247 - Responsabilidade civil extracontratual do Estado por acidentes de trânsito

 
BÁRBARA NATÁLIA LAGES LOBO - Advogada
 

 

Resumo: Análise do instituto da responsabilidade civil do Estado, reconhecidamente um direito fundamental no Estado Democrático de Direito, o que nem sempre ocorreu, devido a períodos e teorias de irresponsabilidade do Estado. A aplicação do referido instituto nos acidentes de trânsito será feita através do estudo da legislação específica e da análise da jurisprudência brasileira sobre o tema.

 

Palavras-chave: Responsabilidade civil do Estado; Acidentes de trânsito.

 

 

1 – Introdução

 

O instituto da responsabilidade civil extracontratual do Estado é fruto de evolução do Direito Administrativo. O paradigma do Estado Democrático de Direito, sustentado por seus pilares de justiça, dignidade da pessoa humana, cidadania e segurança jurídica requer que todos que causem um dano a alguém ou a uma coletividade sejam responsabilizados por seus atos. Nos dizeres do Professor argentino Agustín Gordillo (2007): “No hay nada peor para uma democracia que la impunidad de los agentes públicos”.

 

O tema deste trabalho “Responsabilidade civil extracontratual do Estado por acidentes de trânsito” foi escolhido em função da constatação, por meio da mídia e outros indicadores, de os acidentes de trânsito figurarem como principal causa de mortes em nosso País. Segundo dados da pesquisa de mortalidade por acidentes de transporte terrestre, divulgada no dia 25 de abril de 2007, na Primeira Semana Mundial das Nações Unidas de Segurança no Trânsito promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), 35 mil pessoas morreram em 2005 no país. Desse total, 81,5% são do sexo masculino e 18,5% do sexo feminino. De acordo com o levantamento, metade das vítimas fatais são jovens. (Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/04/25/materia.2007-04- 25.4628403790/view> Acesso em 22.nov.2007).

 

O aumento da quantidade de veículos se apresenta como um problema a ser enfrentado pelo País, tendo em vista as conseqüências que acarreta: lentidão do trânsito, aumento do número de acidentes, aumento da poluição.

 

Importante ainda ressaltar que em pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os acidentes dão prejuízos altos aos cofres públicos. “Entre os anos de 2001 e 2003, os custos dos acidentes de trânsito por perdas anuais chegaram a R$ 5,3 milhões. Em 2006, os impactos sociais e econômicos dos acidentes de trânsito foram estimados em R$ 24,6 bilhões”. (Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/04/25/materia.2007-04- 25.4628403790/view> Acesso em 22.nov.2007).

 

Estudos realizados pelo Denatran juntamente com o IPEA (<Disponível em: http://www.ipea.gov.br/Destaques/Destaques2/apresentacoes_acidentedetransito/sequelas.ppt>), demonstram que os danos causados por um acidente de trânsito não atingem somente ao envolvido no acidente, deve-se levar em consideração transtornos sociais maiores, como, por exemplo, os órfãos em razão de acidentes de trânsito, as seqüelas psicológicas nos familiares, com a possibilidade de desenvolvimento de doenças motivadas pelo trauma e estresse sofridos por parentes das vítimas.

 

Quanto à responsabilidade do Estado, em reportagem veiculada na Revista Época, utilizando-se de dados obtidos junto ao Departamento da Polícia Rodoviária Federal e ao Denatran, divulgou-se que, em 2004, 1,4% dos acidentes são causados por defeito na via; 2,1%, por buracos na via e 11,1%, por excesso de velocidade.

 

Considerando tais informações e de que é dever do Estado zelar pela vida dos cidadãos, bem como prestar serviços públicos de forma eficiente, o desenvolvimento deste trabalho é um estudo sobre as possibilidades de se responsabilizar o Estado quando este é responsável por danos em acidentes de trânsito, seja por ação ou omissão.

 

 

2- Conceito

 

A responsabilidade do Estado é o dever do mesmo reparar os cidadãos por danos por eles sofridos a que tenha dado causa.

 

Vários autores conceituam o presente instituto, aqui vamos citar alguns com o objetivo de nos contextualizarmos no tema.

