219 - O montepio civil e a igualdade de gêneros


 
MARCO ANTONIO GOMES DA SILVA – Advogado
 

 

1. Introdução. 2. Breve histórico. 3. Panorama contemporâneo. 4. Avaliação de compatibilidade do montepio face ao ordenamento jurídico. 4.1. Exame do benefício sob o prisma da discriminação positiva. 5. Conclusão.

 

 

1. Introdução



Novamente, ao ensejo de um novo ano, vem à balha a recorrente discussão acerca do corte de gastos públicos. Dessa feita o cenário foi determinado pela perda de arrecadação com o fim da contribuição provisória sobre movimentações financeiras – CPMF. Nesse contexto, vem-nos à mente a contenção das despesas de natureza previdenciária com ênfase no setor público. Isto porque, dada rigidez de parte substancial do gasto público, tradicionalmente os governos atacam as chamadas despesas correntes. É de comum sabença, entretanto, que aludidas ações possuem efeito mais midiático, e pouca eficácia no efetivo controle da despesa pública.



Passemos, dessarte, ao ponto principal. Visando deitar luzes sobre a questão, traçaremos breves considerações acerca do benefício previdenciário em foco, o qual contempla, ainda nos dias em curso, justamente os estamentos incumbidos de distribuir e zelar pela observância dos preceitos de justiça na esfera federal. Cuidaremos, então, do montepio civil federal, ainda aplicável à magistratura da União – juízes federais, tribunais regionais federais, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, e bem assim ao Tribunal de Contas da União. Aludido instituto foi também, por legislação posterior, deferido aos magistrados do Distrito Federal e respectivo tribunal de contas.



O ponto específico que originou as ainda existentes discrepâncias da vantagem refere-se às causas de cessação do estipêndio pensional descritas no art. 20 do Decreto nº 22.414, de 30 de janeiro de 1933[1], as quais autorizam a permanência do pagamento do benefício a pessoa do sexo feminino, se solteira, o que, na prática, torna sua percepção vitalícia.



2. Breve histórico



O benefício foi criado, inicialmente, por meio do Decreto nº 942-A, de 31 de outubro de 1890, o qual aprovou o regulamento do “montepio obrigatório dos empregados da Fazenda da República dos Estados Unidos do Brazil”. Mais adiante foi, paulatinamente, sendo estendido aos empregados dos demais estamento do então nascente serviço público republicano.  Foram exemplos da aludida prática os Decretos de números 1.077, de 27 de novembro de 1890[2], e 3, de 8 de agosto de 1891[3].



Mais adiante, a espécie pensional veio, a partir do Supremo Tribunal Federal, conforme o disposto pelo Decreto nº 5.137, de 5 de janeiro de 1927[4], a ser incorporada aos direitos de natureza previdenciária da magistratura em geral. Prova disso, é nos anos que se seguiram, outros segmentos foram paulatinamente contemplados com a previsão legal em igual sentido, v.g. Lei nº 3.058, de 22 de dezembro de 1956, Lei nº 6.554, de 21 de agosto de 1978, Lei nº 7.034, de 5 de outubro de 1982, dentre outras.

Digno de nota é mencionar as razões do Veto oposto pelo então Presidente da República, Itamar Franco, ao art. 267 do projeto que originou a Lei Complementar nº 75, de 1993, contido na Mensagem nº 269, de 1993, haja vista o dispositivo pretender a ampliação da vantagem aos membros do Ministério Público Federal:

O artigo é contrário ao interesse público, uma vez que objetiva assegurar privilégios, relativos ao Montepio Civil da União, inicialmente restritos aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, posteriormente propiciados a membros da magistratura federal. A extensão pretendida importa em tratamento discriminatório e, por outro lado, implicará o aumento de responsabilidade do Tesouro, sem existência de correspondente fonte de recursos.

