devem ser aplicados a todas as demais prisões provisórias, por se tratar de matéria atinente à “teoria geral” da matéria), presentes também estariam os requisitos bastantes à utilização de algemas.
Não é este o entendimento atual da Corte Suprema. Mesmo antes da edição de mencionada súmula, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se sobre o tema, em acórdão de lavra da Ministra Carmen Lúcia, nos seguintes termos:
O uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo (HC 89429-RO, j. 22.08.2006, DJ N. 24, 02.02.2007).
Para que haja, pois, a utilização de algemas, não basta estarem presentes os requisitos do artigo 312, do Código de Processo Penal. É preciso mais que isto.
Para a legitimidade de seu uso, é imprescindível um, pelo menos, dos seguintes pressupostos: (a) resistência à ordem de prisão; (b) fundado receio de fuga ou (c) perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros.
Caso contrário, a utilização ou manutenção do uso das algemas ensejará a “...responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. Portanto, a situação é de extrema gravidade, de tal modo que gera efeitos endoprocessuais (nulidade da prisão ou ato processual) e extraprocessuais (responsabilidade do agente, nas variadas searas, além da responsabilidade civil do Estado).
Em todo o caso, a decisão que determine ou mantenha a utilização de algemas deve, necessariamente, fundamentar a excepcionalidade. Não basta que faça referência, por exemplo, pura e simplesmente, à prisão provisória decretada como motivo bastante para a presunção de periculosidade do réu, pois, conforme mencionado acima, os requisitos não são coincidentes.
Tem-se, ainda, que, sob pena de desrespeito à súmula, é imprescindível que o agente ou autoridade fundamente de ofício, não havendo necessidade de provocação. Afinal, a súmula é vinculante por seus termos, impositiva aos órgãos do Poder Judiciário e Administração Pública. Assim, por hipótese, tão logo o preso ingresse algemado em uma sala de audiência, tem-se que é dever do magistrado, independentemente de pedido do advogado, fazer constar, de ofício, do termo de audiência, sua decisão. Ou determina a retirada das algemas, com menção, pura e simples, à Súmula Vinculante n. 11, ou, caso contrário, deve fundamentar a excepcionalidade da medida, mediante a subsunção do caso concreto a uma das hipóteses de admissibilidade do emprego de algemas, constantes do verbete da súmula.
3. Princípio da proporcionalidade: origem e aplicação
Quando se diz que algo é proporcional, diz-se que é adequado, razoável, harmônico, conforme, equânime. Por seu turno, o princípio da proporcionalidade é mandamento de aplicação dessa razoabilidade.
Conforme salienta Paulo Bonavides (2008, p. 393):
O princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeit) pretende, por conseguinte, instituir, como acentua Gentz, a relação entre fim e meio, confrontando o fim e o fundamento de uma intervenção com os efeitos desta para que se torne possível um controle do excesso (eine Übermasskontrolle).
Trata-se, pois, de princípio oriundo do Direito Administrativo, campo no qual, tradicionalmente, servia como limite para o exercício do poder de polícia. É princípio dos mais importantes, que deve ser utilizado na interpretação, inclusive, dos outros princípios, como critério norteador de sopesamento, quando se verifica colisão entre eles.
Para uma certa corrente, com predominância na doutrina alemã, ele decorre do Estado de Direito. Não aquele adstrito à estrita legalidade, consubstanciado em Estado formal de Direito, apogeu alcançado com a Constituição de Weimar, mas, sim, decorrente do Estado constitucional de Direito, cujo respeito aos direitos fundamentais é o centro de toda a ordem jurídica. Sobre ele, Paulo Bonavides esclarece (2008, p. 399):
Foi esse segundo Estado de Direito que fez nascer, após a conflagração de 1939-1945, o princípio constitucional da proporcionalidade, dele derivado. Transverteu-se em princípio geral de direito, agora em emergência na crista de uma revolução constitucional do estilo daquela a que se referiu Cappelletti, relativa ao incremento e expansão sem precedentes do controle de constitucionalidade. Aliás, o controle de proporcionalidade é, de natureza, expressão mesma do controle de constitucionalidade
Para outra corrente, entretanto, o princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade) decorre do devido processo legal material (substancial due process). É o pensamento preponderante na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos. Assim, Chemerinsky ensina (2005, p. 523-524):
Substantive due process, as that phrase connotes, asks whether the government has an adequate reason for taking away a person’s life, liberty or property. In other words, substantive due process looks to whether there is a sufficient justification for the government´s action (tradução livre: devido processo substancial, como a frase sugere, procura investigar se o governo tem uma razão adequada para retirar a vida, liberdade ou propriedade de uma pessoa. Em outras palavras, devido processo substancial vai perquirir se há uma justificativa suficiente para a ação governamental)
De todo o modo, o princípio da proporcionalidade apresenta como seus corolários os princípios da (a) adequação: a norma deve ser adequada para o fim que almeja; (b) necessidade: a norma deve buscar o meio menos gravoso à sociedade e (c) proporcionalidade, em sentido estrito: relação de custo-benefício da medida.