 

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2005) o conceitua, levando-se em consideração que o Estado, e não a Administração, visto que esta não possui personalidade jurídica, é responsável por danos aos quais tenha dado causa o Executivo, Legislativo ou Judiciário, sendo esta responsabilidade sempre civil, por tratar-se de “ordem pecuniária”.

 

Celso Antônio Bandeira de Mello afirma:

 

Entende-se por responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos. (MELLO, 2007, p.961)

 

Quanto ao dano, o professor Marçal Justen Filho (2006) o define como a diminuição de patrimônio suprimindo ou diminuindo o valor econômico dos bens ou direitos que possuía ou viria a possuir. Caracterizando, ainda, o dano moral como “a lesão imaterial e psicológica, restritiva dos processos psicológicos de respeito, de dignidade e de autonomia”. (JUSTEN FILHO, 2006, p.809)

 

 

3- Evolução histórica do instituto da responsabilidade civil do Estado

 

Antes de estudarmos aspecto tão restrito do instituto da responsabilidade civil é importante acompanhar o seu desenvolvimento histórico, tendo em vista a dinamicidade do Direito. Reconhece-se como marco da passagem da irresponsabilidade do Estado para a responsabilização do Estado o caso de Agnès Blanco, menina atropelada por vagonete, em Bordeaux, em 1872, cujo pai processa os funcionários que operavam tal vagonete e o Estado, pleiteando indenização.

 

As diversas concepções de Estado, bem como a evolução dos paradigmas, transformam a responsabilidade civil em um direito fundamental do Estado Democrático de Direito, se apresentando como fundamento de segurança jurídica dos cidadãos perante as atuações estatais ofensivas aos seus direitos.

 

 

2.1 -  Teoria da Irresponsabilidade

 

A presente teoria, embora ao final da exposição e tendo em vista os princípios do Estado Democrático de Direito possa parecer absurda, perdurou até o século XVIII. 

 

A irresponsabilidade do Estado já era presente na Antigüidade, mas atingiu o seu auge no Absolutismo (“the king can do no wrong” e diante da teocracia – figura divina dos reis pela indissociação entre Estado e religião), e fundamentava-se na idéia de soberania do Estado. O soberano “ditava” as leis, mas a elas não se vinculava.

 

Após as revoluções ainda não se imputava responsabilidade ao Estado, sob o temor de seu enfraquecimento, inicialmente, chancelada pela doutrina de separação dos poderes.

 

A doutrina classifica como atos principais para o fim da teoria da irresponsabilidade o Tort Claim Act (EUA – 1946) e o Crown Proceeding Act (Inglaterra – 1947), que possibilitaram a responsabilização do Estado, quando dos seus atos decorressem danos aos administrados.

 

 

2.2 – Teorias Civilistas

 

Com a superação da teoria da irresponsabilidade no século XIX, tem-se o surgimento de uma teoria da responsabilidade do Estado embasada no Direito Civil.

 

Sobre a fase civilista nos ensina o Professor Edimur Ferreira de Faria (2007) que, embora se admitisse a culpa do Estado e do agente, as vítimas deveriam comprovar a culpa dos mesmos, norteando-se, contudo, a jurisprudência para a culpa objetiva.

 

Ganha importância a distinção entre atos de império e atos de gestão. Atos de império são aqueles que a Administração pratica em situação de supremacia aos administrados, enquanto os atos de gestão são praticados pela Administração em situação igualitária à dos particulares.

 

Na fase civilista do instituto da responsabilidade apenas os atos de gestão implicavam em responsabilidade civil do Estado.

 

 

2.3 – Teorias Publicistas

 

As teorias publicistas levam em consideração que o servidor público é representante do Estado e, portanto visto como se fosse próprio Estado. Nos dizeres de Yussef Cahali (2007, p.34), “O que caracteriza a teoria publicística é a despersonalização da culpa, transformando-a, pelo anonimato do agente, em falha da máquina administrativa”.

 

O Direito Francês foi pioneiro no desenvolvimento do instituto da responsabilidade civil embasado em princípios do Direito Público. A partir daí, outras teorias foram desenvolvidas, aqui trataremos as duas principais: a teoria da culpa administrativa e teoria do risco.