Sob o ponto de vista sociológico, instituto da espécie materializa um traço do atávico patrimonialismo estatal amiúde presente em nossa cultura, e que se materializa na vertente previdenciária pública. É esclarecedor o excerto da obra de Orlando Gomes[5], que não se prejudica por dissertar sobre tópico do direito civil anterior ao hoje vigente, mas contemporâneo à norma objeto de análise:



No campo do direito hereditário, a preocupação pela estabilidade do grupo familiar ostenta-se em traços berrantes. Para facilitar a conservação do patrimônio formado pelo chefe da família e atender à preocupação, muito difundida, de garantir o futuro dos filhos, preservando-os da adversidade ou prevenindo-lhes a estroinice, permite a substituição fideicomissária, considerada obsoleta já àquele tempo, e confere ao testador o direito incondicional de gravar os bens dos herdeiros, mesmo os que constituem a legítima, com a cláusula de inalienabilidade vitalícia. Opõe-se, com essas permissões, que têm sido largamente usadas, ao princípio da livre circulação dos bens, um dos postulados básicos da ordem econômica e social que disciplina no plano das relações privadas.





3. Panorama contemporâneo



Espécies previdenciárias assemelhadas já tiveram assento no acervo jurídico nacional.



Foi o caso dos servidores públicos federais ainda sob a Lei nº 1.711, 28.10.1952, a qual estabelecia, no parágrafo único do art. 5º, que a “filha solteira, maior de 21 (vinte e um) anos, só perderá a pensão temporária quando ocupante de cargo público permanente”.  Pertine salientar que aludida norma legal veio a ser revogada, tacitamente, pelo advento do art. 217 da Lei nº 8.112, de 11.12.1990[6], coerente, aliás, com o advento da então recente Constituição de 1988.

             

De igual forma, em relação aos militares da União, a Lei nº 3.765, de 04.5.1960, regulando as pensões militares, concedeu ao estamento militar o benefício. Ademais, o instituto veio a ser objeto de substanciais alterações por meio da Medida Provisória nº 2.215-10, de 31.8.2001, ainda em tramitação no presente momento, a qual excluiu o benefício para os militares ingressos nas Forças Armadas após 29.12.2000, mantendo-o, contudo, para os demais, mediante contribuição adicional para a pensão militar[7].



Verifica-se, portanto, em ambos os casos, que as normas autorizativas, resguardados o direito adquirido, e até mesmo a chamada expectativa de direito na segunda hipótese, não mais encontram-se vigentes, à exceção, portanto, do montepio judiciário.



4. Avaliação de compatibilidade do montepio face ao ordenamento jurídico



Chega-se, portanto, ao escopo maior do trabalho, qual seja avaliar a adequação do instituto face ao ordenamento jurídico em vigor.



A tarefa segue por duas vertentes. A primeira considera benefício dessa natureza como instituto possivelmente concordante com o macrossistema previdenciário brasileiro e, em seguida, busca fixar um diálogo com o princípio da isonomia dos gêneros masculino e feminino, sem descurar da busca de situações exemplificativas ainda existentes no ordenamento jurídico nacional. O segundo enfoque realiza sondagem acerca do instituto como medida excepcional, e dissonante ao sistema jurídico, porém, sob olhar mais atualizado, incorporaria espécie de ação afirmativa ou discriminação positiva em matéria de gênero.



Assim, conforme exposto, o sistema previdenciário brasileiro contempla, já na letra da Constituição, discriminações assemelhadas à espécie. É, com efeito, o caso do art. 201, § 7º, da Constituição, ao dispor sobre regras de aposentação no regime geral da previdência – em que se reduz o prazo para o segurado feminino em cinco anos. Disposição similar consta do art. 40 da Carta em se cuidando dos requisitos para o jubilamento no setor público.



Por oportuno, cumpre salientar duas outras discriminações constantes da Lei Maior, quais sejam: proteção ao mercado de trabalho da mulher (art. 7º, XX) e a  isenção do serviço militar obrigatório (art. 143, § 2º). Ora, a título de comentário, ambas distinções encontram supedâneo na razoabilidade.



