227 - Os direitos da personalidade e o tratamento jurídico do transexualismo

 
ANA MARIA ROMANO - Advogada
 

 

SUMÁRIO: 1. Conceito de Transexualismo. 2. O Tratamento Jurídico do Transexualismo e a Cirurgia de Transgenitalização. 3. Efeitos Civis da Cirurgia de Transgenitalização. 4. Conclusões

 

 

1. Conceito de transexualismo

 

Preliminarmente, para a exata compreensão da problemática que envolve o transexualismo, devemos atentar ao conceito de saúde formulado pela Organização Mundial de Saúde (OMS)1: completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade.

 

Para a qualificação da saúde, portanto, a Organização Mundial da Saúde considera o ser humano em sua integralidade. A saúde só pode ser entendida como uma interação harmônica entre os fatores biológico, psicológico e social que compõem a vida de alguém. Isso significa que a pessoa que esteja sofrendo de mal-estar, enfermidade ou deficiência, sejam estes físicos, emocionais ou sociais, tem o direito de buscar o alívio para o seu problema, uma vez que a saúde é elemento intrínseco à dignidade do ser humano.

 

Neste sentido, o princípio constitucional da dignidade humana, à luz do qual deve ser feita a leitura de todo o Direito Privado, impõe seja conferido tratamento elevado e prioritário ao ser humano integral, poupando-o de suportar qualquer sofrimento ou angústia para os quais o Estado ou outro particular tenha solução.



De acordo com a décima edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), o transexualismo é considerado um transtorno de personalidade da identidade sexual, caracterizado pelo “desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação ao seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado”.

 

A Resolução nº 1.652 de 06 de Novembro de 2002, do Conselho Federal de Medicina, a qual dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo, afirma ser o paciente transexual “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência a automutilação e ao autoextermínio”. De acordo com a referida resolução, o diagnóstico do transexualismo obedece aos seguintes critérios:

 

·         Desconforto com o sexo anatômico natural;

 

·         Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;

 

 

·         Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;

 

·         Ausência de outros transtornos mentais.

 

Para Delton Croce, o transexualismo é “uma das formas de transição entre o hermafroditismo masculino e o homossexualismo masculino, nos casos de transexualismo masculino ou entre o hermafroditismo feminino e o homossexualismo feminino, nas ocorrências de transexualismo feminino”, sendo também chamado de “hermafroditismo psíquico”.2

 

Por outro lado, Maria Helena Diniz assevera: “o verdadeiro transexual ou hermafrodita psíquico, é um doente, não estando, portanto, impelido por libertinagem ou vício a agir conforme o sexo oposto ao seu.”.3

 

Não há dúvidas, portanto, de que se trata de perturbação psíquica grave, que não se confunde de maneira alguma com a opção sexual da pessoa. O transexual tem a saúde emocional severamente comprometida, sendo-lhe lícito submeter-se aos tratamentos que a Medicina oferece, como imperativo de efetivação do princípio da dignidade humana e de busca da felicidade.

 

Desta forma, a premissa com base na qual o Direito deve enfrentar a questão do transexualismo, é a de que se trata de um estado psíquico teratológico, vale dizer, o transexual é portador de um desajuste que ele não escolheu, assim como tantos outros doentes aos quais o Estado oferece tratamento médico, cumprindo o disposto no artigo 196 da Constituição.

 

A Sexologia Médico-legal, ramo da Medicina Legal, esclarece que a determinação do sexo de uma pessoa está condicionada a quatro fatores: genético, endócrino, morfológico e psicológico4. A esse respeito, Odon Ramos Maranhão esclarece: “não se pode mais considerar o conceito de sexo fora de uma apreciação plurivetorial. Em outros termos, o sexo é resultante de um equilíbrio de diferentes fatores que agem de forma concorrente nos planos físico, psicológico e social”.5

 

O cerne da problemática que envolve o transexualismo está exatamente na fixação em torno da idéia de sexo biológico, ou seja, na dificuldade que se tem em admitir que o sexo de uma pessoa é o resultado da integração de fatores e não somente a expressão de sua conformação física propriamente dita.