Passa-se, pois, abaixo, a analisar a Súmula Vinculante n. 11 à luz do princípio da proporcionalidade.
4. Súmula Vinculante n. 11 e proporcionalidade: tentativa de estabelecimento de critérios
Conforme mencionado acima, as normas, em geral, devem ser interpretadas, invariavelmente, com bom senso, buscando-se, sempre, a melhor solução possível para o deslinde da questão.
Não é por outra razão que Francesco Carrara, no início de sua obra clássica “Como aplicar e interpretar as leis”, escreveu, com maestria, que “a interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei”. Disse ainda que (2005, p. 78):
Não basta conhecer, ainda que profundamente, o direito para o saber traduzir em realidade, e há teóricos distintos que não são capazes desta elasticidade mental que os torne mestres no manejo dos princípios na arte de decidir. Existe ainda uma capacidade espiritual, um sentimento próprio, e assim se explica como, ao lado da técnica na aplicação, há também uma aplicação instintiva do direito, por via da qual, sem mais, o prático sente a decisão justa e a segue
No caso particular da Súmula Vinculante de n. 11, isto não é diferente.
Em primeiro lugar, tem-se não ser de todo adequado que súmulas vinculantes, devido a seu grau de baixa abstração e grande densidade normativa, valham-se de “expressões abertas”, como o são as cláusulas gerais e os conceitos legais indeterminados. Na hipótese da súmula em comento, ela se valeu das expressões “fundado receio” e “excepcionalidade”, expressões por demais amplas, que carecem de esforço interpretativo por parte do exegeta.
As leis são vinculantes. Porém, para elas, é adequada a utilização dessas expressões amplas, porque têm, em sua índole, a admissibilidade de o intérprete sopesá-las, delimitar seu campo de aplicação ou, até mesmo, dizer que ela não se aplica em tal ou qual caso. Isto não se afigura adequado em se tratando de súmulas.
Em outras palavras, as leis são ordens gerais e abstratas. Por sua vez, as súmulas devem ser ordens gerais e, na medida do possível, concretas.
Tomem-se como exemplos as Súmulas 05 e 12. A primeira estabelece que “a falta de defesa técnica no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. A segunda, por seu turno, rege que “a cobrança de taxa de matrícula nas universidades públicas viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal”.
Ora, estas súmulas nada têm de cláusulas abertas. Trata-se da regra do tudo ou nada, defendida por Dworkin. A subsunção é facilmente verificável, não necessitando o intérprete se valer do princípio da proporcionalidade, pois basta que verifique a hipótese claramente abrangida pela súmula.
No entanto, de forma diversa, não há como se aplicar ou deixar de aplicar a Súmula Vinculante n. 11, sem que o intérprete se utilize de juízo de ponderação, devido à margem de discricionariedade existente no texto sumulado, conferindo-lhe porção de liberdade para sua aplicação.
Entretanto, curioso notar que apesar da liberdade (aparente) concedida à autoridade para decidir sobre o uso, ou não, das algemas, a súmula estatui conseqüências seriíssimas: a responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente, a nulidade da prisão ou do ato processual, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
A interpretação, norteada pelo princípio da proporcionalidade, que assinala pela melhor solução, entretanto, é aquela que assinala que tais conseqüências advirão apenas se a autoridade deixar de fundamentar seu ato. Se justificar a “excepcionalidade, por escrito”, estará, por conseguinte, livre de qualquer responsabilidade, ainda que autoridade superior (o próprio Supremo Tribunal Federal, provocado por reclamação do interessado) entenda diferentemente e decida declarar nula a prisão ou ato processual.
Afora esta questão, a súmula em voga provoca várias outras celeumas. É cediço que a algema, pela redação da súmula e pelo teor dos dispositivos legais vigentes que timidamente tratam da matéria, tem de ser utilizada apenas excepcionalmente. De acordo com o verbete sumulado, ele somente se justificaria nos casos de (a) resistência; (b) fundado receio de fuga ou (c) perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros.
Todas estas hipóteses, longe de serem facilmente aferíveis na prática, necessitam ser interpretadas à luz da proporcionalidade.
No caso da resistência, mais comumente presente nas hipóteses de oposição à execução do ato de prisão, tem-se que se a utilização de algemas se justifica pela indispensabilidade do cumprimento do ato. Porém, uma vez que o sujeito esteja dominado, não mais se justifica o uso indiscriminado das algemas, somente porque ele resistiu ao ato de prisão. É a idéia da indispensabilidade da força, trazida pelo artigo 284, do Código de Processo Penal, que deve ser aplicado em cotejo com a Súmula Vinculante n. 11. Ademais, em tese, apenas a resistência ativa, isto é, aquela exercida mediante violência ou grave ameaça é que autoriza o uso de algemas. Não o autoriza a resistência passiva ou ghândica, assim compreendida como a mera oposição, sem violência ou ameaça, tal como fazer “corpo mole” para não ser preso.