Retroagindo a passado recente, verifica-se a patente desvantagem competitiva da mulher no mercado de trabalho, seja pela possibilidade de melhores colocações, seja pelo salário até os dias de hoje inferiores ao do homem[8].  Além do mais, pesa questão de natureza sociológica, vez que a mulher há algumas décadas praticamente exerceu quase que exclusivamente o honroso, e nada simples, papel de dona de casa, cujas tarefas quase sempre foram vistas como de somenos importância.   



No que toca ao serviço castrense obrigatório, a mulher somente ao início dos anos oitenta do século passado ingressou no serviço ativo das forças armadas. Nesse panorama, o Exército brasileiro desde meados da década de 1990 instituiu o serviço militar voluntário para pessoas do sexo feminino, sempre em atividades ligadas à área de saúde. Quanto ao serviço militar obrigatório, aplicável ao sexo masculino, cuja exigência nada tem a ver com grau de profissionalização qual o feminino, em que pese a disposições legal e constitucional na direção da compulsoriedade, na prática esse já é facultativo dada a magnitude da dispensa dos contingentes que comparecem ao chamamento para o serviço militar obrigatório, haja vista a carência de recursos financeiros para o regular desenvolvimento da atividade.



Vencidas as questões preambulares, cuidemos da delimitação do conceito de isonomia entre gêneros. CANOTILHO (2003, p. 426-427), ao discorrer sobre o princípio da igualdade, enumerou duas vertentes para a respectiva materialização: a primeira, igualdade na aplicação do direito, onde “as leis devem ser executadas sem olhar as pessoas”; na segunda, cuidou da igualdade quanto à criação do direito, essa relacionada diretamente ao objeto em comento, pois que a lei, considerada emanação de vontade do legislador, per se, deve tratar igual a todos os cidadãos.



Ainda nesse segmento, o Ilustre constitucionalista português estabeleceu uma divisão estratificada em três níveis quanto à criação do direito igual: a primeira, como expressão do princípio da justiça pessoal – onde “para todos os indivíduos com as mesmas características devem prever-se (...) iguais condições ou resultados jurídicos”. Visto sobre esse prisma, a questão não se mostra resolvida, pois ensejaria, como no passado, suporte a discriminações intergrupais; um segundo nível de observação seria a exigência de igualdade material por meio da lei. Nesse estágio, deve-se tratar “igual o que é igual e desigualmente o desigual”. A solução, porém, não se esgota no enunciado descrito. Questiona-se, em outra via, “o que é que nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de forma igualmente justa ?”; com efeito, chega-se ao terceiro estágio, chamado “igualdade justa”, onde a aplicação da igualdade pressupõe um juízo e um critério de valoração. Dessarte, o pressuposto do raciocínio a ser levado a efeito é que o critério de distinção não pode ser arbitrário – daí a cláusula de proibição geral do arbítrio.



Mais adiante, CANOTILHO (2003, p. 428) arremata o que seria violação arbitrária da igualdade jurídica: a negativa de fundamento sério para a distinção; a discriminação não tiver sentido legítimo; e o estabelecimento da diferenciação sem fundamento razoável. Esse último dado, por certo a ensejar o exercício de valoração.



Conecta-se ao pensamento antes descrito o magistério de QUEIROZ (2002, p. 113) para quem, o exercício de valoração propiciado por intermédio do apelo à razoabilidade no controle das distinções, face ao princípio da igualdade, poderia ser concretizado a partir do seguinte esquema: primeiramente o “teste de racionalidade” e, em seguida, o “teste de razoabilidade”.