 

O próprio sexo jurídico (aquele que consta do Registro Civil da pessoa) reflete a preferência do sexo biológico sobre o psicológico para o ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que ele é decorrente da declaração dos pais em função do sexo morfológico da criança.

 

Evidentemente, como se trata de fenômeno multifatorial, a determinação do sexo pode ensejar alguns conflitos como narra Luiz Alberto David Araújo: “quando nasce um menino ou menina, mesmo que tenha externamente os órgãos sexuais bem definidos, não podemos afirmar que essa criança possua uma identificação sexual. Esta depende de fatores psicossociais que vão surgir durante o seu desenvolvimento”.6

 

Nos estados de normalidade, há um sincronismo perfeito entre as características orgânicas (fatores genético, endócrino e morfológico) e psicológicas. De fato, o sexo psíquico tende a refletir o sexo biológico e, neste caso, a pessoa se identifica com seu sexo anatômico e tem comportamento e identidade sexuais conforme o gênero a que pertence. Ocorre que podem surgir estados patológicos, como o transexualismo.

 

O transexual tem desenvolvimento orgânico normal, mas repudia seu sexo anatômico e vive em intenso sofrimento por sentir-se preso a um corpo que não espelha seu estado emocional. Em síntese, o transexual sente-se pertencente ao sexo oposto e busca, como forma de atenuar seu sofrimento, a cirurgia de adequação de seu gênero físico ao seu gênero psíquico.

 

2. O tratamento jurídico do transexualismo e a cirurgia de transgenitalização

 

A Resolução nº 1.652 do Conselho Federal de Medicina considera que a “transformação da genitália constitui a etapa mais importante no tratamento de pacientes com transexualismo”. A referida resolução ressalta, ainda, que se trata de transformação terapêutica, em que há o “propósito específico de adequar a genitália ao sexo psíquico”, de sorte que não há que se falar em crime de lesão corporal (artigo 129 do Código Penal).

 

Caso interessante é relatado por Silvio Rodrigues em que um famoso cirurgião operou e tratou de transexual, extirpando seus órgãos genitais masculinos e transformando-o praticamente em pessoa de outro sexo. Ocorre que, ao ter ciência do fato, o Ministério Público denunciou o médico por crime de lesão corporal de natureza grave, obtendo sua condenação em primeira instância. O Tribunal de Justiça, no entanto, reformou a decisão, reconhecendo que a vítima apresentava personalidade feminina e, ao depor no processo, mostrou-se satisfeita com o resultado obtido7. O rumor causado por este processo ensejou a apresentação do Projeto de lei nº 1.909-A de 1979, aprovado pela Câmara dos Deputados, que acrescentava o § 9º ao artigo 129 do Código Penal, com a seguinte redação:

 

“Art. 129, § 9º: Não constitui fato punível a ablação de órgãos e partes do corpo humano, quando considerada necessária em parecer unânime de Junta Médica e precedida de consentimento expresso de paciente maior e capaz”.

 

Como se sabe, referido projeto foi vetado pelo Presidente da República.

 

Atualmente, nosso ordenamento jurídico não regula nem proíbe expressamente a cirurgia de redesignação de sexo mas, o cirurgião que realiza tal operação age sem dolo, ou seja, não tem animus de lesionar, ao contrário, tem a intenção de curar ou minimizar o sofrimento emocional do paciente. Uma vez que a conduta dolosa é elemento imprescindível do fato típico, a ausência da mesma acarreta a atipicidade do fato praticado pelo médico. Ademais, de acordo com o artigo 23, inciso III do Código Penal, o médico age segundo o exercício regular de um direito, de forma que, ainda que fosse um fato típico, estaria ele amparado por uma causa legal excludente de antijuridicidade.

 

O próprio Código de Ética Médica lastreia a possibilidade de intervenção cirúrgica para atenuar desajustes emocionais, como preceitua o artigo 51: “são lícitas as intervenções cirúrgicas com finalidade estética, desde que necessárias ou quando o defeito a ser removido ou atenuado seja fator de desajustamento psíquico”.