 

 

2.3.1 – Teoria da culpa administrativa

 

Para esta teoria a culpa é do serviço público, e não do agente. Nos dizeres de Júlio César dos Santos Esteves: “Não se trata de culpa do funcionário, mas da falta ou falha do serviço público por si mesmo considerada”. (ESTEVES, 2003, p.53)

 

Di Pietro discorre sobre essa teoria:

 

Essa culpa do serviço público ocorre quando: o serviço público não funcionou (omissão), funcionou atrasado ou funcionou mal. Em qualquer dessas três hipóteses, ocorre a culpa (faute) do serviço ou acidente administrativo, incidindo a responsabilidade do Estado independentemente de qualquer apreciação da culpa do funcionário (DI PIETRO, 2005, p.565)

 

 

2.3.2 – Teoria do risco

 

Essa teoria fundamenta a responsabilidade civil do Estado na medida em que não é importante aqui a culpa do Estado (elementos subjetivos, como por exemplo, “se o serviço público tenha funcionado bem ou mal, de forma regular ou irregular” (DI PIETRO, 2005, p.565), mas o nexo de causalidade entre a conduta estatal e o dano sofrido pelo administrado. Para essa teoria, o Estado assume o risco do dano pela sua atuação.

 

Por essa teoria, não se cogita da idéia de falta, senão da existência do dano e do nexo causal entre o prejuízo e a atuação do Estado. Trata-se de reconhecer que, sendo próprio do Estado garantir o bem-comum, não há como, sem ofensa aos princípios do Direito público, admitir-se que o lesado pelo Estado possa permanecer ao desamparo. Se assim é, caberá à comunidade – destinatária do proveito resultante da atuação do Estado – assumir o ônus de ressarcir o lesado, como forma de restabelecer o equilíbrio ínsito da idéia de igualdade de todos em face do Estado... (ESTEVES, 2003, p.57).

 

Partindo do princípio da igualdade, na forma da definição acima, a presente teoria insere a responsabilidade objetiva do Estado. Decorrem daí desdobramentos da teoria do risco: teoria do risco integral (não importando aqui o dolo ou a culpa da vítima); teoria do risco administrativo (que desonera o Estado de culpa em casos tais como força maior, culpa da vítima, dentre outros).

 

A doutrina passa então a reconhecer como indissociáveis segurança jurídica e responsabilidade civil do Estado.

 

 

2.4 – Evolução no Direito Brasileiro

 

Neste ponto faremos breve resumo da evolução da responsabilidade do Estado no direito brasileiro.

 

·                     Constituição do Império (1824): responsabilidade pessoal dos empregados públicos, caso exercesse suas funções com abuso ou omissão, porém, na forma do Absolutismo, inadmitia que o monarca pudesse errar.

Alguns autores, como por exemplo, Celso Antônio Bandeira de Mello (2007), Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2005), Edimur Ferreira de Faria (2007) e Yussef Cahali (2007) afirmam que no Brasil nunca se aceitou a teoria da irresponsabillidade, tese da qual discorda o Professor Ronaldo Brêtas (2004) fundamentando-se no artigo 99 da Constituição imperial, cujo texto era o seguinte: “A pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma” . Com referido autor concordamos, tendo em vista que, se não era o patrimônio estatal (erário público) atingido, considerando que quem tinha o dever de indenizar era o funcionário causador do dano, logo, o Estado era irresponsável.

 

·                     Constituição Republicana (1891): ainda vale a teoria subjetiva da culpa.

Di Pietro (2005) cita a existência de leis ordinárias nesse período que continham a possibilidade de responsabilização solidária do Estado e do agente.

 

·                     Código Civil (1916): trata da responsabilidade civil do Estado no seu artigo 15:

As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.

 

Segundo alguns autores, introduz a possibilidade de aplicação da responsabilidade objetiva.

 

·                     CR de 1934 e 1937: os funcionários são solidariamente responsáveis se omissos, negligentes ou praticam atos com abuso.

 

·                     CR de 1946: institui de forma definitiva a responsabilidade objetiva, com possibilidade de regresso do Estado contra o causador do dano, o que não foi recebido sem muita polêmica.

 

·                     CR de 1967: mantida a disposição anterior, porém, condicionando o direito de regresso à verificação de dolo ou culpa no ato do causador do dano.

