223 - A Universidade e a sociedade

 
JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA – Juiz de Direito
 

 

Cuida-se de delicada tarefa, a de abordar o tema suscitado à discussão, eis que se trata de analisar (e opto por encetar o método analítico, separando os termos de forma isolada para depois concluir sobre seu conjunto) dois fenômenos poliédricos (figura de linguagem que empresto da geometria para exprimir fenômenos complexos que apresentem mais de uma face, permitindo que se cheguem a variadas conclusões, dependendo do ângulo que se enfoque a questão).

 

Com efeito, e nisso residiria o caráter poliédrico apontado, cuida-se de duas realidades complexas, que podem (e isso é expresso na obra "A Universidade Desafiada", do Prof. J. F. Régis de Moraes, no que se refere às universidades) ser abordadas sob variados enfoques (e, neste texto, pretende-se dar maior enfoque às considerações traçadas pelo aludido sociólogo, e sempre lembrado professor, na sua festejada obra).

 

Acresça-se a isso o aspecto da delimitação espácio-temporal, vez que o presente trabalho não tem foro de universalidade e atemporalidade, mas, ao contrário, pretende-se tecer comentários a respeito do relacionamento entre sociedade e universidade, nos tempos hodiernos, no Brasil.

 

Não é objeto do presente estudo o esgotamento do tema referente às relações entre a Universidade e a Sociedade, mas, seria conveniente, ao menos em sede de se situar a questão, traçar breves linhas a respeito dos limites conceituais de cada um dos termos componentes do trabalho.

 

Nestes termos, a sociedade deveria ser entendida numa acepção mais ampla, envolvendo o conjunto complexo de classes sociais, as mais das vezes heterogêneas, que interage, sob a forma de sistema, de modo participativo, em nosso país.

 

Sobre o tema, aliás, interessante a opinião de Parsons, mencionada por Sílvio de Macedo, para quem, a sociedade seria "um tipo especial de sistema social, situado num universo de sistemas sociais e que atinge o mais elevado nível de auto-suficiência, como um sistema, com relação aos seus ambientes, cuja exigência fundamental com relação às personalidades de seus membros é a motivação de sua participação, onde se inclui a obediência às exigências de sua ordem normativa"[1].

 

Ora, malgrado se possa tratar de um conceito abordando a faceta mais jurídica do poliédrico conceito sociedade, o mesmo já deixa transparecer uma preocupação maior com o aspecto participativo, o que se revelará dado importante no seu relacionamento com a outra realidade conceitual poliédrica a ser abordada, qual seja, a Universidade.

 

Essa, por sua vez, surgida em meados do século XIII (embora alguns autores como João Gualberto de Carvalho Meneses[2], já identificassem escolas de grande renome na Europa dos séculos XI e XII, como o Mosteiro de Salermo, dedicado ao estudo e à prática da medicina, mas, ainda, de forma assistemática), através das bem sucedidas experiências de Bolonha, Paris, Oxford e Cambridge, surgiu de corporações que obtinham do Papa e do Imperador, cartas de privilégio para a propagação de estudos e pesquisas (deve-se atentar para a dificuldade óbvia de se desenvolver tais atividades naquele contexto histórico).

 

Etimologicamente, o termo universidade deriva de universitas magistrorum et scholarium, que designava a corporação autorizada pelos órgãos constituídos ao exercício daquela atividade.

 

E, muito embora, tal experiência seja multisecular na Europa, no Brasil, malgrado já se dispusesse de Escolas Superiores desde meados de 1.808 (Escolas de Medicina do Salvador e do Rio de Janeiro – surgindo os cursos jurídicos, logo após, em 1.827, através da chamada Lei da Boa Razão baixada pelo Visconde de Cachoeira), a primeira Universidade somente veio a ser instalada em 1.934  (São Paulo), inobstante já criada legislativamente desde 1.931 (pelo Decreto n. 19.851 de 11.04.1931).

 

Verifica-se, portanto, a partir daí, um certo descompasso entre as aspirações sociais e a experiência latente, relativamente recente, da vida universitária no Brasil.

 

E, quanto a esse aspecto, peço vênia, novamente, para recorrer às idéias lançadas por Régis de Moraes na obra retrocitada, quando menciona tratar-se de relacionamento conturbado o traçado entre a sociedade e a universidade no Brasil, neste final de século, em decorrência  de vários hiatos e desníveis dentro das próprias universidades pátrias (a começar  pelo par conceitual estabelecido por Philip G. Altbach, que já diferenciava as universidades centrais e as periféricas – no que tange ao papel de desenvolvimento científico das primeiras, relegando às segundas, em maior número que as primeiras, a função distribuidora do saber).

