221 - A Comunicação de massa global e a crise existencial do homem contemporâneo

 
EMERSON IKE COAN - Assistente Jurídico
 

 

1. Introdução

 

Cuidar-se-á aqui de um enfoque centrado na observação de que o homem contemporâneo se encontra numa crise que, embora se queira vê-la como de natureza predominantemente econômica, política ou moral, tem sua raiz fincada em solo existencial, na perplexidade vital de não se saber bem ao certo o que fazer.

 

2. Os avanços tecnológicos e a humanidade perplexa diante do novo

 

De início, para se falar em globalização (termo comumente aceito, dentre outros: “formação global”; “cultura global”; “sistema global”; “modernidades globais”; “processo global”; “culturas da globalização” ou “cidades globais”) é preciso ter em conta que se avalia um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo[1], diferente, pois, da idéia apregoada, em seu tempo, por Marshall Mcluhan, de uma “aldeia global” e do mundo como um povoado homogêneo. É um fenômeno impactante que, sob o estigma de neoliberalismo, mais se assemelha, como colocou Milton Santos, com a “Torre de Babel”.[2]

 

Vive-se num cenário em que simultaneamente há avanços tecnológicos num crescente jamais percebido na História e há uma tendente desconsideração da pessoa humana, o que, por seu turno, leva à banalização da vida, à perda de valores intimamente associados à formação do caráter, do sentimento e da mente, sobretudo quando se torna o maior inimigo de sua consagração em termos éticos.

 

Como bem se pronunciou na oportunidade Miguel Reale:

 

“Somos uma pobre humanidade perplexa à beira do terceiro milênio, exausta, sem rumos certos, procurando agonicamente abrir seu caminho entre os restos das ideologias destruídas pelos incêndios de duas guerras universais. Vivemos, pois, desprovidos de um sentido comum e ideal de vida, em assustadora disponibilidade. (...) Tudo que é anormal, destoante e transgressivo tende, em suma, a converter-se em norma vital coletiva, na insana precipitação de atingir resultados imediatos e escandalosos.” [3]

 

Ora, se se proclama por uma espécie de cidadania mundial, sua plenitude somente se dará com a oportunidade efetiva de participação de todos, primeiro que tudo, nos bens e benefícios sociais básicos (educação, emprego, moradia, comida etc.), como corolário dos valores da solidariedade e da cooperação, enquanto todos, sem exceção alguma, vinculados na ordem planetária a um destino comum, cujo sucesso ou malogro a todos atinge e envolve.

 

Além disso, encontram-se, a título ilustrativo, preocupações como a da aceitação universal de valores ecológicos, em virtude de estar a natureza cada vez mais ameaçada pelas conquistas das ciências e da tecnologia, como o exemplo do “efeito estufa”. E há quem se exprima de forma nada otimista:

 

“Chegamos à encruzilhada de dimensões globais, que se caracteriza, para a maioria da humanidade, por um cotidiano não de ascensão e bem-estar, mas de decadência, destruição ecológica e degeneração cultural.”[4]

 

Se se degenera o meio ambiente, degenera-se o homem, cuja relação com aquele, sem sombra de dúvida, é umbilical. O meio ambiente é componente do direito à vida da pessoa humana e em torno desse direito todos os demais direitos (integridade física, psíquica, intimidade, corpo etc.) gravitam, fazendo com que seu descuido ou extrema vontade de dominá-lo revele que “o inimigo somos nós mesmos”.[5]

 

Nessa linha de raciocínio (sem desmerecer avanços salutares para perpetuação da espécie humana), é da ordem do dia também questões atinentes à biomedicina/engenharia genética, a partir de determinados desafios bioéticos, a saber: projeto genoma humano e medicina preventiva (podendo acarretar a abominável eugenia - reengenharia do homem), biodiversidade, alimentos transgênicos, a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo humano com fins terapêuticos e científicos de pessoa viva ou de cadáver (incluindo o infeliz, mas real, “mercado humano”: tráfico internacional de órgãos); a determinação e mudança de sexo; a eutanásia; o aborto; a reprodução/procriação artificial (ou assistida); e a clonagem que, ainda com amplo espaço na mídia nacional e internacional, causa preocupação quanto à possibilidade de sua realização em seres humanos.[6]

 

É um admirável mundo novo (em alusão a Huxley), pois, ao mesmo tempo em que o devir do progresso humano permite a invenção da novidade, o aumento de conhecimentos e o alargamento das possibilidades de um bem-estar maior, ele traz o risco do imponderável, da agressão à natureza e à espécie humana. E o grande perigo da produção de novidades sem nenhum tipo de refreamento consiste na possibilidade de violação a direitos humanos fundamentais.

