254 - Inconstitucionalidade de lei que submete o direito social à educação à disponibilidade de recursos financeiros e ao limite de gastos com pessoal

 
FERNANDO ANTÔNIO DE LIMA – Juiz de Direito
 

 

Os governos, muitas vezes com a omissão dos juízes e dos legisladores, têm deixado, para segundo plano, os direitos sociais. O argumento é sempre o mesmo: falta de recursos orçamentários e limite de gastos com pessoal.

 

Analisarei, neste artigo, uma lei do Município de Ilha Solteira-SP. Essa lei permitiu um acréscimo aos vencimentos dos professores municipais, desde que o professor realizasse cursos e especializações. No entanto, esse mesmo diploma legislativo dispôs que referido acréscimo remuneratório só se efetivaria, na medida da disponibilidade de recursos financeiros e se não houvesse superação dos limites de gastos com pessoal.

 

É preciso verificar, em primeiro lugar, os contornos do direito social à educação e, dessa análise, abstrair a constitucionalidade de lei que submete esse direito à disponibilidade financeira e aos limites de gasto com pessoal.

 

Em primeiro lugar, urge vincar que o direito à educação compreende aquela parcela de interesses da população de se desgarrar da ignorância, da submissão cega aos ditames das elites e dos poderes constituídos.

 

Sem nenhuma dúvida, para que as pessoas gozem de uma educação de qualidade, com vistas à libertação dessas amarras, é preciso que os professores sejam bem remunerados. Não se pode falar em democracia, se existem enormes disparates entre a educação da classe média e alta e a educação da classe baixa, entre os professores que ensinam os alunos ricos e os professores que ensinam os alunos pobres.

 

Nesse sentido, a remuneração decente dos professores, mais do que direito fundamental desses profissionais, constitui condição indispensável a uma educação de qualidade, razão pela qual se insere no direito social à educação.

 

Fixada a idéia de que os vencimentos desses servidores públicos constituem um direito social, cumpre agora verificar os contornos éticos, filosóficos e jurídicos daquilo que se acostumou denominar segunda dimensão ou geração dos direitos humanos (ou seja, os direitos reivindicatórios, como saúde, educação, trabalho, moradia, lazer etc.).

 

Antes de tudo, urge deixar claro que os direitos sociais qualificam-se na órbita dos direitos fundamentais. Assim, não apenas os direitos individuais emolduram-se nas balizas das cláusulas pétreas; aqueloutros direitos também se encaixam nessa proteção absoluta, permeada no art. 60, parágrafo quarto, da Constituição Federal1.

 

Dessa maneira, a nova ordem constitucional, inaugurada em 1988, não mais compactua com a superada tradição liberal de conferir densidade normativa apenas aos direitos individuais. A dignidade da pessoa humana2, o objetivo fundamental de construir uma sociedade livre, justa e solidária3, tudo isso aponta para a necessidade de conferir intensa juridicidade aos direitos sociais.

 

Nessa ordem de idéias, não dá mais para falar em normas programáticas. Esperar que, no futuro, os programas sejam feitos, de acordo com a disponibilidade de recursos, significa fazer tábula rasa dos ditames constitucionais4. Os objetivos fundamentais da República não compactuam mais com a garantia apenas dos direitos de cunho liberal. É preciso, para reduzir as desigualdades sociais que insistem em impedir o verdadeiro crescimento deste País, dar atenção aos direitos encartados no art. 6º da Constituição Federal5.

 

A temática dos direitos humanos aqui no Brasil, nos anos 70 e 80, sofreu profunda mudança. Dos direitos exclusivamente liberais, ligados ao capital, passou-se a discutir as desigualdades sociais, os interesses das classes marginalizadas da população. As classes populares apropriaram-se do discurso dos direitos humanos. A guinada para os direitos sociais foi patente6.

 

Com efeito, a história dos direitos humanos, no Brasil, compreende três fases. De 1964 a 1975, discutiram-se os interesses dos presos políticos. De 1975 a 1979, as elucubrações giraram em torno da busca pela cidadania política. De 1979 em diante, a identificação dos direitos humanos com as classes marginais vem sendo crescente7.