 

É evidente, contudo, que o médico deve realizar referida operação com o consentimento informado do paciente transexual, incidindo, aqui, a previsão do artigo 15 do Código Civil, protetora da integridade física do ser humano.

 

Não há dúvidas de que a cirurgia de redesignação de sexo provoca a extirpação dos órgãos sexuais sendo, objetivamente considerada, uma violência à integridade corporal da pessoa. Neste sentido, é responsabilidade do médico informar o paciente de que se trata de procedimento mutilante e irreversível, de que a funcionalidade e a sensibilidade dos órgãos genitais não serão perfeitas como se tivesse nascido com o sexo que gostaria de ter e, ainda, de que a cirurgia é a etapa mais importante, mas não a única, do tratamento do transexualismo, que exige, ainda, procedimentos complementares. Maria Helena Diniz esclarece: “o transexual é um ser policirúrgico, pois, operada a mudança sexual, necessárias serão várias cirurgias plásticas”.8

 

Não se pode olvidar, ainda, que a relação médico-paciente está sujeita às normas do Código de Defesa do Consumidor, de sorte que é preciso promover um diálogo permanente entre o artigo 15 do Código Civil e o Estatuto Consumerista, notadamente quanto à transparência das relações de consumo, prevista no artigo 4º, caput, bem como, quanto ao direito de informação constante do artigo 6º, inciso III, complementado pelo artigo 31, ambos do mesmo diploma.

 

Ressalte-se, outrossim, que o médico deve observar rigorosamente os termos do artigo 4º da Resolução nº 1.652, segundo o qual o paciente somente pode ser submetido à cirurgia de transgenitalismo após dois anos de acompanhamento por equipe multidisciplinar, constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, atendidos os seguintes requisitos:

 

·         Diagnóstico médico de transgenitalismo;

 

·         Paciente maior de 21 anos;

 

·         Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.

 

O advento do artigo 13 do Código Civil de 2002 parece ter legitimado a pretensão dos transexuais quanto à cirurgia de transgenitalização, uma vez que autoriza os atos de disposição do próprio corpo quando houver exigência médica, embora haja entendimento contrário como o de Carlos Roberto Gonçalves, que diz expressamente: “o art. 13 do Código Civil proíbe a ablação de órgãos do corpo humano realizada em transexuais”.9

 

Quanto ao referido artigo, o Enunciado nº 6 da Primeira Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, sem deixar margem a dúvidas, proclama: “a expressão ‘exigência médica’, contida no artigo 13, refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente”.

 

Já o Enunciado nº 276 da Quarta Jornada de Direito Civil procura solucionar definitivamente qualquer controvérsia quanto à hermenêutica do referido dispositivo, afirmando: “o artigo 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a conseqüente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil”.

 

Será possível, portanto, a cirurgia de redesignação de gênero, à luz do art. 13 do Código Civil, desde que haja exigência médica com o intuito de obter o bem-estar psíquico do paciente transexual.

 

Trata-se de interpretação do Direito Civil em consonância com o mandamento constitucional de respeito à dignidade humana, que traduz a nova feição do Direito Privado, em decorrência da qual há uma reconstrução do próprio conceito de pessoa, que deixa de ser o sujeito de direito visto unicamente como proprietário e contratante para se tornar um ser humano com qualidades intrínsecas e valor inerente, motivo suficiente para receber a integral tutela do Estado. Eis que temos aqui a despatrimonialização do Direito Privado, que procura encontrar o ser humano que existe por trás do proprietário e do contratante.

 

Evidentemente, o objetivo do artigo 13, ao vedar os atos de disposição do próprio corpo, quando estes importarem diminuição permanente da integridade física ou contrariar os bons costumes, é a própria tutela da dignidade humana. O legislador civil entende que a integridade psicofísica do ser humano, quando comprometida, é fator de degradação e aviltamento de sua dignidade. Por este motivo, se o ato de disposição do próprio corpo ocorre exatamente para a preservação da saúde e conseqüente promoção da dignidade humana será lícito segundo o ordenamento jurídico.