 

Por esta primeira dicotomia conceitual já se pode perceber que, em relação ao papel desempenhado por cada instituição, se poderá aferir um número maior ou menor de expectativas da sociedade (grupo complexo e mutifacetado, no qual, aliás, muito dificilmente haverá qualquer consenso a respeito de qualquer coisa), o que, por razões óbvias, refletirá na qualidade do relacionamento mantido entre ambas.

 

Assim, tender-se-ia a entender conveniente o acompanhamento das instituições centrais, malgrado as mais das vezes voltadas para outras realidades (geralmente situadas fora do país, recebendo grandes somas de dinheiro para pesquisas, laboratórios e bibliotecas – embora não se desconheça ou desmereça a existência de instituições centrais no território nacional, vivendo, muitas vezes, da dedicação dos professores desestimulados pela baixa remuneração e dificuldades orçamentárias para pesquisa), limitando-nos a tecer críticas à massa de instituições periféricas que, muitas vezes, de forma acrítica, transformaram-se em distribuidoras de saber, repetindo os mesmos modelos.

 

Vivemos hoje, no país, desde há muito, uma tendência de importação de estereótipos culturais (modelos conceituais), que refletiria na nossa cultura acadêmica, de modo que tendemos a entender que o tecnicismo utilitarista norte-americano, buscando a especialização isolada em dada área, o que levaria a uma concentração da pesquisa financiada e direcionada para certas corporações de interesse.

 

E, de forma mais complexa, inobstante a negativa oficial do regime, temos observado uma tendência governamental que, cada vez de forma mais acentuada, vem reduzindo os recursos de pesquisas e administração das universidades públicas.

 

E muito embora como advirta Régis de Moraes na obra mencionada, se trate de um fenômeno que venha ocorrendo desde meados da década de 1.970, posteriormente à chamada crise do petróleo, não sendo prerrogativa brasileira (cuida-se de fenômeno que vem sendo observado em outros países do mundo), tem-se percebido que a adoção do chamado neoliberalismo no Brasil, onde o único dado relevante é balanço patrimonial, sem preocupações com aspectos qualitativos, o fenômeno vem tendendo a uma complexidade maior.

 

Com efeito, conforme vem sendo fartamente alardeado pelos meios de comunicação de massa, o país tem vivenciado uma evasão de cérebros, mais propriamente, de um patrimônio intelectual, com a remessa de pesquisadores para fora do país, atraídos por melhores condições de vida e de pesquisa.

 

Tal evasão, obviamente, se refletirá a médio prazo, na própria posição do país no ranking mundial, sobretudo numa sociedade competitiva como a instaurada no mundo globalizado (e como pondera Peter F. Drucker, mencionado por Régis de Moraes na obra em comento, vivemos hoje no que poderia ser chamado uma sociedade pós-empresarial, organizada numa knowledge society, que necessitará, cada vez mais, de trabalhadores especializados e dotados de conhecimento, ou knowledge workers).

 

Existe, portanto, uma premente necessidade de dotar as universidades, sobretudo as públicas (em que pesem as estatísticas demonstrarem o grande fluxo de alunos de classe média alta nessas universidades, as mesmas ainda constituem uma forma democrática de acesso de jovens oriundos de outros extratos sociais a uma educação de qualidade) de recursos que permitam às mesmas a obtenção de padrões de excelência, conduzindo-as à condição de universidades centrais, voltadas não só para a difusão do conhecimento massificado e importado, mas para o fomento da pesquisa e a formação de profissionais aptos à mantença do país em padrões aceitáveis dentro dessa knowledge society.

 

E a sociedade, tomada enquanto realidade poliédrica e complexa, deve estar atenta a essa situação, de modo a não permitir o sucateamento de nossas universidades, sobretudo se atentarmos que a maior parte das críticas assacadas contra as instituições de ensino superior de nosso país possa estar sendo assacada de forma engendrada, visando, justamente, denegrir sua imagem junto ao público em geral, para facilitar a consecução de fins menos nobres.