 

A influência sobre a interpretação jurídica – dessa nova maneira de enxergar os direitos humanos – foi nítida. O Direito não é o que é, mas o que deve ser: a busca pela justiça, pela não-exploração social8.

 

Os pensadores antigos já faziam a distinção entre justiça comutativa e justiça distributiva. Aquela é a realizada na relação entre os indivíduos (relações contratuais liberais, por exemplo). Esta, por sua vez, é o direito que todos têm ao fundo comum, ou seja, a parcela, que cabe a cada indivíduo, sobre o todo. Aquela, como se vê, é uma relação entre partes; esta, uma relação entre partes e todo9.

 

Os direitos sociais enquadram-se no tema da justiça distributiva. A dificuldade consiste em descobrir como realizar a justiça distributiva. A distribuição dos recursos (pertencentes ao fundo comum) se baseará no mérito de cada um, no trabalho, na autoridade e poder?10.

 

Não existe dúvida de que saúde e educação constituem benefícios inescapáveis às classes trabalhadoras. A educação de boa qualidade traduz-se em fonte de acesso, a todos, aos bens comuns de uma comunidade. Logo, qualifica-se como algo essencial à ordem social democrática11.

 

Posta a idéia de que os direitos sociais têm profunda densidade normativa, além de constituírem mecanismo fundamental de acesso aos bens comuns, segue-se que qualquer lei que os submeta à disponibilidade orçamentária e limite de gastos com pessoal violará, flagrantemente, a Constituição Federal12.

 

Isso porque, como visto, os direitos sociais constituem cláusula pétrea. Relegá-los a segundo plano significa ofuscar os princípios constitucionais da máxima efetividade dos direitos fundamentais e da força normativa da Constituição. Significa destruir os pilares sobre que se levantou o edifício do texto constitucional. Significa olhar com amor aos interesses das classes favorecidas e enxergar com desprezo os direitos das classes marginalizadas. Significa, mais do que tudo, contribuir para as injustiças que, de séculos em séculos, pululam neste País e fazem, dele, o mais desigual e injusto do globo terrestre.

 

Ligamos a televisão e vimos aqueles economistas, muito bem pagos pelos grandes bancos, e vimos aqueles jornalistas, muito bem pagos pelas grandes empresas de comunicação, dizerem que o País precisa economizar, que é preciso fazer o ajuste estrutural, o corte nas verbas públicas. A serviço de quem se põem esses interesses? A serviço do povo brasileiro? Ou da miséria, da injustiça, da desfaçatez?13

 

Como se vê, qualquer lei ou ato administrativo, que submete a educação à disponibilidade financeira e ao limite de gastos com pessoal[1], entra nessa onda do ajuste estrutural, que tanto mal já fez a este País e a outras nações subdesenvolvidas. Nesse ponto, tal lei viola todos os princípios e dispositivos constitucionais, acima referidos, que dizem respeito ao direito social à educação.

 

Os juízes não podem temer em reconhecer a inconstitucionalidade de leis que contrastam com os objetivos fundamentais da República.

 

Isso porque a moderna hermenêutica jurídica exige, do jurista, que interprete todos os ramos do Direito, com base no Direito Constitucional. Hoje muito se fala em Direito Civil Constitucional, em Processo Penal Constitucional, em Direito Administrativo Constitucional etc.

 

A caminhada para chegar a essa evolução foi longa. O século XX percebeu a crise do positivismo jurídico. O Direito não poderia fechar-se às outras áreas do conhecimento. A filosofia, a sociologia, a psicologia deveriam auxiliar o juiz na prolação das decisões judiciais.

 

Foi assim que se notou que o intérprete não poderia mais restringir a atividade de aplicação do Direito no olhar apenas a legislação ordinária. Era preciso atentar-se para a Constituição, que é mais aberta e mais progressista, o que propicia o auxílio de outras áreas do conhecimento e, assim, uma maior aproximação da justiça.

 

Isso não significa o abandono da legislação ordinária e da dogmática jurídica. O que se propõe é que o intérprete de todas as matérias jurídicas as olhe com um tempero constitucional.

