257 - O sigilo telefônico e o crime via aparelho celular

 
ANA RAQUEL C. DOS SANTOS LINARD – Juíza de Direito
 

 

De acordo com a ANATEL, em janeiro de 2008, foi registrada a adição de 1,88 milhão de linhas de telefonia celular, numa expansão de cerca de 22% sobre o número registrado no mesmo mês do ano de 2007, sendo que a base de linhas em uso no país em janeiro/2008 somou 122,86 milhões, avançando sobre as 100,72 milhões de janeiro de 2007.[1]

 

Cento e vinte e dois milhões e oitocentos e sessenta mil acessos celulares móveis em uso no país é realmente um número espantoso e demonstra uma popularização do serviço de telefonia móvel, totalmente inimaginável quando de sua introdução no país, a cerca pouco mais de uma década.

 

Tamanho acesso, como seria de se esperar, também haveria de ensejar um aspecto negativo, mais especificamente no que se refere à utilização indevida do serviço para fins criminosos, no caso, para a consumação de crimes de ameaça, calúnia, injúria ou difamação, protegidos tais criminosos pela conduta equivocada de entender os dados telefônicos, em casos da espécie, como protegidos pelo mencionado sigilo constitucional.

Com efeito, o teor do inciso XII do artigo 5º. da Constituição Federal estabelece: XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.”

 Na abordagem que ora se pretende, resta claro que a Lei 9.296/96 não se mostra cabível de menção, uma vez que se destina a regulamentar a interceptação das comunicações telefônicas, objeto totalmente distinto do mencionado sigilo de dados telefônicos aqui tratado, o qual deveria ser considerado como direito relativo do usuário.

 

Explico. O argumento ora defendido é que nenhuma liberdade individual deve ser respeitada de forma absoluta, devendo ser possibilitado o acesso a determinados dados, considerados sigilosos, sempre que este mesmo sigilo esteja sendo utilizado como instrumento para práticas ilícitas e criminosas, de forma impune.

 

De fato, há que se diferenciar o sigilo que protege as interceptações telefônicas, o qual entendo absoluto e cuja quebra encontra-se devidamente regulamentada pela Lei 9.296/96, do sigilo relativo que envolve os dados telefônicos dos usuários, notadamente nome, endereço, número do acesso, data e horário da chamada, dentre outros aptos a identificar o responsável pelo acesso telefônico originador da chamada ou mensagem de cunho criminoso.

 

Englobar ambos os objetos dentro de um mesmo sigilo absoluto se mostra equivocado, para dizer o mínimo, quando permite e, pior, estimula a execução reiterada e impune da prática criminosa, deixando a vítima totalmente a mercê de seu algoz, com a agravante da impotência diante da situação verificada.

 

Este entendimento, que encontra respaldo igualmente nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, é reforçado pela jurisprudência do TJRS, sendo o voto proferido na Apelação Cível 70018276055, tendo como Relator o Des. MÁRIO ROCHA LOPES FILHO, exemplo maior dessa nova orientação que vem surgindo nos Tribunais em favor da defesa das vítimas de tais condutas que se norteiam pela covardia de seus adeptos:

 

“(...)O caso em liça apresenta contornos interessantes e não é muito comum nos Tribunais.

O autor é usuário de telefone celular proveniente de plano empresarial (Associação dos Médicos do Hospital São Lucas da PUCRS) firmado com a Claro. No entanto, em que pese ser o titular da linha, esta é utilizada por seu filho, Márcio Russomano Fernandes.

A partir de dezembro de 2005 passou a receber mensagens de texto de conteúdo ofensivo, com a intenção de denegrir o relacionamento entre seu filho e sua namorada, Renata Corbetta Tonin.

Sustenta que os “torpedos” são enviadas através da Home Page da requerida, o que impossibilita ao autor visualizar o número de telefone do remetente das mensagens.

Ao procurar uma solução extrajudicialmente foi informado pela requerida que as informações pretendidas somente poderiam ser fornecidas mediante ordem judicial. Por esta razão, o autor ajuizou a presente ação cautelar, pois de posse de tais informações poderá ajuizar as ações cíveis e criminais competentes.

Com efeito, a pretensão do apelante, conforme se deflui da inicial exibitória, constitui-se na obtenção, junto à Telet S/A, determinação do endereço IP individualizado para cada uma das mensagens recebidas, bem como o provedor utilizado  ou número do telefone que originou as referidas mensagens, que, segundo o autor da exibição, vem lhe causando sérios aborrecimentos.