 

Não que algumas das críticas assacadas não tenham fundamento, tais como as referentes ao caráter hermético de algumas instituições ( voltadas para um culto do cientificismo, em acepção depreciativa do termo, como exagero ), ou para a formação de grupos fechados e isolados, que não contribuam, uns em relação aos outros (como os artistas e cientistas mencionados por Régis de Moraes), mas, o que se adverte é para a superexploração dessas críticas, de forma intencional, por esse ou aquele regime, ou órgão de imprensa, como forma de preparar o caminho para a privatização em alta escala de nossas universidades públicas, ou para que permitamos o seu sucateamento, como formas de obtenção de um balanço positivo, sem sacrifícios aos setores privilegiados da economia nacional (v.g., o sistema bancário, dentre outros).

 

E nem se alegue que se estaria centrando o texto na universidade pública, posto que, conforme é cediço, e nossa experiência vem demonstrando, no setor público existe um maior número de nossas universidades que poderiam ser apontadas como centrais, e que, de um modo ou de outro, acabam influenciando as demais que seriam periféricas em relação à mesma, mas sempre dentro de uma realidade nacional.

 

O que se pretende, através do presente trabalho, seria, a partir da análise de capítulos da obra do Prof. Régis de Moraes, já mencionada acima, se alertar para o sério risco de que, no vácuo de universidades públicas que possam servir de paradigma (ou as chamadas universidades centrais), possamos perder, por completo, nosso referencial, passando a adotar modelos importados, que atendam a interesses que não são os do povo brasileiro, esvaziando nosso capital intelectual, de forma a nos tornarmos cada vez mais dependentes de outros países (sem qualquer pretensão de voltar a um nacionalismo universitário).

 

Essas as razões pelas quais, inobstante nossas universidades até possam sofrer críticas por problemas de somenos importância, deve ser fomentado, de forma cada vez mais candente, o debate entre a universidade e a sociedade, de modo a acentuar o papel da primeira no que concerne à difusão de conhecimentos e fomento de pesquisas, buscando torná-las cada vez mais próximas de universidades centrais, de forma a que fiquemos cada vez menos dependentes do capital intelectual de outros países.

 

Tal preocupação, aliás, não é prerrogativa pátria, posto que, como assevera Peter Mortimore, em interessante artigo publicado na obra Universidade Futurante, o Reino Unido sofreu várias mudanças visando a preservação de seu capital intelectual.

 

Inobstante a adoção de medidas semelhantes a adotadas no Reino Unido pelo documento chamado Higher Education: Meeting the challenge (1.987), pudesse ser entendida como a adoção de um modelo importado, não se pode aplicar uma mentalidade xenofobista em relação àquilo que possa ser aproveitado para a nossa realidade.

 

Sobre tal tema, inclusive, causa espécie, merecendo ser destacada, a importância da interdisciplinariedade na prática universitária, fazendo com que o acadêmico compreenda não só as especificidades de sua área, como também que deve estar inserido num quadro global de compreensão, permitindo a obtenção de conhecimentos mais eficazes para a sua realidade, experiência, aliás, que vem sendo exercida com sucesso na PUC – Campinas, neste curso de mestrado em processo civil.

 

A busca de soluções para o problema apontado acima, ou seja, o abordado na necessidade de ampliar o debate entre universidade e sociedade, polindo-se arestas em nome de um objetivo comum, que seria o fortalecimento de nosso capital intelectual (um dos muitos aspectos que poderia ser analisado sob a ótica de tal poliédrico tema), deve passar por uma análise dos modelos implantados nas chamadas universidades centrais localizadas fora do país, para que, adaptadas suas realidades às realidades pátrias, possamos fortalecer nosso capital intelectual, de modo a que possamos atender aos desafios que a sociedade pós-industrial nos oferece.

 

Referências bibliográficas

 

FRANÇA, RUBENS LIMONGI (COORDENADOR), ENCICLOPÉDIA SARAIVA DO DIREITO, VOLS. 69 E 75, 1.977, SÃO PAULO, EDITORA SARAIVA

 

LEITE, DENISE B.C. (E OUTROS), UNIVERSIDADE FUTURANTE, 1.997, CAMPINAS, EDITORA PAPIRUS

 

MORAIS, J.F. RÉGIS DE, A UNIVERSIDADE DESAFIADA, 1.995, CAMPINAS, EDITORA DA UNICAMP

 

 

JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA é magistrado e professor de graduação e pós-graduação do Creupi; mestre em Processo Civil pela PUC-campinas e especialista em Direito Privado pela USP.

 



[1] MACEDO, Silvio de. Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 69. Saraiva: São Paulo. p. 467.

[2] MENESES, João Gualberto de Carvalho. Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 75. Saraiva: São Paulo. p. 516-517.



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