 

Restringir a interpretação do Direito ao positivismo jurídico significa, muitas vezes, fechar o círculo do Direito e impedir a entrada da justiça. As leis, vistas cegamente, nem sempre são justas. O nazismo, por exemplo, construiu um Estado governado por leis. Leis injustas. Leis, portanto, que, sem o tempero da justiça, implicaram a formação e funcionamento de um aparelho estatal repressivo e odioso.

 

É por isso que proponho, na esteira do que vem fazendo o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, que todas as leis – no que se incluem as leis de Direito Administrativo – sejam interpretadas com base na Constituição da República.

 

Como se sabe, a lei nem sempre pode abarcar tudo, de forma que, por si só, nem sempre consegue atingir a verdadeira justiça14. Fazer justiça, pois, não é apenas cumprir a lei. Pode haver direito sem lei, mas não há direito sem justiça15.

 

Não se está, com esse novo modo de interpretar o Direito, retirando do juiz as balizas que devem cercar a decisão judicial. Ao contrário. Está-se, isto sim, afastando os limites estreitos muitas vezes impostos pela lei, para impor os limites largos e justos delimitados na Constituição. Célebre a frase de Rui Barbosa em que o mestre ensina que, no conflito entre a lei e a Constituição, deve o intérprete arredar a lei e aplicar a Constituição.

 

Poder-se-ia argumentar que os direitos sociais compreendem verdadeiras questões políticas, as quais não estariam no campo de competência dos juízes. No entanto, a moderna hermenêutica constitucional aponta para o fato de que as questões políticas também são questões jurídicas; se não solucionadas pelo Executivo e pelo Legislativo, merecerão toda a atenção necessária do Poder Judiciário16.

 

A educação, nesse sentido, deve servir para acabar com as desigualdades, cuidando-se, para tanto, de promover a igualdade de oportunidades17.

 

Nessa ordem de idéias, e com vistas a conferir a maior densidade normativa possível aos direitos sociais, é que considero inconstitucional qualquer tentativa do legislador ordinário em submeter os direitos sociais à disponibilidade de recursos financeiros e ao limite de gastos com pessoal.

 

A população não agüenta mais os formalismos inúteis dos juristas. Nos escaninhos desses formalismos, encontramos a negativa aos direitos das pessoas. Nas discussões intermináveis dos juristas, encontramos leis, teses e elucubrações que escondem interesses de classes, sem que, muitas vezes, os inteligentes intérpretes percebam. Nos debates alongados dos juristas, enfim, descobrimos que o caminho ao inútil e desnecessário é a tônica, que a opressão encontra-se recôndita na alma daqueles que se julgam produtores da justiça.

 

Se os direitos sociais não forem concedidos por bondade, que o façamos por interesse. As classes marginalizadas podem assaltar os nossos interesses escusos. A criminalidade pode bater às nossas portas. As cadeias não comportarão mais os revoltosos. Os homens do subterrâneo levantarão suas espadas e a ordem injusta se romperá18.

 

Rompemos, pois, as amarras do formalismo inútil e propiciemos à população o gozo dos verdadeiros direitos sociais. O nosso subdesenvolvimento não pode atravancar o nosso progresso. A justiça precisa reinar neste País. Discussões estéreis não podem impedir que as classes populares tenham acesso aos direitos sociais.

 

O povo, portanto, tem sede e fome de justiça. As legislações ordinárias, as teses jurídicas não podem mais servir de obstáculos aos direitos de cidadania, de sobrevivência e de instrução. Caminhar nos terrenos da igualdade significa mais do que escrever livros enormes de direito, com palavras e frases de efeito. Significa, isto sim, propiciar que as classes populares tenham acesso aos bens da vida que sempre lhe foram negados, no atravessar de séculos e mais séculos, em que o reino do obscurantismo e da miséria imperou incessantemente19.

 

Tudo isso se resume nisto: o Judiciário precisa, urgentemente, abandonar algumas teses inúteis e se atentar para o que há de mais simples e que dispensa rodeios: a promoção da Justiça.