O primeiro consistiria em apurar a adequação entre meios utilizados e fins colimados. Prossegue a Autora asseverando “é irracional algo que pretende ser um meio para alcançar um fim e, na realidade, nada tem a ver com a consecução desse fim. (...) O juízo será de adequação do preceito em causa ao princípio da igualdade. Este ‘exige que se analisem as razões pelas quais o legislador crê necessário singularizar uma determinada situação, no sentido de poder contrastar a continuidade dessas razões com as finalidades constitucionalmente legítimas, as quais acabam por se amparar e resolver, em último termo, sobre a proporcionalidade que guarda o fim prosseguido com a diferenciação estabelecida (...)”. 



Já no aspecto pertinente ao “teste da razoabilidade”, QUEIROZ ainda destacou consistir em “examinar directamente as normas promulgadas introdutoras da desigualdade para que se possa, a partir destas, passar à apreciação dos motivos ou razões que se alegam em sua justificação, se estes se encontram ou não em conformidade com os valores constitucionais. Esta orientação, proveniente do Tribunal europeu dos Direitos do Homem - a razão objectiva identificada com a não-arbitrariedade -, é hoje prática corrente na Alemanha, em Itália, em Espanha e também entre nós[9]. Pressupõe a realização de uma ‘ponderação’ ou ‘contrapeso’ entre o valor da razão ou razões invocadas pelo legislador e o valor ou valores constitucionais implicados.”



No direito pátrio, invocamos o magistério de San Tiago Dantas apud MORAES (2005, p. 33), que, sobre o princípio da igualdade, registrou:



Quanto mais progridem e se organizam as coletividades, maior é o grau de diferenciação a que atinge seu sistema legislativo. A lei raramente colhe no mesmo comando todos os indivíduos, quase sempre atende a diferenças de sexo, de profissão, de atividade, de situação econômica, de posição jurídica, de direito anterior; raramente regula do mesmo modo a situação de todos os bens, quase sempre se distingue conforme a natureza, a utilidade, a raridade, a intensidade de valia que ofereceu a todos; raramente qualifica de um modo único as múltiplas ocorrências de um mesmo fato, quase sempre os distingue conforme as circunstâncias em que se produzem, ou conforme a repercussão que têm no interesse geral. Todas essas situações, inspiradas no agrupamento natural e racional dos indivíduos e dos fatos, são essenciais ao processo legislativo, e não ferem o princípio da igualdade. Servem, porém, para indicar a necessidade de uma construção teórica, que permita distinguir as leis arbitrárias das leis conforme o direito, e eleve até esta alta triagem a tarefa do órgão do Poder Judiciário.



No mesmo sentido, porém numa formulação mais elaborada, salientamos as lições de BANDEIRA DE MELLO (2003), em obra já clássica, pequena no tamanho, mas prenhe de conteúdo, para quem a exceção ao Princípio da Igualdade deveria ser submetida a um “teste de adequação ao sistema jurídico em vigor”, a saber:



a) deve ser adotado através de normas legais os critérios de discriminação entre as pessoas;    b) dever tal critério de discriminação adotado ter como fundamento um elemento valorado pela norma que resida em fatos;    c) dever o fator de discriminação adotado guardar uma relação de pertinência lógica com a situação que deu origem ao fator de discriminação;    d) dever tal fator de discriminação ter por finalidade reduzir as desigualdades existentes entre as pessoas;    e) deverem os fatores de discriminação adotados estar de acordo com o estabelecido pela constituição.



Nessa linha, parece-nos que o benefício pensional em comento poderia submeter-se ao crivo de adequação de conteúdo face à Carta Política sob a ótica das chamadas discriminações positivas ou ações afirmativas.