 

A ciência e a tecnologia são vistas como que num ‘jogo dos possíveis’ e pernicioso se torna o aspecto de se revelarem como um poder ‘sobre’, e em alguns aspectos ‘contra’, o homem.

 

O receio, e nele reside uma preocupação de natureza ético-política, é o da automação do ser humano ele próprio meio (objeto), desertificado em sua individualidade.

 

Sem olvidar que, a despeito da “fábula” bem contada pela mídia em todos os seus níveis de que o mundo se aproxima de tal sorte a apagar todas as diferenças, há em todo o planeta problemas reais como o desemprego crescente, a pobreza, a fome e o desabrigo, a propagação de enfermidades (incuráveis como a AIDS), a mortalidade infantil, a mazela dos sistemas educacionais, que revelam uma faceta perversa da globalização. Sobre isso:

 

“Há um verdadeiro retrocesso quanto à noção de bem público e de solidariedade, do qual é emblemático o encolhimento das funções sociais e políticas do Estado com a ampliação da pobreza e os crescentes agravos à soberania, enquanto se amplia o papel político das empresas na regulação da vida social.”[7]

 

De fato: os Estados nacionais, embora estejam (salvo exceções imperialistas) procurando cada vez mais acordos nas relações internacionais, não podem esperar por um ‘fim do mundo’ de sociedades organizadas em territórios fixos, com um esvaziamento permanente dos espaços públicos (neste item associado à degradação da política e a descrença em suas instituições) e de suas identidades, relegando suas soberanias a entidades privadas com fito predominantemente lucrativo, a fim de que estas, sob o império de uma ideologia do consumo desenfreado de bens, serviços e marcas, por força da publicidade, vendam a ilusão de um mundo em que os acontecimentos sejam de fato em tempo real e os padrões de comportamento sejam homogêneos.

 

Assim, acertadamente Milton Santos denomina de globalitarismo esse uso indiscriminado, por parte das empresas midiáticas, de uma publicidade incentivadora de uma competitividade perversa para consumo de ilusões, e coloca:

“E a confusão dos espíritos impede o nosso entendimento do mundo, do país, do lugar, da sociedade e de cada um de nós mesmos.”[8]

 

Como diz Canclini:

 

“atualmente configuram-se no consumo, dependem daquilo que se possui, ou daquilo que se pode chegar a possuir. As transformações constantes nas tecnologias de produção, desenho de objetos, na comunicação mais extensiva ou intensiva entre sociedades – e do que isto gera na ampliação de desejos e expectativas – tornam instáveis as identidades fixadas em repertórios de bens exclusivos de uma comunidade étnica ou nacional.”[9]

 

E prossegue:

 

“O desafio é, principalmente, revitalizar o Estado como representante do interesse público, como árbitro ou assegurador das necessidades coletivas de informação, recreação e inovação, garantindo que estas não sejam subordinadas à rentabilidade comercial.”[10]

 

E sobre a assertiva de que toda nova mídia implica exclusão, não se pode descartar o necessário empreendimento governamental e a intervenção da sociedade civil (neste plano com a atuação de ONGs, por exemplo) a fim de atenuá-la, sobretudo no campo educacional, com movimentos de resistência, com o intuito de se reconstruir um ‘multiculturalismo democrático’[11] e eventualmente desacelerar o crescente mau humor[12] que predomina (entre os mais esclarecidos e principalmente entre os mais necessitados) nos dias de hoje.