 

Sócrates, o célebre pensador ateniense, ao ser condenado injustamente à pena de morte, disse estar feliz em morrer. Isso porque a morte poderia livrá-lo dos juízes injustos que o condenaram e permitir que ele tivesse contato com outros juízes, que, em vida, foram responsáveis por perseguir verdadeiramente a justiça20.

 

 Se falharmos nesse desiderato, ouviremos das pessoas aquilo que Atenas ouviu do seu mais ilustre filho. E os brasileiros, cansados de serem explorados e terem negados seus direitos sociais, terão de buscar a justiça nos juízes que jazem no descanso eterno da morte.  

 

Portanto, nenhuma lei pode submeter os direitos sociais ao discurso vazio da disponibilidade financeira e do limite de gastos com pessoal. A educação retira do obscurantismo as mentes, ensina o povo a pensar21, faz de marionetes verdadeiros cidadãos. Interpretações legalistas e anticonstitucionais são a antípoda do Estado Democrático e Social, para cujos integrantes a Constituição da República levantou o edifício da igualdade, da liberdade, da instrução, enfim, o edifício da dignidade da pessoa humana.

 

NOTAS:

 

[1] BONAVIDES, Paulo, Curso de direito constitucional, p. 636 a 647, 21ª ed., Malheiros, São Paulo: 2007.



[2] CF, art. 1º, inciso III.



[3] CF, art. 3º, inciso I.

 

[4] Dessa opinião compartilha um dos nossos maiores constitucionalistas, Dr. Paulo Bonavides: “Sugestão, a nosso ver, feliz e originalíssima com que preencher tão sentida lacuna na garantia dos direitos sociais e extirpar, de todo, o teor programático que o entendimento de alguns intérpretes da Constituição ainda atribui àqueles direitos partiu do jurista rio-grandense-do-norte Paulo Lôpo Saraiva. Com efeito, propôs esse eminente publicista a criação de um mandado de garantia social, que seria conquista de irretorquível relevância nas regiões constitucionais onde se há de concretizar com mais vigor a proteção dos direitos sociais. Incomparavelmente superior ao malogrado instituto da inconstitucionalidade por omissão, conforme certifica a experiência nacional” (ob. cit., p. 644).

 

[5] CF, art. 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

 

[6]José Reinaldo de Lima Lopes, Direitos sociais – teoria e prática, p. 33 a 35, Método, São Paulo: 2006.



[7] José Reinaldo de Lima Lopes, ob. cit., p. 35 a 37.

 

 [8] “As propostas de alteração do modelo de sociedade, e de cultura enfim, é que se materializam verdadeiramente em utopias e impulsionam a novidade. O direito readquire neste momento uma característica própria. Sempre que se fala em direitos é assente que se fala em dever-ser. É preciso fazer aqui a distinção fundamental: não é que deve ser aquilo que já é, deve ser aquilo que não é. Ora, o que não é, por enquanto, são as reivindicações dos que estão à margem ou dos que estão sob exploração. Deve ser a desmilitarização, quando é a indústria bélica a que puxa o trem das economias desenvolvidas. Deve ser a dignidade daqueles cuja condição é indigna. Não se pode dizer: deve ser a exploração, quando há exploração; tampouco se pode dizer: deve ser a guerra, quando a guerra já é. É da essência do direito propor o que não é ainda. A história está feita destes exemplos. O direito é o direito à não-exploração. É negação da negação. O movimento dos profetas e dos heróis é o movimento pela defesa do direito que não é ainda. Defender o pobre, a viúva, o órfão e o estrangeiro em Israel era o que merecia o nome de direito. O resto era usurpação” (José Reinaldo de Lima Lopes, ob. cit. p. 51 e 52).

 

[9] Esse conceito de justiça comutativa e justiça distributiva se deve a Aristóteles e não passou despercebido por Tomás de Aquino (ver José Reinaldo de Lima Lopes, ob. cit., p. 125 e 126).

 

[10]José Reinaldo de Lima Lopes, ob. cit., p. 127 e 128).

 

[11] José Reinaldo de Lima Lopes (ob. cit., p. 223), para quem “direitos sociais e democracia têm uma relação forte e duradoura na história mais recente”.