Inicialmente, esclareço que, em questão dessa natureza, na qual os consumidores pleiteam informações de dados cadastrais pertinentes a usuários de linhas telefônicas, estavam sendo tratadas, por unanimidade, por esta Câmara, como hipótese de “quebra de sigilo telefônico”.

Assim, as irresignações advindas de situações fáticas emolduradas nesses parâmetros, não eram merecedoras de respaldo pelo signatário, pois não se tratavam de investigação criminal, de molde a autorizar a quebra do sigilo telefônico pleiteada.

No entanto, estou, neste momento mudando de orientação, tomando atitude pragmática, a fim de evitar prejuízos às partes.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, além de prever expressamente a tutela do sigilo das correspondências e comunicações telegráficas e telefônicas, instituiu a proteção contra as interceptações ilegais as comunicações e violação dos sigilos de dados, só permitindo a violação do sigilo de comunicações telefônicas nas hipóteses por si estabelecidas e na forma da legislação infraconstitucional específica.

No entanto, deve-se ressaltar que existe diferença entre a quebra de sigilo telefônico e a quebra de sigilo de dados telefônicos, pois enquanto a primeira trata de interceptação da comunicação, a segunda corresponde à obtenção de registros existentes na companhia telefônica sobre ligações já realizadas, dados cadastrais do assinante, data da chamada, horário, número do telefone chamado, duração do uso, valor da chamada, entre outros.

De fato, em se tratando de quebra de sigilo telefônico propriamente dito, o sigilo é absoluto, necessitando estar prevista nas hipóteses estabelecidas pela lei específica (Lei 9.296/96)  .

No entanto, na quebra de sigilo de registros pertinentes a chamadas pretéritas, a vedação é relativa, pois se trata de ordem judicial oriunda de competência diversa da criminal.

Tanto é possível a quebra de sigilo de dados telefônicos, que a própria  Resolução 85 da ANATEL prevê suas hipóteses.

Art. 17. A Prestadora é responsável pela inviolabilidade do sigilo das comunicações em toda a rede, exceto nos segmentos instalados nas dependências do imóvel indicado pelo Assinante.
Parágrafo Único. A Prestadora tem o dever de zelar pelo sigilo inerente ao STFC e pela confidencialidade quanto aos dados e informações, empregando meios e tecnologia que assegurem este direito dos Usuários.
Art. 18. A
Prestadora deve tornar disponíveis os recursos tecnológicos e facilidades necessários à suspensão de sigilo de telecomunicações, determinada por autoridade judiciária ou legalmente investida desses poderes, e manterá controle permanente de todos os casos, acompanhando a efetivação dessas determinações, e zelando para que elas sejam cumpridas, dentro dos estritos limites autorizados.
§ 1° Os recursos tecnológicos e facilidades de telecomunicações destinados a atender à determinação judicial, terão caráter oneroso.
§ 2° A Agência deve estabelecer as condições técnicas específicas para disponibilidade e uso dos recursos tecnológicos e demais facilidades referidas neste artigo, observadas as disposições constitucionais e legais que regem a matéria.
Art. 19. Não constitui quebra de sigilo a identificação, pelo Assinante chamado, do Assinante originador da chamada, quando este não opõe restrição à sua identificação.

 

De acordo com esta resolução, a alegação da apelada de que não possui ferramenta capaz de informar o nome ou endereço da pessoa que supostamente envia as mensagens ao aparelho celular do demandante, é infundada, pois as mensagens foram enviadas através da home page da própria demandada. Inclusive, em se tratando os referidos torpedos de serviço cobrado, estes podem ser levantados via log’s.

Por fim, a intimidade é inviolável enquanto o consumidor se negar a fornecer seus dados a alguém e desde que com isso não traga prejuízo à terceiros.

Assim, a decisão que determina a quebra do sigilo de dados devidamente fundamentada, não configura o fornecimento indevido de dados do assinante pela operadora.