 

·                     CR 1988: Adoção da teoria da responsabilidade objetiva do Estado e subjetiva do agente.

 

Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

 

Segundo Cahali (2007) qualquer legislação infraconstitucional que venha a diminuir a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público ou modificar as condições do direito de regresso contra seus agentes é inadmissível.

 

·                     Código Civil (2002):

 

Art. 43 – As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

 

O que se percebe atualmente, no Estado Democrático de Direito, é que para a efetividade da segurança jurídica é necessário o reconhecimento pleno da responsabilidade civil do Estado, entendido aqui não somente como a função executiva, mas também do judiciário e do legislativo.

 

 

3 -  Responsabilidade subjetiva e objetiva do Estado

 

Acompanhado o desenvolvimento histórico do instituto da responsabilidade civil do Estado, importa-nos estudar os dois tipos de responsabilização possíveis.

 

Celso Antônio Bandeira de Mello (2007) conceitua a responsabilidade subjetiva como o dever de indenização pertencente àquele que, por agir contrariamente ao Direito, dolosa ou culposamente, causou dano a outrem ou não impediu que o mesmo ocorresse, quando no dever de fazê-lo.

 

A responsabilidade subjetiva difere da objetiva na medida em que para esta se configurar basta a relação de causalidade entre o comportamento e o dano, enquanto para aquela a licitude do comportamento do agente deve ser observada para sua configuração.

 

Ao tratar da relação de causalidade, Marçal Justen Filho enuncia:

 

É evidente que, se o resultado danoso proveio de evento imputável exclusivamente ao próprio lesado ou de fato pertinente ao mundo natural, não há responsabilidade do Estado.

Mas se o evento foi propiciado pela atuação defeituosa do serviço público ou dos órgãos estatais, existe responsabilidade civil; assim, o caso sempre lembrado é o do acidente de trânsito causado por ausência de sinalização apropriada e propícia ou o equívoco técnico da implantação da rodovia, dando oportunidade á ocorrência de acidentes por ter sido mal concebida ou mal executada a obra pública (JUSTEN FILHO, 2006, p. 810).

 

Yussef Cahali afirma que nem sempre o nexo causal é facilmente identificável, principalmente nos:

 

...casos de atos omissivos da Administração, substancialmente identificados como falha anônima do serviço, quando então se examina se o ato omitido seria razoavelmente exigível, para se deduzir da sua omissão ou falta a causa primária do prejuízo do reclamado. (CAHALI, 2007, p.45)

 

O referido autor estabelece então enunciados gerais na tentativa de solucionar tal problema, devendo-se observar se a causa do dano foi, exclusivamente, a “deficiência ou falha do serviço público” (CAHALI, 2007, p.46), bem como se o dano não decorreu de caso fortuito, força maior ou culpa da vítima.

 

Os atos omissivos também se apresentam complexos para Marçal Justen Filho, pois podem se realizar de duas formas:

 

1-      Omissão própria: casos em que o agente ao qual era incumbida a função de agir de certa forma não o fez;

 

2-      Omisso imprópria:

 

“É aquela situação em que não há norma impondo explicitamente o dever de agir, mas em que o agir é o meio para evitar a consumação de um resultado danoso e prejudicial, reputado antijurídico. Tal se passa, por exemplo, quando um servidor público deixa de sinalizar a existência de um defeito na pavimentação rodoviária, dando oportunidade à consumação de acidente de trânsito. Não é necessário existir lei determinando o dever de agir. Ele se configura como inerente ao cumprimento diligente das funções públicas exercidas. (JUSTEN FILHO, 2006, p. 815) (grifos nossos).

 

E é a ocasião acima o foco deste trabalho, ou seja, quando a causa de um acidente de trânsito é a omissão estatal de um dever de agir, em inobservância ao princípio constitucional de eficiência. De toda forma, a responsabilização dependerá da análise do caso concreto, para tanto, nos utilizaremos de jurisprudências.

 

 

3.1 – Excludentes de responsabilidade do Estado

 

Os autores citados ao longo deste trabalho apontam como excludentes da responsabilidade do Estado: o comportamento/culpa da vítima, comportamento/culpa de terceiros, caso fortuito e força maior. É importante ressaltar que a referida doutrina não é unânime quanto a um ou outro excludente, mas de forma geral é assim que se apresentam.