Com efeito, para GARCIA (2005), o fato de diferençar decorreria do conceito de igualdade como objeto a ser perseguido, de forma a compensar-se o desequilíbrio de oportunidades fáticas. Essa, metodologicamente, poderia ser analisada em três oportunidades. Primeiramente, para as chamadas diferenças naturalmente construídas. Referem-se, ainda segundo a autora, aos grupos sociais “naturalmente diminuídos”, não sob o prisma social, mas factual. Exemplo disso seriam as mulheres em estado de gravidez, os órfãos, os trabalhadores exercentes de atividades perigosas ou em condições insalubres, os portadores de necessidades especiais, dentre outros. O segundo agrupamento atine a compensar as desigualdades efetivas no exercício de direitos fundamentais. São cláusulas contidas tanto no Brasil, como em Portugal, nas chamadas normas de conteúdo programático.  Decorrem de razões de índole econômica, da intervenção do Estado, com os instrumentos de que é dotado, no tecido social. Já o terceiro segmento decorre de razões culturais, fatores como o afastamento da mulher da competição no mercado de trabalho, mesmo de uma participação social e política mais ativa; da escravatura, no caso dos afro-descendentes.  Enfim, uma questão de pacto entre as diversas gerações, visto que decorreu de erros passados, e, em muitos casos, necessariamente seus frutos somente poderão ser colhidos pelas gerações vindouras.




4.1. Exame do benefício sob o prisma da discriminação positiva



O teste final do instituto, partindo-se do pressuposto que toda norma vigente seria, em tese, compatível à Lei Maior, constitui aquele inicialmente baseado no princípio da conservação de normas, por meio do qual um comando normativo infraconstitucional não poderia ser declarado em desacordo à Constituição acaso pudesse ser interpretado conforme àquela (CANOTILHO, p. 1226).



Dentre as alternativas plausíveis, restou-nos considerar, como já cogitado, tratar-se o benefício em descortino de possível instrumento de ação afirmativa.



Nesse pêndulo, conforme o Ministro do STF Joaquim Barbosa apud LEAL (2005, p. 608), ações afirmativas seriam:



(...) políticas e mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.



Sob o aspecto histórico, referidas políticas surgiram nos Estados Unidos a partir de decisões da Suprema Corte norte-americana que julgaram inconstitucionais as segregações então existentes nas escolas daquele país. Paradigmático foi o lead case Oliver Brown versus Topeka Board of Education, apreciado em 1954, ponto em que se iniciou a desarticulação da política do equal but separate em voga desde o fim da Guerra Civil (GARCIA, p. 24).



Outrossim, em 1971, notando a Suprema Corte o pequeno avanço experimentado pela sociedade estadunidense na matéria, passou, a partir de Swan versus Charlotte Meckenburg Board of Education, a defender o uso de quotas raciais: cada sala de aula deveria ter uma composição racial de 50% entre brancos e demais grupos (GARCIA, p. 24).



Desde então, surgiram diversas formas de discriminações equalizadoras. E em especial no Brasil, a partir da Constituição de 1988, muitas foram concebidas e implementadas. Exemplificamos: art. 24, XX, da Lei nº 8.666, de 1993 (que trata da dispensa da licitação para contratação de associação de portadores de necessidades físicas especiais); Lei nº 9.504, de 1997 (que adotou a cota de 30% das vagas para candidatura de cada partido ou coligação a ser destinada a indivíduos de um dos sexos - cota neutra); Lei  nº 9.799, de 1999 (que criou o art. 373-A, CLT, cujas disposições têm por objetivo impedir a discriminação às mulheres nas relações de trabalho); ainda, as leis de números 7.853, de 1989, 8.112, de 1990 (reserva de vagas para portadores de necessidades especiais no provimento de cargos públicos), 8.213, de 1991, 10.098, de 2000, as duas últimas vocacionadas para idênticos objetivos no tocante ao regime geral de previdência social.



No presente momento, a teoria já desenvolvida acerca desses programas, assentou as seguintes características para as discriminações positivas: temporariedade (limita-se no tempo, não se presta a ser permanente); especialidade (destina-se a intervenção estatal apta a combater situação certa e determinada existente na sociedade); e somente seriam dotadas de razoabilidade se conexas a outras políticas públicas – v.g. implantadas as cotas raciais ou sociais na universidade, o estado tem o compromisso de melhoria dos ensinos fundamental e médio.