 

A cirurgia de redesignação de sexo é uma possibilidade de reintegração social do paciente portador de disforia de gênero, proporcionando-lhe uma situação existencial mais serena e adequada ao desenvolvimento de sua personalidade. Isto porque o transexual tende a viver na marginalidade e, quase sempre, suportando humilhações e constrangimentos, incompatíveis com os ditames de uma República Democrática que pugna pelo respeito à diversidade.

 

Neste sentido, a lição primorosa de Gustavo Tepedino, ao criticar a redação do art. 13 do Código Civil: “em uma sociedade plural, que protege constitucionalmente os mais diversos estilos de vida e preconiza a tolerância e a não discriminação, torna-se tarefa de difícil justificação a proibição de atos individuais que não atinjam terceiros, sob o fundamento da violação aos bons costumes”.10

 

3. Efeitos civis da cirurgia de transgenitalização

 

 

No tocante à cirurgia de transgenitalização, têm causado mais controvérsia os efeitos civis da mudança de sexo. Isto porque não basta a cirurgia para que o paciente transexual possa efetivamente assumir o sexo psíquico almejado; é imprescindível a alteração de seu prenome e a retificação de seu estado sexual registral, sob pena de o transexual passar a sofrer ainda mais constrangimentos, posto que, após a cirurgia, será evidente o descompasso entre seu prenome e o aspecto físico que passará a ostentar.

 

Evidentemente, as questões mais sensíveis são aquelas que tangenciam interesses de terceiros. Questão bastante polêmica diz respeito à possibilidade de casamento do transexual após a cirurgia. Tem-se argumentado que seria hipótese de casamento inexistente por ausência de diversidade de sexos. Outro argumento é o da impossibilidade de gerar filhos. Este argumento é improcedente, uma vez que o próprio legislador do Código Civil reconhece que a prole não é essencial ao casamento, de sorte que a impotência generandi não é causa de anulação do casamento. A esse respeito, Luiz Alberto David Araújo arremata: “o casamento não tem como finalidade a procriação, mas o convívio entre as pessoas. Tanto isso é verdade que a impossibilidade de gerar filhos não é motivo para anular o casamento”.11

 

Quanto ao primeiro argumento, não será procedente se admitirmos que não existe apenas o sexo biológico, mas sim, uma combinação de fatores, inclusive o psicológico, que determinam o sexo de uma pessoa. Evidentemente, o terceiro que casar com o transexual poderá incorrer em erro. No entanto, sempre será permitida ao outro cônjuge a possibilidade de anulação do casamento por erro essencial. O que não se pode admitir é que o Estado proíba o transexual operado de se casar, tratando a sua condição como se fosse um impedimento matrimonial, por exemplo.

 

Sob o manto da Constituição de 1988, que pugna “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, inciso IV), parece não ser possível negar ao transexual a retificação de seu estado sexual, após a realização da cirurgia. Isto porque, se constitui um dos objetivos da República Federativa do Brasil promover o bem de todos sem discriminação, é dever do Estado não só punir atos discriminatórios de particulares, mas também atuar, por meio de seus agentes, fazendo prevalecer a igualdade entre todos.

 

Se o Estado, em autorizando a mudança do prenome e a retificação do estado sexual, tem a possibilidade de evitar que o transexual sofra discriminações, deve fazê-lo para concretizar os ditames da República, sob pena de ser ele mesmo, agente fomentador da discriminação. Neste caso em particular, a própria omissão do Estado pode configurar violação aos direitos humanos.

 

No tocante ao nome, temos que o mesmo é direito personalíssimo do indivíduo, sendo certo que se sujeitar seu titular a situações vexatórias, é lícito que se possa alterá-lo para garantir a livre expressão de sua personalidade no meio social em que vive. A esse respeito, Walter Ceneviva leciona: “uma vez que se constate ser o prenome capaz de expor o seu titular a situações de vexame, a alteração deve ser deferida a seu requerimento com a prova da verificação do vexame”.13

 

Por este motivo, a alteração do prenome no Registro Civil pode ser permitida com fundamento no artigo 55, § único da Lei 6015/1973, uma vez que, após a cirurgia, o transexual passa a apresentar fenótipo do sexo oposto que almejava, não fazendo sentido manter o prenome que não corresponde a sua nova aparência.