 

Ao Estado incumbe o dever de provar a incidência de algum excludente de responsabilidade.

 

Não pretendemos discutir aqui a natureza de cada excludente, visto que estenderia o trabalho em demasia, desvirtuando-nos da tese central a que se propõe.

 

Vistos os aspectos gerais da teoria da responsabilidade civil extracontratual do Estado e a supracitada responsabilidade civil do Estado por omissão, adentraremos no tema deste trabalho.

 

 

4 - Responsabilidade civil extracontratual do Estado por acidentes de trânsito

 

Cotidianamente os noticiários nos apresentam um sem-número de acidentes nas estradas brasileiras, pelos mais variados motivos, imprudência está entre as causas principais. Outros motivos aliam-se a esse para o aumento das drásticas estatísticas de mortes por acidentes de trânsito, dentre os quais a situação lamentável das rodovias.

 

O que se verifica é que a omissão estatal, em vários aspectos, ocasiona vários acidentes de trânsito, valendo destacar algumas situações: defeitos nas rodovias, como por exemplo, a falta de sinalização e a enorme quantidade de buracos; ausência de políticas de prevenção, como a instalação de radares em trechos cuja maior causa dos acidentes seja excesso de velocidade; ausência de fiscalização das empresas de ônibus e de transportes, trabalhando os motoristas destas em sobrejornada, fazendo uso dos chamados “rebites”, ou trabalhando cansados, o que os faz dirigir em excesso de velocidade para que cheguem mais rápido ao destino, ou durmam no trânsito.

 

Preocupa-se também com o tema Rui Stoco (2004), destacando a diferença entre as vias brasileiras, sendo que umas são conservadas, enquanto, outras, intransitáveis.

 

A responsabilidade do Estado por acidentes de trânsito encontra fundamento na omissão do Estado, vez que tem o dever de evitar danos, bem como de prestação dos seus serviços com eficiência. O que, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, enseja a responsabilidade subjetiva:

 

Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabiliza-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. (MELLO, 2007, p.981)

 

O referido autor, nos casos de omissão do Estado, reconhece a conduta ilícita do mesmo por sua culpa (seja agindo com negligência, imprudência ou imperícia), aplicando-se a ele a responsabilidade subjetiva.

 

Analisadas as excludentes de responsabilidade do Estado, poderia se eximir a responsabilidade amparando-se na força maior, em razão de a maioria dos acidentes de trânsito decorrerem deste fato. Porém, em grande parte dos casos de acidente de trânsito tal fator não operará como excludente, conforme afirma o Professor Brêtas:

 

...mesmo ocorrendo motivo de força maior, despontaria a responsabilidade do Estado, se ficasse demonstrada sua omissão em realizar determinados serviços que impedissem a ocorrência dos danos verificados. Entretanto, é mister observar, nesta hipótese considerada de ato ou comportamento omissivo do Estado, a responsabilidade não seria objetiva.seu fundamento seria outro, porque decorrente do mau funcionamento do serviço público, isto é, o serviço público não teria funcionado ou, caso contrário, funcionado, mas tardia ou ineficientemente, do que resultou o dano.... (BRÊTAS, 2004, P.39).

 

Esses casos o autor enquadra na responsabilidade subjetiva, assim como Celso Antônio Bandeira de Mello (2007), admitindo ambos os autores que no Direito Brasileiro a responsabilidade subjetiva (casos de omissão) convive com a responsabilidade objetiva (casos de comissão) no que tange ao Estado. O professor Brêtas afirma, ainda, que caso o Estado não preste serviços públicos de “boa qualidade” (2004, p.57) e, em razão disso, ocorrer prejuízos aos particulares, o mesmo atua de forma comissiva, configurando, assim, a responsabilidade subjetiva.

 

É importante ressaltar que o Estado tem o dever de prestar os serviços públicos com qualidade, em observância ao princípio da eficiência, pilar da Administração Pública, conforme artigo 37 do texto Constitucional.