 

[12] Nesse sentido, ensina o insuperável Paulo Bonavides: “De tal sorte que, preservada a sua intangibilidade constitucional, a garantia social se concretize prioritariamente na escala das disponibilidades materiais da prestação estatal. Não servem os limites desta, portanto, de argumento com que excluir os direitos sociais da proteção que lhes confere a sobredita intangilibidade” (ob. cit., p. 645).

 

[13] Esse tal de ajuste estrutural, de corte nas despesas públicas – que, aqui no Brasil, culminou com a pomposa Lei de Responsabilidade Fiscal – significa, segundo os pensadores mais sensíveis e com idéias voltadas ao interesse público, uma forma de os grandes capitalistas avançarem sobre a riqueza pública. Os que defendem essa reestruturação do Estado dizem que esses cortes nas despesas significam maior economia para o País gastar no que é essencial. Propagam a inutilidade e incompetência dos servidores públicos, razão pela qual o corte nas remunerações e no quadro de funcionários passa a ser a tônica dessa nova maneira de enxergar o Estado. O que, porém, está por detrás dessa idéia são, a meu ver, duas ordens de interesses. A primeira é que vê, na ausência de Estado, a possibilidade de os particulares desempenharem os serviços públicos, com vistas à obtenção de lucro. Retira-se a atividade estatal, taxa-se essa atividade de dispendiosa e ineficiente. Entra o capital privado, para, com o objetivo estritamente lucrativo, desempenhar a empresa. Quem não tem dinheiro, então, fica de fora da prestação do serviço. É uma nova forma de se marginalizar a pobreza. A segunda é a seguinte. O Estado se retirando do dever de prestar serviços públicos fica com mais dinheiro. Esse dinheiro, então, vai para os grandes bancos, sob a forma de juros extorsivos para pagamento da inextirpável dívida pública. E assim o grande capital vence, sem rodeios. E a pobreza perde, sem alarde... Vejamos como funciona o mecanismo do ajuste estrutural, segundo o pensador Philippe Paraire, para quem essa nova forma de se conformar o Estado produz uma guerra aos pobres:

“Depois o ajuste estrutural deu o golpe de misericórdia nas economias gangrenadas pela dependência técnica e financeira organizada na primeira fase da nova colonização. O seu custo humano é enorme, impossível de calcular com precisão; para satisfazer a sede de lucro do pequeno grupo de convertidos à filosofia do ultraliberalismo que toma as decisões, milhões de homens morrem prematuramente de subnutrição ou de doenças provocadas pela subnutrição. Um milhão de mortos-vivos, cuja existência quase animal é imputável às escolhas estratégicas do capitalismo contemporâneo, engrossa o catastrófico balanço da globalização do capitalismo.

“Tradicionalmente, um programa de ‘ajuste estrutural’ é acompanhado de empréstimos a ‘alta condicionalidade’; isto significa que, se o governo contemplado não avança rapidamente com as suas reformas, os empréstimos complementares não são concedidos. Recentemente, a Índia, o Egito, a Costa do Marfim, a Zâmbia e a Argélia tiveram que suportar esta chantagem várias vezes. A própria França foi intimada pelo FMI a não ir rapidamente em socorro do franco CFA nem do dinar argelino em 1994. Os preços dispararam e a pobreza deu um passo gigantesco naqueles países.

O primeiro princípio do ‘ajuste estrutural’ é a limitação das despesas públicas, com o objetivo de oferecer à concorrência os serviços públicos rentáveis. O Estado deve dispensar funcionários, reduzir as despesas sociais, de saúde e de educação para provocar o aparecimento de novos agentes privados destes serviços. Paralelamente, o Estado deve abandonar toda e qualquer forma de controle direto na produção agrícola e industrial, bem como nos serviços de alta tecnologia (telecomunicações, televisão e rádio). Tudo deve ser privatizado (grifei).