 

Ressalte-se que o art. 55º, § único da Lei de Registros Públicos alude aos “prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores”, de forma que o que deve ser avaliado pelo oficial do registro civil é a potencialidade do ridículo, ou seja, não cabem apreciações subjetivas, basta que haja a possibilidade, em tese, de que o titular do prenome, em algum momento de sua vida, seja ridicularizado em função de sua denominação.

 

A esse respeito, devemos atentar, novamente, ao fato de estarmos sob a égide da Constituição de 1988, que consagrou soberanamente o princípio da dignidade humana a penetrar no âmago do Direito Privado. Portanto, a questão da mutabilidade do nome de uma pessoa deve ser analisada à luz da Constituição de 1988. Se o nome expõe a pessoa ao ridículo, evidentemente não se coaduna com o princípio da dignidade humana, o que autoriza, por si só, a sua mutabilidade. Ademais, sendo o nome um elemento da identidade pessoal, está duplamente protegido pela Constituição. Isto porque a Carta Magna, amparada por forte espírito democrático, dedicou aos princípios da liberdade e da igualdade posição de destaque no ordenamento jurídico, de sorte que a palavra-chave do período que se iniciou em 05 de Outubro de 1988 é “pluralismo”.

 

O pluralismo é a expressão máxima dos princípios da liberdade e da igualdade. A liberdade autoriza a coexistência de opiniões, direitos, manifestações, expressões, crenças e valores. Enfim, a liberdade significa, em última instância, a livre manifestação da personalidade do ser humano, ou ainda, a livre afirmação da identidade pessoal. Neste sentido, Luiz Alberto David Araújo arremata: “um estado democrático deve atentar para a multiplicidade de vontades, tendências e individualismo presentes em seu seio”.14

 

Já a igualdade garante que todas as condutas autorizadas pelo princípio da liberdade recebam o mesmo tratamento da lei. Assim, as diversas expressões de identidade pessoal têm o mesmo valor perante o Direito. O princípio da igualdade impede, por exemplo, que, após a realização da cirurgia de modificação de sexo, seja inserida a expressão “transexual” junto aos assentos civis do operado, porque tal fato o sujeitaria a uma rotulação inconstitucional, uma vez que não existe o sexo “transexual”, mas sim, feminino ou masculino. Conforme Luiz Alberto David Araújo, “o transexual operado tem direito ao esquecimento de seu estado anterior, como forma de dignidade enquanto pessoa, pois, ao assumir sua nova vida, não terá de carregar o estigma da transexualidade”.15

 

Desta forma, uma sociedade que se diz pluralista está disposta a abrigar as diversas manifestações de personalidade em coexistência pacífica. É uma sociedade que garante, em igualdade de direitos e de participação, a livre manifestação da identidade pessoal. Claro que o nome e a identidade sexual são fatores inerentes à identidade pessoal e, conseqüentemente, estão protegidos pela Constituição. A esse respeito, Maria Helena Diniz arremata: “a identidade sexual é um princípio constitucional atinente ao direito da personalidade”.16

 

Por fim, devemos ressaltar que o tratamento jurídico do transexual não se restringe à questão do direito ao próprio corpo. Em verdade, toda a problemática que circunda o transexualismo adquire relevância exatamente porque negar ao transexual a possibilidade da cirurgia de redesignação de gênero, bem como as mudanças de nome e de sexo registral, atenta contra vários direitos da personalidade.