 

Segundo Marçal Justen Filho (2006, p. 813), o Estado, por meio de seus agentes, tem o “dever específico de diligência”, dessa forma precisa evitar que ocorram danos pela sua atuação ou omissão: “Se o agente estatal infringir esse dever de diligência, atuando de modo displicente, descuidado, inábil, estará configurada a conduta ilícita e surgirá, se houver dano a terceiro, responsabilidade civil”.

 

Assim, em consonância com a doutrina de Marçal Justen Filho, pode-se afirmar que a existência de norma,mesmo que esta seja técnica, que determine o dever de atuação do Estado em dadas situações o obriga a atuar de forma a prevenir a ocorrência de danos. No caso em que não houver regras deverá ser observada a possibilidade de previsão do fato acarretador do dano e o dever de evitar tais fatos danosos; hipóteses estas que acarretam a responsabilidade civil do Estado.

 

Mesmo que a culpa seja de terceiro, hipótese referida acima como excludente de responsabilidade, no ensinamento do autor supracitado o Estado não se exclui da responsabilidade se “a ele incumbia um dever de diligência especial, destinado a impedir a concretização de danos” (JUSTEN FILHO, 2006, p.818)

 

Responsáveis são também as concessionárias e permissionárias dos serviços de exploração e conservação das rodovias que cobram pedágio, visto que prestam serviço público.

 

 

4.1 – Responsabilidade estatal prevista no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) – Lei n° 9.503, de 23 de setembro de 1997

 

Estudadas as posições doutrinárias acerca da responsabilidade civil do Estado e embasados nas teorias acima citadas, importa-nos analisar a legislação sobre o tema.

 

O CTB prevê no artigo 1º §§ 2º e 3º:

 

§ 2º O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.

       

§ 3º Os órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito respondem, no âmbito das respectivas competências, objetivamente, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito do trânsito seguro.

 

Acerca dos dispositivos acima podemos concluir que o trânsito seguro é um direito de todos os cidadãos e dever do Estado, por meio do Sistema Nacional de Trânsito, devendo o mesmo adotar medidas assecuratórias desse direito. Fazendo uma conexão com o que foi estudado, podemos afirmar que nos casos em que o Estado se omite na prestação de medidas que proporcionem a seguridade do trânsito ou as preste de forma ineficaz, infringe o princípio da eficiência, e nos casos em que haja dano ao administrado, caberá a responsabilização estatal objetiva, na forma prevista no § 3º, do artigo 1º do CTB.

 

Nos dizeres de Paulo Alves Franco:

 

A omissão caracteriza a negligência dos representantes dos órgãos públicos que não se prestam a reparar as estradas e que em virtude dessa negligência ocorrem acidentes que deixam vítimas de lesões corporais e fatais. Além de responder pelos danos causados ao motorista que em virtude do acidente tiver seu veículo danificado, o omisso poderá responder criminalmente, se for o caso (FRANCO, 2004, p. 12).

 

A título de exemplo podemos citar a má conservação das estradas pelo DER, com a falta de sinalização, buracos na pista, e várias outras causas de acidente com as quais nos deparamos seja pessoalmente, seja por meio dos noticiários. A competência pela manutenção, conservação e implantação de sinalização das vias federais é do DNER. Às vias estaduais, a competência é dos órgãos estaduais. Já aos municípios, as vias urbanas e recursais, desde que não sejam classificadas como rodovias. Assim, configurada a omissão desses órgãos, pode-se responsabilizar o Estado pelos danos decorrentes dessa má atuação.

 

O dever de preservação das estradas, rodovias, ruas, etc. é fundamental para que se evite acidentes de trânsito e proteção da vida. No referido código tais direitos são almejados pelo art. 5º, § 5º: “Os órgãos e entidades de trânsito pertencentes ao Sistema Nacional de Trânsito darão prioridade em suas ações à defesa da vida, nela incluída a preservação da saúde e do meio ambiente”.

 

Consideramos, ainda, como dever do Estado, em razão do conhecimento deste dos trechos onde ocorrem mais acidentes por excesso de velocidade, a instalação de radares e redutores de velocidade, como forma de prevenção de acidentes nesses locais. Caracterizando a sua omissão como ensejadora de responsabilidade, tendo em vista que a atuação estatal também é preventiva.