“Mais de 110 países que estão hoje oficialmente em processo de ‘ajuste estrutural’ puseram em prática o primeiro princípio, ao qual o Banco Mundial e o FMI acrescentam um segundo: a desregulamentação geral dos preços e dos salários. A abolição do ‘preço máximo’ de alguns produtos alimentares de primeira necessidade impõe a subnutrição a milhões de famílias pobres. O salário mínimo igualmente desaparece, agravando o fenômeno. O controle dos preços e dos salários é apresentado pelo Banco Mundial e pelo FMI como um instrumento ‘anti-econômico’, prejudicial à ‘dinâmica da concorrência’. De fato, o ajuste tem como único objetivo abrir espaços.

(...)

“Desnecessário afirmar que este ‘tratamento de choque’ (expressão oficial utilizada pelos autores do Plano Baker), aplicado a economias pós-coloniais fragilizadas, constitui efetivamente uma forma disfarçada de guerra contra os pobres” (Os mortos-vivos da globalização, in O livro negro do capitalismo, organizador: Gilles Perrault, p. 474 a 476, Record, 3ª ed., Rio de Janeiro e São Paulo: 2000).

Adotada essa política de ajuste estrutural, desajuste-se o tecido social do País, com o aumento da criminalidade violenta. A elite, então, em vez de combater a causa da criminalidade, propõe o endurecimento das leis penais, para, mais uma vez, o pobre ser terrivelmente penalizado (as leis duras atinge a pobreza, a experiência do dia-a-dia é clara nesse sentido) e os altos interesses dos ricos, que causam esse estado de coisas, não serem incomodados...

 

 

[14] Eis o que disse Platão, em “A República”, citado por José Reinaldo de Lima Lopes (ob. cit., p. 221): “é que a lei jamais seria capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, o melhor e o mais justo para todos, de modo a ordenar as prescrições mais convenientes. A diversidade que há entre os homens e as ações, e, por assim dizer, a permanente instabilidade das coisas humanas, não admite em nenhuma arte, e em assunto algum, um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos. Creio que estamos de acordo sobre esse ponto”.

 

[15] Roberto Lyra Filho, citado por José Reinaldo de Lima Lopes (ob. cit., p. 35).

 

[16] “A tradição liberal novecentista levou a uma distinção: a justiça comutativa-retributiva tornou-se uma questão de direito e a justiça distributiva tornou-se política (...).

“Tal distinção está ameaçada. Em primeiro lugar, existe uma esfera do direito em que tradicionalmente a fronteira se esfuma: é o campo do direito constitucional (...). No caso do direito constitucional, particularmente nos casos de disputa judicial sobre a constitucionalidade de leis ou atos da administração, política e direito voltam a juntar-se.

“Nas últimas décadas houve a expansão dos textos constitucionais, com a elevação de diversos temas à categoria de direitos constitucionais. No Estado de bem-estar os direitos sociais vêm juntar-se aos direitos individuais. No Brasil em particular assistimos a duas ondas simultâneas de judicialização: conflitos envolvendo os novos direitos (lutas por moradia e reforma agrária, por exemplo) e conflitos englobando a efetiva aplicação dos antigos direitos em novos contextos (a luta contra a discriminação étnica, de cor, sexual – de gênero -, mulheres, e de orientação – homossexuais, religiosa, política). O que está em jogo é o conjunto de instituições básicas da sociedade: leva-se ao Judiciário o conflito entre projetos distintos de instituição social, uns conservando as discriminações sociais e pessoais, outro propondo uma sociedade menos excludente e opressiva. Em outras palavras, o processo de judicialização dos conflitos no Brasil está atravessado por demandas de justiça dinâmica (alteração de regras), algo que só pode ser realizado judicialmente na esfera da discussão da constitucionalidade de leis, atos e programas. Além disso, está em questão a justiça distributiva (realocação de riqueza e autoridade)” (José Reinaldo de Lima Lopes, ob. cit., 124 e 125).