 

Nota-se que:


“Está surgindo um imperativo comum de movimentos díspares contra as corporações multinacionais: o direito que têm as pessoas de saber. Se as multinacionais se tornaram maiores e mais poderosas que os governos, prossegue o argumento, então por que não deveriam estar sujeitas aos mesmos controles de responsabilidade e transparência que exigimos de nossas instituições públicas?”[13]

 

Retoma-se, pois, o enfoque acerca do quão paradoxal é a idéia de globalização, segundo a qual seja determinante a universalização de todos os âmbitos das atividades humanas (econômica, financeira, tecnológica, científica, política, cultural etc.), uma vez que, por um lado, pode gerar progresso aos Estados a partir de certos intercâmbios e, por outro, pode acentuar irreversivelmente (se é que já não está acentuando) a exclusão social, o desemprego, os nacionalismos agressivos. Enfim, o reverso da medalha.

 

3. A comunicação de massa e a cultura do espetáculo

 

Não parece ser, porém, esta a pauta da mídia global, porquanto as situações cotidianas, que mereceriam maior atenção do homem-cidadão, se reduzem ao paradigma do tempo on-line, que, a pretexto de democratizar a informação, mais coloca em jogo a sua credibilidade, ao se concebê-la a partir de um mero fetiche da velocidade.

 

Sobre isso, Jean Baudrillard, ao falar em simulacros a partir de simulações, aprofunda teoricamente a questão dos processos de comunicação de massa envolvendo o real e o virtual. Para ele, hoje, com o avanço da tecnologia e dos meios de comunicação, muitas vezes se confunde a referência e sua simulação.

 

Na simulação (originalmente de ‘simular’, isto é, fingir ter o que não se tem) de uma situação qualquer, não se sabe muitas vezes se está sendo apresentado um fato verdadeiro (real) ou falso (imaginário). E esse ato de simular ou a condição simulada é por ele definido como um simulacro.[14]

 

Daí que as pessoas deixam de compreender a representação do verdadeiro que originou o simulacro, de tal modo que o sistema real está se desertificando. Há uma distância entre o real e o virtual, uma vez que existe:

 

“a desertificação sem precedentes do espaço real e de tudo o que nos cerca. Isso valerá para as auto-estradas da informação e também para as de circulação. Anulação da paisagem, desertificação do território, abolição das distinções reais. O que até agora se limita ao físico e ao geográfico, no caso de nossas auto-estradas, tomará toda a sua dimensão no campo eletrônico com a abolição das distâncias mentais e a compressão absoluta do tempo.”[15]

 

Resta apenas a informação desprovida de valor, sentido ou conteúdo, que será esquecida pelo receptor. Ademais, o ponto mais crítico, visto por ele, reside no fato de que o virtual se caracteriza não somente por eliminar a realidade, mas também por eliminar a imaginação do real, do político, do social – não somente a realidade do tempo, mas também a imaginação do passado e do futuro – e “a isso chamamos em função de uma espécie de humor negro, de ‘tempo real’”.[16]

 

No entanto, esse enfoque não deve ser levado às últimas conseqüências, visto que resultado de uma construção predominantemente teórica (importante, frise-se), ao se pôr fim a certas estruturas de poder e à possibilidade de algum tipo de reação efetiva. Pelo contrário.

 

Some-se que nesse contexto da Era Digital, relacionada com a dependência inevitável ao mundo virtual ou à sociedade digital, grande parte das tarefas do nosso dia-a-dia são transportadas para a rede mundial de computadores (Internet), ocasionando fatos e suas conseqüências, jurídicas e econômicas, assim como ocorre no mundo físico.

 

É o lugar da chamada civilização cibernética ou da sociedade informática, cujo receio é do de um totalitarismo tecnológico (à guisa daquele vislumbrado por Orwell), no qual “donos do poder informacional” comandem as ações humanas em suas esferas pública e privada.[17]

 

E, exatamente por isso (ou seja, pela situação existencial na qual a técnica é mais aceita do que compreendida) que não se deve confundir quantidade com qualidade ou informação com conhecimento, pois:

 

“Não se deve, na era da Internet, confundir conhecimento - o que é sempre a possibilidade de compreendermos o que se passa à nossa volta - com informação que é, no essencial, o cabedal de descrições que nos mostra como os “fatos” vêm ocorrendo. A informação é o como, o conhecimento o porquê. O conhecimento sem informação é vazio e a informação sem conhecimento é cega.”[18]