 

Importa destacar também a ausência ou pouca fiscalização dos motoristas de ônibus e caminhões, que trafegam em jornada excessiva de trabalho, se utilizando dos chamados “rebites” (substâncias para se manterem acordados) ou entorpecentes. A fadiga de tais motoristas, aliada ao sono e ao desejo de chegar rapidamente ao destino é causa de grande parte dos acidentes. Considerando que o Estado tem conhecimento de tal fato, é dever do mesmo fiscalizar, através do Ministério do Trabalho, as empresas que adotam tal prática. A ausência desta fiscalização é também omissão do Estado que gera danos aos cidadãos.

 

Portanto, caracterizada a omissão do Estado no seu dever de garantir o trânsito seguro aos cidadãos e gerado um dano em razão dessa omissão, caberá a responsabilização do mesmo e o dever de indenização àquele que sofreu o dano.

 

 

4.2 – Jurisprudência

 

Em virtude da necessidade de concretização do dano para que haja a responsabilidade do Estado por omissão, vamos analisara alguns casos em que a responsabilidade estatal foi configurada, porém, não pretendemos esgotar o tema, tendo em vista a amplitude de possibilidades para que a mesma se configure.

 

As jurisprudências encontradas versam sobre a responsabilidade civil do Estado por acidentes de trânsito nos casos de veículos oficiais em mau estado de conservação; em colisão com viaturas em perseguição policial; pela falta ou incorreta sinalização; defeitos na pista; buracos e obstáculos em via pública; semáforo com defeito, etc...

 

·         Buraco em rodovia:

 

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL  DO ESTADO. ACIDENTE DE TRÂNSITO PROVOCADO POR FALHA NA PAVIMENTAÇÃO  (BURACO) DE RODOVIA FEDERAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. RITO SUMÁRIO.  ALEGADA VIOLAÇÃO DO ART. 277, § 5º, DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. CONVERSÃO PARA O  RITO COMUM ORDINÁRIO. DESNECESSIDADE. DESPROVIMENTO.  1. A ação de indenização por danos materiais causados em acidente de veículo de via terrestre processar-se-á pelo rito comum  ordinário, independentemente do valor da causa (CPC, art. 275, II, d). 2. O art. 277, § 5º, do CPC, autoriza a conversão do rito sumário para o ordinário quando houver necessidade de prova técnica de  maior complexidade. 3. O TRF da 1ª Região, com base nos fatos e provas, conclui que: (I) restou caracterizada a responsabilidade civil da recorrente; (II) foram comprovados o ato lesivo, os danos materiais, o nexo de causalidade e a omissão do Estado; (III) não houve culpa (negligência) do motorista no acidente. 4. O conjunto de provas produzidas nos autos (documentos, testemunhas e perícia técnica) foi suficiente para julgar a lide. Portanto, revela-se completamente desnecessária a realização de prova técnica complexa e, assim, totalmente impertinente a conversão do procedimento. 5. Recurso especial desprovido. Resp 647216/DF

RECURSO ESPECIAL

2004/0037073-9 - Relator(a: Ministra DENISE ARRUDA (1126)TRF 1ª Região- 27/03/2007. Data da Publicação/Fonte: DJ 30.04.2007 p. 284

 

·                                  Animais na pista cujo dever de guarda e sinalização compete a autarquia:

 

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. RODOVIA FEDERAL. ANIMAL NA PISTA. COLISÃO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. AUTARQUIA RESPONSÁVEL PELA GUARDA E SINALIZAÇÃO DAS RODOVIAS FEDERAIS. OMISSÃO. DANOS PERMANENTES. SEQÜELAS. INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL E MORAL. REDUÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. AUSENCIA DE CULPA CONCORRENTE. JUROS DE MORA APLICADOS COM BASE NO CÓDIGO CIVIL. AC 2003.38.03.006124-0/MG; APELAÇÃO CÍVEL DESEMBARGADORA FEDERAL SELENE MARIA DE ALMEIDA . TRF 1ª Região - QUINTA TURMA. Publicação: 05/10/2007 DJ p.76. Data da decisão: 26/09/2007.

 

·                                             Responsabilidade objetiva do DER:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. ALEGAÇÃO DE MÁ CONSERVAÇÃO DAS ESTRADAS. NÃO COMPROVAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. DANOS MATERIAIS. INDENIZAÇÃO.