 

O transexual tem direito ao próprio corpo, à intimidade e à privacidade (incluindo, aqui, obviamente, a discrição acerca de sua condição), à identidade pessoal (que abrange a identidade sexual), ao nome, à saúde (necessidade terapêutica de realização da cirurgia de transgenitalização), direito à liberdade, à integridade física e moral. Por esse motivo, Luiz Alberto David Araújo diz que se trata de um direito da personalidade multifacetado.17

 

A questão do transexual incomoda porque, em verdade, remonta a um velho e novo problema com o qual a humanidade sempre se mostrou inepta: o exercício da tolerância. Cabe ao Direito, enquanto regulador da vida em sociedade, decidir o melhor caminho para a solução deste impasse: reconhecer a condição da transexualidade, conferindo-lhe tratamento jurídico especial e fazendo com que toda a sociedade aceite esta condição ou fazer com que o transexual conviva eternamente com a sua dualidade interna para se adequar aos padrões sociais vigentes. O Estado deve decidir, necessariamente, conforme o vetor da dignidade humana.

 

4. Conclusões

 

1. O Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito, deve prestigiar o pluralismo e a diversidade, promovendo a coexistência e a convivência das diferentes manifestações de identidade pessoal.

 

2. Conforme a lição da Sexologia Médico-Legal, o sexo de uma pessoa não se limita apenas ao fator biológico, mas, também ao psicológico.

 

3. O transexual é portador de transtorno da personalidade de identidade de gênero, apresentando uma dualidade interna, que se traduz na não aceitação do próprio sexo biológico e na intenção persistente de adequar seu sexo físico ao sexo psíquico.

 

4. Segundo a Resolução nº 1.652 do Conselho Federal de Medicina, a cirurgia de transegenitalização é a etapa mais importante no tratamento do transexualismo. Trata-se de uma exigência médica para promover a saúde psíquica do paciente, permitindo sua integração individual por promover a sintonia necessária entre mente e corpo e sua integração social por permitir que ele se relacione melhor com as outras pessoas.

 

5. O princípio constitucional da dignidade humana fundamenta a autorização da cirurgia de redesignação de gênero, bem como a possibilidade de modificação do nome e de seu estado sexual.

 

6. A não autorização para realizar a cirurgia de mudança de sexo acarreta violação a diversos direitos da personalidade, uma vez que a situação jurídica do transexual corresponde a um direito da personalidade multifacetado.

 

7. O transexual tem direito ao próprio corpo, à integridade física e moral, à saúde física e emocional, à intimidade, à privacidade, ao nome, à igualdade e à liberdade (que abrange a liberdade de identidade pessoal e, esta, a identidade sexual).

 

8. O transexual operado tem direito à mudança do nome e do sexo jurídico, permitindo, ainda, que contraia núpcias, sendo facultado ao cônjuge que anule o casamento por erro essencial, se isto for de sua vontade.

 

9. O exercício da tolerância pelo Estado e por toda a sociedade poderá permitir a integração do transexual e sua convivência com as outras pessoas com a dignidade condizente a um ser humano.

 

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Ana Maria Romano é advogada no Estado de São Paulo. 

 

 



1 Organização Mundial da Saúde é uma agência especializada em saúde, fundada em 07/04/1948 e subordinada à Organização das Nações Unidas.

2 CROCE, Delton; CROCE JUNIOR, Delton. Manual de Medicina Legal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 689.

3 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito. 2ª ed. São Paulo:Saraiva, 2002, p. 230.

4 CROCE, Delton; CROCE JUNIOR, Delton. Op. cit. p. 490.

5 MARANHÃO, Odon Ramos. Curso Básico de Medicina Legal. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 127.

6 ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção Constitucional do Transexual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 47.

7 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Parte Geral. 31ª ed. São Paulo, Saraiva, v. 1, 2000, p.89.

8 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 239.

9 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, v.1, 2005, p. 164.

10 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, v. 1, 2004, p. 36.

11 ARAUJO, Luiz Alberto David. Op. cit. p. 137.

13 CENEVIVA, Walter. Lei de Registros Públicos Comentada. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 137.

14 ARAUJO, Luiz Alberto David. Op. cit. p. 151.

15 Idem. Ibidem. p. 153.

16 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 232.

17 ARAUJO, Luiz Alberto David. Op. cit. p. 68.


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