 

Não bastasse isso tudo, ou em função mesmo desse paradoxo próprio da pós-modernidade[19], se está diante de uma mídia espetacular, que, em vez de se prestar à informação esclarecedora e racional do mundo contemporâneo prefere se valer do entretenimento descompromissado[20], na mais adequada expressão da indústria cultural, porquanto “questões embaraçosas sobre sua qualidade, sobre sua verdade ou não-verdade, questões sobre o nível estético de sua mensagem são reprimidas, ou pelo menos eliminadas, da dita sociologia da comunicação.”[21]

 

Sob tal enfoque da questão, procura-se domesticar o imaginário, tendo em vista a fabricação do consenso ou indústria da manipulação de consciências, a partir de uma superexposição de informações, o que se faz presente como nunca num enfraquecimento ou total apagamento da fronteira entre o real e o fictício, ao prevalecer, pois, o império das imagens.

 

Assiste-se, em geral e de forma acomodada, plenamente a época do imaginário, pois se vivem imagens (ou estereótipos, por elas ditados), não a realidade, e o que se fixa na memória do espectador midiático são flashes.

 

José Arbex Jr. coloca que:

 

“a convivência da amnésia com a memória é o mecanismo fundamental do jogo praticado pela mídia – a qual, basicamente, constitui um imenso banco de dados que, aparente paradoxo, aposta permanentemente no esquecimento como condição básica para apresentar o ‘velho’, o ‘já visto’ como o ‘sempre novo’.”[22]

 

Ignacio Ramonet, por sua vez, ressalta que as características do discurso das grandes empresas midiáticas são: a rapidez, a fim de evitar o tédio (diga-se a reflexão); a simplicidade, com um vocabulário pobre e com uma construção sintática simples, portanto de fácil assimilação por um número grande de pessoas (a massa); a espetacularização, com a dramatização, pautada pela superexposição de situações que produzam euforia ou tristeza, enfim uma expressão apelativa ou emocional. Características essas de um discurso (publicitário, sedutor) dirigido às crianças, logo infantilizante[23], contaminado de mentiras e falácias, necessitando, por parte de seus responsáveis (a partir de manifestações críticas do corpo social), de uma ecologia da informação.[24]

 

Evidentemente esse item cabe para se pensar e se repensar a mídia, analítica e criticamente, sob o aspecto da sociedade do espetáculo, sobremaneira no que tange a como o cotidiano brasileiro e internacional é manipulado e como um acontecimento qualquer se transforma em notícia por meio de mecanismos usados para transmitir (ou “transmentir”) os fatos, haja vista o apelo publicitário ostensivo, fazendo com que em tudo domine o descartável, dos bens de consumo propriamente ditos, passando pelos compromissos de mais variados foros - sociais, familiares, afetivos, amizade, coleguismo, até, e o que é pior, a pessoa como se fosse coisa; enfim, tudo se torna valor de troca.

 

Como bem argumenta Beatriz Sarlo:

 

“A cultura sonha, somos sonhados por ícones da cultura. Somos livremente sonhados pelas capas de revista, os cartazes, a publicidade, a moda: cada um de nós encontra um fio que promete conduzir a algo profundamente pessoal, nessa trama tecida com desejos absolutamente comuns. A instabilidade da sociedade moderna se compensa no lar dos sonhos, onde com retalhos de todos os lados conseguimos operar a ‘linguagem da nossa identidade social.’”[25]

 

Régis Debray aponta, no particular aspecto da televisão, que nessa época da videosfera, a tela é o panteão audiovisual para seduzir, em forma de manipulação, o telespectador por uma comunicação de massa controlada por empresas[26] (o que, por sinal, se aplica a todas as mídias).[27]

 

É de se ter em conta ainda que principalmente a partir do final dos anos 80, as novas tecnologias impulsionaram o crescimento das comunicações em todo o mundo, com a multiplicação do número de emissoras e satélites domésticos, bem como dos meios de transmissão e recepção de imagens, cujos montantes de capital para esse desenvolvimento acentuaram a tendência à concentração oligopólica, sendo certo que “a mídia, em qualquer país, é americana, da mesma forma que o espaguete é italiano e o críquete é britânico.”[28] Esse estilo norte-americano torna-se hegemonia mundial.