Ainda com respeito às discriminações positivas, arrematou o constitucionalista Luis Roberto Barroso apud LEAL (2005, p. 609):



Tais classificações fundam-se em fatores que o constituinte reputou suspeitos e cuja utilização traz uma forte possibilidade de ser inconstitucional, a menos que se possa demonstrar como parece, em cada um dos exemplos, que o tratamento desigual teve um fundamento razoável e destinou-se a realizar um fim legítimo. Em outras palavras: para ser válido, o tratamento diferenciado precisa passar no teste da razoabilidade interna e externa.



Sobre os conceitos de razoabilidade interna e externa, esses se referem, ainda segundo Luis Roberto Barroso apud PESSOA (2004), à aferição tendo em conta ora a norma legal, ora a Carta Constitucional. Na razoabilidade interna, avalia-se a existência, ou não, de relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins em se tratando da lei. Nesse passo, verificada a razoabilidade interna da norma, será preciso avaliar sua razoabilidade externa, ou seja, a adequação aos meios e fins admitidos e preceituados pelo texto constitucional. No entanto, porventura a lei sub examine conflitasse valores expressos, ou mesmo implícitos, no texto constitucional, não seria legítima nem razoável face à Constituição, ainda que o fosse internamente – ou seja, sob a ótica da lei.



5. Conclusão



Nesse sentido, tendo em vista o exposto, afastamos a possibilidade de o instituto de natureza previdenciária em foco compatibilizar-se à Constituição posto que desconforme na análise de razoabilidade, vez que não observa elementos objetivamente considerados hígidos a fundamentar uma discriminação positiva. Isto porque a diferenciação, para feito previdenciário, no Brasil, somente se autoriza no aspecto atinente à contagem do tempo de serviço, nunca em relação à concessão de per se, conforme afigurado na espécie. A outra, que inexistem razões de natureza social ou grupal, como normalmente ocorre com as políticas de ações afirmativas, a sustentar o discrímem, pois, a contrario sensu, se está contemplando com notório subsídio de natureza sócio-econômica segmento da sociedade o qual, por razões óbvias e que saltam aos olhos, é dotado de meios de capacitação intelectual e profissional bem acima da média que ostenta a população brasileira.



Uma questão, no entanto, parece-nos merecer resposta. Qual seria o motivo de leis e regulamentações da espécie ainda permanecerem vigentes num estado de direito, especialmente no contexto da Carta de 1988.  A possível resposta é, a nosso ver, de matriz sociológica antes mesmo de ser jurídica.  Ela se originaria, grosso modo, da defasagem, ou déficit, entre nosso sistema representativo parlamentar e a sociedade, que deveria estar medianamente representada em termos de seus interesses. Certo é que tal representatividade não se confirma na prática. Em lugar disso, interesses corporativos ganham relevo e agigantam, mesmo por omissão, o que provavelmente poderia ser o caso.



As práticas acima salientadas revelam-nos, a partir de escorreita análise sob o ponto de vista liberal, estar nosso país em fase patrimonialista, em contraposição ao capitalismo ou socialismo. Explico: segundo Max Weber apud RODRÍGUEZ (2006), a sociedade patrimonialista seria caracterizada como forma de dominação tradicional em que o soberano estrutura o poder político de modo similar ao chamado poder doméstico. Em suma, trata como de domínio particular, ou estamental, conforme a espécie, a coisa pública.



Pelas razões alinhavadas, a manutenção do art. 20 do Decreto nº 22.414, de 30 de janeiro de 1933, e quaisquer outras disposições em semelhante sentido na ordem jurídica, representam patente afronta ao art. 5º, inciso I, da Carta Política de 1988.



Referências bibliográficas



ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios (da definição à aplicação dos princípios jurídicos). São Paulo: Malheiros, 2006.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003.