1. A responsabilidade objetiva da Administração no Brasil segue a teoria do risco administrativo e não a teoria do risco integral. Na primeira, aqui adotada, a responsabilidade demanda uma ação de agente da Administração, um dano e um nexo de causa e efeito entre ambos, mas este liame pode ser afastado por culpa total ou parcial da vítima, de terceiro ou por caso fortuito/força maior.

2. O Departamento de Estradas de Rodagem (DER), como órgão responsável pela conservação das rodovias, responde objetivamente pelos danos causados a seus usuários, em decorrência da falta de adequada manutenção das aludidas rodovias (CF, art. 37, § 6º).

3. Contudo, o dever de provar o dano causado, bem como a sua atribuição exclusiva ao Estado e o nexo causal entre ele e o ato estatal, passa a ser da própria vítima. 4. Na hipótese dos autos, não restando demonstrado que o acidente que deu origem à pretensão indenizatória foi causado por omissão da Administração quanto à sinalização e conservação da pista, bem como não restando delimitados os danos sofridos pelo automóvel, indevida a indenização. 5. Remessa Oficial desprovida. REO 1999.41.00.003324-6/RO; REMESSA EX-OFFICIO. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL DANIEL PAES RIBEIRO . TRF 1ª Região: SEXTA TURMA  - Publicação: 02/07/2007 DJ p.38 

 

Várias outras jurisprudências foram encontradas a respeito do tema, visto que muito amplo, dessa forma, fica demonstrado de que forma os juízes tratam o tema.

 

 

5 - Conclusão

 

Vimos neste trabalho algumas teorias acerca da responsabilidade civil extracontratual do Estado, bem como a evolução das mesmas. De forma breve, estudamos a aplicação do referido instituto aos acidentes de trânsito de responsabilidade estatal.

 

Considerando a matéria estudada, nos permitimos a uma tentativa de ampliação do tema, em observância ao princípio da eficiência da Administração Pública e o dever de proteção à vida do Estado.

 

Tendo em vista o previsto no art. 5º, § 2º do CTB, o trânsito seguro é um direito do cidadão e cabe ao Estado, através das entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, adotar medidas que assegurem esse direito, devendo ser responsabilizado nas situações em que for omisso.

 

Inclui-se nessas medidas a fiscalização das estradas, tendo em vista que a  legislação de trânsito não abrange todas as situações que possam ocasionar acidentes.

 

Dessa forma, a fiscalização das estradas também deve ser embasada por estudos estatísticos, anuários, etc. Não devem ser desconsideradas também as informações trazidas pelos noticiários, muitas vezes, instrumento de denúncia das omissões estatais.

 

Com base nessas informações, deve o Poder Público detectar trechos onde ocorrem maior número de acidentes e atuar de forma a preveni-los, com a utilização de pessoal e de equipamentos eletrônicos (radares, redutores de velocidade, etc.).

 

Em Minas Gerais, de setembro de 2007 a março de 2008, os radares fixos instalados nas rodovias federais que passam pelo estado ficaram desativados, pois o contrato entre as empresas controladoras dos radares e o Estado venceu e o mesmo não foi renovado, ficando os aparelhos fora de uso até que fosse feita nova licitação. Enquanto isso a vida de inúmeros cidadãos que passaram por essas estradas ficaram sem a devida proteção, em razão da burocracia.

 

Na sociedade em que vivemos, plural, não podemos esperar que todos sejam prudentes, mas podemos punir os que não forem e, dessa forma, prevenir que continuem atuando de tal maneira.

 

O Estado Democrático de Direito arma o cidadão com a possibilidade de responsabilização do Estado quando este for omisso, sendo o instituto da responsabilidade civil do Estado um direito fundamental, expressão de segurança jurídica para os indivíduos. E, embora o mesmo deva ser responsabilizado em vários casos de acidente, conforme demonstrado ao longo deste trabalho, não se pode nunca deixar de ter consciência de que o trânsito responsável é dever de todos.

 

 

Bárbara Natália Lages Lobo é mestranda em Direito Público na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Linha de Pesquisa: Estado, Constituição e Sociedade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. E-mail: barbaralobo@hotmail.com

 

 

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