 

Dentro dessa perspectiva, observa-se que estratégia de poder da mídia assume uma força de banalização da vida e do ser humano, ao colocá-lo, como diz Guy Debord, em:  

 

“condição de vedete (...) ‘do vivido aparente’, o objeto de identificação com a vida aparente sem profundidade, que deve compensar o estilhaçamento das especializações produtivas de fato vividas. As vedetes existem para representar tipos variados de estilos de vida e de estilos de compreensão da sociedade, livres para agir ‘globalmente’ (...) Aparecendo no espetáculo como modelo de identificação, ele renunciou a toda qualidade autônoma para identificar-se com a lei geral de obediência ao desenrolar das coisas.”[29]

 

Não é difícil se lembrar do filme “O show de Truman: o show da vida”, sobre um homem cuja vida é um show contínuo de televisão desde o seu nascimento. Ele nem imagina que sua antiquada cidade é um estúdio gigantesco, dirigido por um visionário produtor/diretor/criador, nem que as pessoas que vivem e trabalham lá são atores de Hollywood, e que até sua entusiasmada esposa é uma atriz contratada. Ele está sempre ‘no ar’ sem saber. E, guardadas as devidas proporções, vêem-se hoje programas reality(!?) show(!!) como Big Brother Brasil (lembrando que, com diversas disposições contratuais, todos ali sabem que estarão 24 horas ‘no ar’), pelos quais se percebe que se é famoso meramente por ser famoso, ou seja, não é preciso reunir qualificações ou atributos pessoais (intelectuais, científicos, artísticos, lúdicos ou desportivos), basta aparecer e permanecer, de preferência ‘em tempo real’, exposto na televisão.

 

Repita-se que a defasagem entre o progresso tecnológico e o progresso humano gera sentimentos de perplexidade (crise existencial) e, sobretudo, de uma automação da pessoa, também vista como meio (objeto), despersonalizando-a. Neste ponto, cabe lembrar o antropólogo Roberto Damatta, para quem, as máquinas:

 

“podem se substituir mutuamente, a mais moderna sendo superior e mais eficiente do que as anteriores. Mas será esse processo cumulativo que governa a esfera tecnológica transferível para a vida social ou moral? Em outras palavras, está a humanidade correlacionada aos seus progressos materiais? Parece que não. Muito pelo contrário, tudo indica que a cada novo passo dado na área técnica, aumentam os problemas morais porque os homens, afinal de contas, continuam presos às suas mais elementares fobias e desejos (...) A moderna tecnologia nos faz ver e ouvir o que se passa de bom e de perverso no mundo. Mas ela, infelizmente, não pode nos desligar de nossa indignação moral, deixando que nossa consciência “esfrie”, tal como ocorre com os aparelhos de televisão que veiculam essas notícias”.[30]

 

De fato: o processo da técnica coloca em toda a sua profundidade problemas filosóficos, sociais, econômicos e religiosos do homem. Aquilo que todo homem um dia ou outro deve enfrentar: o problema daquilo que é e daquilo que deve ser , do seu destino no mundo e entre os homens. Deve-se conceber, de todo modo, o homem como senhor e não mero escravo da tecnologia, para que esta atue em seu favor e não contra ele, automatizando-o. E, a partir desse ponto de vista, a própria rede (Internet) poderia servir, apesar de ainda se mostrar como um aparato deveras fragmentado com pessoas atuando com propósitos muitas vezes desorientados ou meramente festivos, de mecanismo de resistência.[31]

 

Sobre a possibilidade de resistência, em meio a tanto pessimismo, é preciso acreditar no ser humano, dando-lhe condições de conscientização (mediante produção intelectual, docência universitária, participação político-partidária, sindical, ONGs, movimentos sociais, intercâmbios internacionais pela rede, fóruns sociais etc.) de maneira que a visão seja não só passivamente global, mas ativamente sistêmica.