 

[17] Interpretando a Constituição Portuguesa, que em muito inspirou a nossa, J. J. Canotilho e Vital Moreira explicam esse sentido superior que deve guiar a educação:

IV. Um dos objectivos da educação é, assim, contribuir para a igualdade de oportunidades e para a superação das desigualdades econômicas, sociais e culturais (nº 2, 2ª parte). Essa função igualizadora da educação, que é também um instrumento de mobilidade social, estabelece importantes exigências ao nível da organização do sistema escolar, de modo a impedir que este sirva, ao invés, para reproduzir, reforçar e criar desigualdades sociais (que tinha exemplos nas desigualdades sociais provocadas pelo antigo ‘dualismo’ entre o ensino liceal e o ensino técnico, no desnível de qualidade das escolas das zonas privilegiadas e as das zonas degradadas)” (Constituição da república portuguesa anotada, p. 889, 1ª ed. Brasileira e 4ª ed. Portuguesa, Coimbra Editora e Revista dos Tribunais, Coimbra e São Paulo: 2007.

 

[18] O alerta vem do russo Dostoievski, para muitos o maior escritor que já existiu, em toda a humanidade: “Aliás, tomai nota: estou convencido de que nós, homens do subterrâneo, precisamos ser refreados. Somos capazes de ficar em silêncio no nosso subterrâneo durante quarenta anos, mas quando abrimos caminho e interrompemos à luz do dia, então falamos, falamos, falamos...” (Notas do subterrâneo, p. 47, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: 1986).

 

[19] Assim como tem fome de pão, o povo tem fome de justiça. Eis a poesia do grande escritor Bertolt Brecht (“O pão do povo”): “A justiça é o pão do povo/ Ás vezes bastante, às vezes pouca/ Às vezes de bom gosto, às vezes de gosto ruim/Quando o pão é pouco, há fome/Quando o pão é ruim, há descontentamento.

“Fora com a justiça ruim!/ Cozida sem amor, amassada sem saber!/ A justiça sem sabor, cuja casca é cinzenta/ A justiça de ontem, que chega tarde demais!/ Quando o pão é bom e bastante/ O resto da refeição pode ser perdoado/ Não pode haver tudo em abundância/ Alimentado do pão da justiça/ Pode ser feito o trabalho/ De que resulta a abundância.

“Como é necessário o pão diário/ É necessária a justiça diária/ Sim, mesmo várias vezes ao dia.

“De manhã, à noite, no trabalho, no prazer/ No trabalho que é prazer/ Nos tempos duros e nos felizes/ O povo necessita do pão diário/ Da justiça, bastante e saudável/ Sendo o pão da justiça tão importante/ Quem, amigos, deve prepará-lo? 

“Quem prepara o outro pão?/ Assim como o outro pão/ Deve o pão da justiça/ Ser preparado pelo povo.

“Bastante, saudável, diário.”

 

[20] Se, ao chegar ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem a justiça, Minos, Radamanto, Éaco, Triptólemo e outros semideuses que foram justiceiros em vida, não valeria a pena a viagem? Quanto não daria qualquer de vós para estar na companhia de Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero? Por mim, estou pronto a morrer muitas vezes, se isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento maravilhoso, quando encontrasse Palamedes, Ájax de Telamon e outros dos antigos, que tenham morrido por uma sentença iníqua; não me seria desagradável comparar com os deles os meus sofrimentos e, o que é mais, passar o tempo examinando e interrogando os de lá como aos de cá, a ver quem deles é sábio e quem, não o sendo, cuida que é. Quando não se daria, senhores juízes, para sujeitar a exame aquele que comandou a imensa expedição contra Tróia, ou Ulisses, ou Sísifo, milhares de outros se poderiam nomear, homens e mulheres, com quem seria uma felicidade indizível estar junto, conversando com eles, sujeitando-os a exame! Os de lá absolutamente não matam por uma razão dessas! Os de lá são mais felizes que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo resto do tempo, se a tradição está certa” (Sócrates, Apologia de Sócrates,  in  Os pensadores, p. 72 e 73, Nova Cultural, São Paulo: 1999).

 

[21] É de Castro Alves a linda poesia: “Por isso na impaciência/Desta sede de saber/Como as aves do deserto/As almas buscam beber.../Oh? Bendito que o semeia/ Livros... livros à mão cheia.../E manda o povo pensar!/O livro caindo n’alma/É germe que faz a palma,/É chuva – que faz o mar”.




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