 

Neste sentido já se pronunciou esta Corte:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. FORNECIMENTO DE ENDEREÇO DE CLIENTE POR EMPRESA DE TELEFONIA CELULAR. POSSIBILIDADE. ORDEM JUDICIAL. NECESSIDADE. 1. É possível a quebra do sigilo, para o fornecimento de endereço de cliente, por empresa de telefonia celular, mediante a apresentação de ordem judicial. 2. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70006481816, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Araken de Assis, Julgado em 13/08/2003)

 

O Desembargador Araken de Assis baseou sua decisão nos seguintes termos:

 

“Há relevância nos fundamentos do agravo. Em princípio, o órgão judiciário exigiu, talvez desnecessariamente, prova de que as empresas concessionárias do serviço (público) de telefonia celular não fornecem o endereço de seus clientes (fl. 12 dos traslados). Produzida a prova, houve o indeferimento, porque providência afeta à iniciativa da parte (fl. 14 dos traslados). Ora, a ponderação dos interesses envolvidos – acesso à efetiva tutela judiciária versus privacidade -, recomenda o acolhimento do pedido. Não pode o Estado, que proíbe a auto-tutela, negar à parte a quebra de eventual sigilo (e, principalmente, de dados em seu próprio poder, ou de empresa a quem concedeu a exploração, em caráter privado, de um serviço público) sempre que, com tal atitude, concretamente negará jurisdição. É o caso. Somente por ordem judicial as empresas indicarão o eventual endereço em seu poder. Logo, impõe-se a expedição de tal ordem.

 

Por outro lado, o receio de dano irreparável decorre do arquivamento do processo.”

 

Diante do exposto, acolho a preliminar de revelia da demandada e dou provimento ao apelo para determinar que a demandada forneça o endereço IP individualizado para cada uma das mensagens recebidas pelo autor, bem como o provedor utilizado ou número do telefone que originou as referidas mensagens.” (negrito e itálico nossos)

 

Vou mais além. Entendo, inclusive, que os dados em questão poderiam sofrer o mesmo tratamento das identificações dos veículos, sendo cediço que nenhum veículo ostenta a prerrogativa de transitar sem o devido emplacamento, o que ensejaria a conclusão de que não deveria haver mais disponibilização do serviço de ocultação da identificação da chamada – o que certamente acarretaria, por si só uma diminuição considerável dessa prática criminosa, podendo ser albergadas algumas exceções para o caso de agentes do Estado em serviço – como também da possibilidade de fornecimento de alguns dados a partir da digitação do número informado pelo aparelho receptor quando do recebimento da chamada/mensagem, tais como local de habilitação do acesso, data da habilitação, tipo de habilitação (pré ou pós pago), marca do celular, se existe queixa de roubo, etc., a exemplo das consultas facilmente realizadas através dos sites dos Departamentos Estaduais de Trânsito, pela mera informação da placa do veículo consultado.

 

A par da obtenção de tais dados, seria mais fácil ao prejudicado a adoção das medidas judiciais cabíveis, eis que dotado o pedido de maiores subsídios, podendo ser fornecidos os dados telefônicos mais específicos acerca do responsável pelo acesso utilizado na prática criminosa, mediante decisão judicial devidamente fundamentada, como determina o artigo 93, IX da CF/88, sendo certo ainda que eventuais abusos verificados teriam sua efetiva comprovação pela própria ação judicial aforada de má-fé e receberiam do Estado sua reprimenda devida e equivalente.

 

O que se percebe, hoje, é que o sigilo dos dados telefônicos defendido pelas operadoras tem-se prestado, muitas vezes, a acobertar pessoas inescrupulosas e mal intencionadas, bem como a proteger delinqüentes que se aproveitam do mesmo para promover suas ações maléficas sem sofrer qualquer risco de penalização, quando deveriam antes ser devidamente identificados e responsabilizados por suas ações criminosas, seja no âmbito cível como no criminal.

 

Certamente, a possibilidade de verificação mais facilitada de alguns dados telefônicos, bem como o fornecimento, mediante decisão judicial, dos dados mais específicos, sinalizaria aos delinqüentes que o tempo da impunidade se não acabou, estaria mais próximo de seu fim, fazendo com que os usuários que habilitassem acessos em seu nome procedessem com mais cuidado e cautela quando da alienação do aparelho e/ou acesso, de forma a se resguardar de eventuais responsabilidades no âmbito cível, situação que viria em benefício de toda a sociedade.

 

 

Ana Raquel Colares dos Santos Linard é juíza de Direito Titular do Juizado Especial Cível e Criminal de Juazeiro do Norte(CE)

 

Março, 2008.

 



[1] Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Tecnologia/0,,MUL305316-6174,00.html



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