 

Eis as palavras de Milton Santos:

 

“O processo de tomada de consciência – já o vimos – não é homogêneo, nem segundo os lugares, nem segundo as classes sociais ou situações profissionais, nem quanto aos indivíduos. A velocidade com que cada pessoa se apropria da verdade contida na história é diferente, tanto quanto a profundidade e coerência dessa apropriação. A descoberta individual é, já, um considerável passo à frente, ainda que possa parecer ao seu portador um caminho penoso, à medida das resistências circundantes a esse novo modo de pensar. O passo seguinte é a obtenção de uma visão sistêmica, isto é, a possibilidade de enxergar as situações e as causas atuantes como conjuntos e de localizá-los como um todo, mostrando sua interdependência (...) É a partir dessa visão sistêmica que se encontram, interpenetram e completam as noções de mundo e de lugar, permitindo entender como cada lugar, mas também cada coisa, cada pessoa, cada relação dependem do mundo.[32]

 

De modo que a consciência de ser num novo mundo exigirá, ainda que em passos lentos, um devir em que se possa superar a atual crise existencial da humanidade, perplexa diante destes múltiplos acontecimentos não esclarecidos racionalmente pelos detentores do poder de propagar as informações para que se perpetue a concepção (mítica, inclusive[33]) de uma cidadania mundial consumidora dos mesmos sonhos, ilusões e mercadorias.

 

Tal processo condiz ao momento histórico dessa Humanidade, de cuja reflexão fará emergir ou restituir uma nova concepção filosófica, ao eventualmente conciliar o humano com o tecnológico-informacional, tendente a suprir as desigualdades reais da ordem planetária.

 

Será preciso (apesar de todas as dificuldades acima expostas e em grau otimista), como expõe Cláudio Novaes Pinto Coelho, um posicionamento pelo qual:

 

“A possibilidade de resistir à publicidade, de escapar da sua influência, depende da retomada da capacidade de diferenciação entre as necessidades reais e as necessidades criadas artificialmente.”[34]

 

4. Conclusão

 

A sensação de que os meios de comunicação de massa, sobretudo pela sedução publicitária, mudam cada pessoa ou de que a existência está por eles pautada merece, de fato, uma reflexão teórica e crítica (tentando se ‘desconectar’ desse ‘estado hipnótico’) acerca de como funcionam, pela idéia-núcleo de transmissão (e, por conseguinte, de público-alvo, ao partir do princípio de uma comunicação manipulatória) e de que como eles tendem a banalizar os acontecimentos da vida, enfim, o próprio ser humano, ao constatar-se que tudo tende a se converter em mercadoria.

 

Aposta-se, pois, numa composição entre ética, política e cultura da mídia, destacando-se, pelo esclarecimento contínuo, aquilo que de positivo essa possa oferecer/vender a seus usuários/consumidores/cidadãos, enfim, a receptores/consumidores/cidadãos conscientes para que possam efetivamente escolher entre aquilo que lhes é oferecido/vendido.

 

5. Referências bibliográficas



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EMERSON IKE COAN é mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; assistente jurídico de desembargador no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; mestrando em Comunicação na Contemporaneidade na Faculdade Cásper Líbero, pela qual é especialista em Teoria e Técnicas da Comunicação; conciliador e mediador judicial pela Escola Paulista da Magistratura.

 



[1] Como expõe Boaventura de Sousa SANTOS, “Os processos da globalização” In: “A globalização e as Ciências Sociais”. SANTOS, Boaventura de Sousa (org.), pp. 25-26.

[2] “Por uma outra globalização”, p. 17.

[3] “A civilização do orgasmo” In: “Paradigmas da cultura contemporânea”, pp. 132-133.

[4] H. P. MARTIN & H. SCHUMANN, “A armadilha da globalização”, p. 47.

[5] Bertrand SCHNEIDER apud H. P. MARTIN & H. SCHUMANN, ob. cit., p. 54.

[6] Ver os nossos: “Biomedicina e Biodireito. Desafios bioéticos. Traços semióticos para uma hermenêutica constitucional fundamentada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida” In: “Biodireito: ciência da vida, novos desafios”, pp. 246-266; e “O Direito à Vida e a Dignidade da Pessoa Humana na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988” In: “Site” da Escola Paulista da Magistratura, Seção “Artigos” (item 175).