O segundo caso refere-se ao “fundado receio de fuga”. Não basta, pois, que haja medo de que a pessoa fuja. Este receio deve ser fundado, isto é, deve haver motivos sérios a ensejar essa precaução. É o que ocorre nos casos de pessoa que já fugiu em outras oportunidades. É indispensável o exame, também, das características físicas do sujeito. Em princípio, velhos, mulheres e enfermos têm mais dificuldade de fugirem que presos de avantajada compleição física. Tudo vai depender do bom senso, a ser exercido caso a caso, sempre iluminado pelo princípio da proporcionalidade.
É imprescindível atentar-se para um fato: a situação de uma audiência é muito diferente do ato de prisão ou do transporte de presos. A ponderação manda que o “receio de fuga” de um mesmo sujeito seja menos intenso no primeiro caso e mais intenso no segundo. Nesse sentido, o juiz federal Sergio Moro, em entrevista concedida ao Jornal “O Estado de São Paulo”, em 21 de setembro de 2008, ao ser perguntado sobre a súmula em estudo, afirma:
A súmula foi ditada em um momento tenso politicamente, tanto que os operadores do Direito ainda têm grandes dúvidas sobre seu alcance. Eu concordo, por exemplo, quando o STF diz que o uso de algemas em audiências deve ser excepcional. Mas quando se trata de transporte ou ato de prisão, reputar excepcionalidade à utilização de algemas me parece um exagero. Essas são, normalmente, situações de risco. Acho que o Supremo deveria se pronunciar sobre essas questões de forma mais clara
A última hipótese de admissibilidade das algemas diz com o “perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros”. Pode-se vislumbrar a aplicação deste caso em virtude dos antecedentes do sujeito e ao fato de ele integrar organização criminosa. Se se trata de um multireincidente de crimes violentos, por exemplo, ou de um membro da cúpula de organização criminosa, o bom senso indica a necessidade do uso das algemas.
O bom senso deve indicar a melhor solução para o caso. Por certo, diante de certas hipóteses excepcionais, o uso das algemas é necessário, principalmente para a salvaguarda de direitos de terceiro e proteção de interesses da coletividade. Nas precisas palavras de Robert Alexy (2008, p. 357-358):
O fato de a liberdade que o Tribunal Constitucional Federal associa ao conceito de dignidade humana não ser uma liberdade ilimitada, mas uma liberdade de um “indivíduo referido e vinculado a uma comunidade”, não fundamenta nenhuma objeção contra a conexão entre dignidade humana e liberdade negativa. A posição do tribunal é resumida nas seguintes palavras: “o indivíduo tem que se conformar com as restrições à sua liberdade de ação, impostas pelo legislador com o objetivo de manter e fomentar a convivência social dentro dos limites daquilo que é razoavelmente exigível diante das circunstâncias e desde que a independência da pessoa seja preservada”. Essa fórmula, na qual claramente se vislumbra a máxima da proporcionalidade, não apenas diz que a liberdade é restringível, mas também que ela é restringível somente diante da presença de razões suficientes. Esse é exatamente o conteúdo do princípio da liberdade negativa, pois, enquanto princípio, ele não outorga uma permissão definitiva para fazer ou deixar de fazer tudo o que se quer; ele tão-somente sustenta que todos podem fazer ou deixar de fazer o que quiserem, desde que não existam razões suficientes (direitos de terceiros, interesses coletivos) que fundamentem uma restrição na liberdade negativa. Nesse sentido, o princípio da liberdade negativa permite considerar em toda sua plenitude a vinculação do indivíduo à sociedade.
Considerações finais
Diante do tema proposto, procurou-se enfocar a problemática do uso de algemas, mediante apontamentos na legislação existente no Brasil e, sobretudo, diante da recente e polêmica Súmula Vinculante n. 11. O objetivo foi analisá-la sob o aspecto prático, sem desprezar os substratos teóricos que a alicerçam. O presente trabalho teve por escopo analisar mencionado verbete à luz do princípio da proporcionalidade e, a partir desta premissa, tentar traçar critérios um pouco mais sólidos para a aplicação de seus mandamentos. É certo que tudo depende da análise do caso, nunca devendo a autoridade divorciar-se da aplicação dos alicerces da dignidade humana e, no que couber, do princípio do estado de inocência, com os necessários sopesamentos com o princípio da segurança coletiva, conforme os reclames do caso em tela.
Thiago Baldani Gomes De Filippo é Juiz de Direito no Estado de São Paulo; Aluno Regular do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro – Jacarezinho/PR; tfilippo@tj.sp.gov.br. |