GARCIA, Maria Glória F. P. D. Estudos sobre o princípio da igualdade. Coimbra: Almedina , 2005.

GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LEAL, Luciana de Oliveira. O sistema de cotas raciais como ação afirmativa no direito brasileiro. Revista Forense, jul./ago. 2005, n. 380. Rio de Janeiro: Forense.

MELO, Celso Antonio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 2003.

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2005.

PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

PESSOA, Leonardo Ribeiro. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade na jurisprudência tributária norte-americana e brasileira. Boletim Jurídico. Junho de 2004 [Acesso em 31/1/2008]. Disponível em http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=431.

QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos Fundamentais (Teoria Geral). Coimbra: Coimbra Editora, 2002.

RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro: Documenta Histórica Editora, 2006.



MARCO ANTONIO GOMES DA SILVA é analista de Controle Externo do TCU e Advogado inscrito na OAB/DF



[1]  Art. 20. Extingue-se a pensão:

    I - atingindo a maioridade os pensionistas do sexo masculino, salvo nos casos de invalidez e interdição;

    II - contraindo núpcias qualquer dos pensionistas do sexo feminino;

    III - falecendo o pensionista.

    § 1º Reverte, todavia, em favor dos filhos menores ou filhas solteiras, a pensão da viuva que falecer ou vier a casar-se, bem como em favor da viúva a pensão do filho menor ou filha solteira que falecer. (sic)



[2] Ementa: Torna extensivo aos empregados ativos, jubilados e aposentados do ministério da instrução pública, correios e telégrafos o montepio obrigatório criado pelo decreto número 942-A de 31 de outubro de 1890.

[3] Ementa: Torna extensivo aos empregados das secretarias do senado e câmara dos deputados o montepio criado pelo decreto número 942-A de 31 de outubro de 1890.

[4] Ementa: Faculta aos ministros do Supremo Tribunal Federal requererem inscripção no montepio federal e dá outras providencias.



[5] in Raízes históricas do Código Civil, Ed. Martins Fontes, p. 17.



[6] O qual dispõe:

Art. 217.  São beneficiários das pensões:

        I - vitalícia:

        a) o cônjuge;

        b) a pessoa desquitada, separada judicialmente ou divorciada, com percepção de pensão alimentícia;

        c) o companheiro ou companheira designado que comprove união estável como entidade familiar;

        d) a mãe e o pai que comprovem dependência econômica do servidor;

        e) a pessoa designada, maior de 60 (sessenta) anos e a pessoa portadora de deficiência, que vivam sob a dependência econômica do servidor;

        II - temporária:

        a) os filhos, ou enteados, até 21 (vinte e um) anos de idade, ou, se inválidos, enquanto durar a invalidez;

        b) o menor sob guarda ou tutela até 21 (vinte e um) anos de idade;

        c) o irmão órfão, até 21 (vinte e um) anos, e o inválido, enquanto durar a invalidez, que comprovem dependência econômica do servidor;

        d) a pessoa designada que viva na dependência econômica do servidor, até 21 (vinte e um) anos, ou, se inválida, enquanto durar a invalidez.

(...).



[7] Veja-se o comando:



Art. 31.  Fica assegurada aos atuais militares, mediante contribuição específica de um vírgula cinco por cento das parcelas constantes do art. 10 desta Medida Provisória, a manutenção dos benefícios previstos na Lei nº 3.765, de 1960, até 29 de dezembro de 2000.



[8] Segundo dados da publicação Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, p. 130, edição 2006 (http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2006/indic_sociais2006.pdf), acesso em 5/3/2007 às 08:30, a diferença relativa ao ano de 2005, no rendimento entre gêneros era do médio mensal masculino de R$ 911,40 para o correspondente feminino de R$ 645,30, ou seja,  a renda feminina representava, em média, 70,40% da masculina.

[9] A observação refere-se a Portugal.



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