[7] Milton SANTOS, ob. cit., p. 38.

[8] Idem, ibidem, p. 46.

[9] “Consumidores e cidadãos”, p. 15.

[10] Idem, p. 254.

[11] Idem, p. 265.

[12] Naomi KLEIN, “Sem Logo: a tirania das marcas num planeta vendido”, p. 368.

[13] Idem, ibidem, p. 371.

[14] “Simulacros e Simulação”, p. 13.

[15] “Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem”, p. 24.

[16] Idem, p. 72 - o destaque pertence ao original.

[17] Ver os nossos: “@ Internet e o direito à privacidade na sociedade do imaginário” In: “Revista Ciências Humanas”, ano X, v. 10, n. 2, julho-dezembro de 2004, pp. 91-97; e "Proteção constitucional da privacidade e a Internet" In: “Site” da Escola Paulista da Magistratura, Seção “Artigos” (item 210).

[18] Alberto OLIVA. “Os trovões do acaso”, Jornal da Tarde, 27.05.96, p. 2A.

[19] E, embora se caracterize por um complexo de fenômenos desprovidos de profundidade, substância e significado, perdidos na intensidade e na vacuidade do momento, portanto sem nexo com o passado, é possível vasculhar neles ideologia e significados polissêmicos, como sustenta Douglas KELLNER, “A cultura da mídia”, p. 302.

[20] “Em toda parte do mundo é a mesma coisa, e as corporações têm a vantagem adicional de controlar os próprios meios de comunicação, que seriam os veículos nos quais os cidadãos esperariam encontrar críticas e discussão de políticas de mídia numa sociedade livre” (Robert W. McCHESNEY, “Mídia Global, Neoliberalismo e Imperialismo” In: “Por uma outra Comunicação”. MORAES, Dênis de - org. -, p. 231).

[21] T. W. ADORNO, “A indústria cultural”, p. 95-96.

[22] “Showrnalismo”, pp. 37-38 – destaques no original.

[23] “O Poder Midiático” In: “Por uma outra Comunicação”. MORAES, Dênis de (org.), p. 249.

[24] Idem, p. 252.

[25] “Cenas da vida pós-moderna”, p. 25 - negritei; o destaque final pertence ao original.

[26] “O Estado sedutor: as revoluções midiológicas do poder”, p. 71.

[27] “é o aparato ideológico da globalização (...) é o aparato midiático em seu conjunto. Quer dizer, o que a imprensa diz a televisão repete, o rádio repete, e não apenas nos noticiários, mas também nas ficções, na apresentação de um tipo de modelo de vida que se deve apresentar” (Ignacio RAMONET, ob. cit., pp. 246-247).

[28] José ARBEX JR., ob. cit., p. 99.

[29] “A sociedade do espetáculo”, pp. 40-41 – os destaques pertencem ao original.

[30] “Progresso técnico, progresso moral?”, Jornal da Tarde, 04.04.97, p. 2C - negritei.

[31] É o que observa Naomi KLEIN, ao constatar que as instituições tradicionais que antes organizavam os cidadãos em grupos ordenados e estruturados estão todas em declínio: sindicatos, religiões, partidos políticos. Segundo diz, a Internet é capaz de levar dezenas de milhares de pessoas a se reunirem na mesma esquina, cartazes nas mãos, mas menos apta a ajudar aquelas mesmas pessoas a formar um consenso sobre o que estão de fato procurando antes que formem as barricadas – ou depois que as deixam; ela “não está se provando particularmente útil na tarefa de levá-los a um estágio mais profundo” (ob. cit., p. 485).

[32] Ob. cit., p. 169.

[33] Roland BARTHES estabelece que todo processo comunicacional, como produção cultural e de sentido, compreende transmissão de idéias, sendo determinadas mensagens de dimensão inconsciente e o problema é o de que, nesse processo de circulação e consumo de sentidos vividos pelos usuários da sociedade, estes sejam afetados pelos estímulos e, em conseqüência, passem aceitar a sucessão de mudanças (impelidas para o consumo) de uma forma natural, inocente ou inconsciente (“Mitologias”, p. 183).

[34] “Publicidade: é possível escapar?”, p. 8.


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