216 - A igualdade e a reciprocidade nas relações internacionais

 

REGIS DE OLIVEIRA - Desembargador
 

Comentários ao PL 2430 de 2003 que trata da concessão do privilégio

da dispensa do “visto” para os cidadãos norte-americanos

 

 

O Brasil é uma nação formada por diversos povos e nacionalidades, fato resultante das diferentes correntes migratórias, o que o torna sempre um país com potencial turístico grande. Além disso, as diferentes manifestações culturais espalhadas pelas diversas regiões do País e a nossa exuberante beleza natural, atraem cada vez mais estrangeiros de todas as partes do mundo.

 

Os estrangeiros que encontram-se no Brasil gozam dos mesmos direitos que os brasileiros e são amparados pelas normas que disciplinam a Lei nº 6.815/80 – Estatuto do Estrangeiro, bem como pela legislação correlata.

 

Conforme dispõe o art. 4º, inciso V da Constituição Federal, “a Repúbli­ca Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguin­tes princípios: V – igualdade entre os Estados”.

 

Os Estados estão em pé de igualdade perante o Direito Internacional, qualquer que seja a sua importância demográfica, econômica ou militar. Todos os Estados têm, em tese, os mesmos direitos e deveres na comunidade das nações.

 

A igualdade é considerada direito público subjetivo de todo Estado, uma vez que não se trata de igualdade de fato, mas, de igualdade jurídica. Nesse sentido, Gerson de Britto Mello Boson entende que “a igualdade entre Estados é a base da vida internacional, para que tendem as aspirações modernas, e constitui princípio que complementa os direitos à existência e à independên­cia, sem o que tais direitos estariam prejudicados, porque privados da força moral que os pode vivificar.” (Boson, Gerson de Britto Mello, “Direito Internacional Público”, Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1994, pág. 246). O princípio da igualdade entre os Estados é uma decisão política fundamental concretizada em normas do sistema constitucional positivo. Tais normas manifestam-se como princípios constitucionais fundamentais, positivados em normas-princípio.

 

Vale notar que a Carta da ONU proclama, no preâmbulo, o princípio da igualdade ao “reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas.”

 

O princípio da igualdade entre os Estados aparece ao lado de outros princípios que informam a comunidade internacional, por exemplo, o princípio da independência nacional, autodeterminação dos povos e da não intervenção.

 

A Constituição traz como um dos fundamentos do Estado brasileiro a soberania que deve ser compreendida como embasamento do Estado; seu valor primordial que em momento algum podem ser colocados de lado.

 

Da manifestação de soberania surge o princípio da reciprocidade, funda­mental nas relações internacionais entre Estados.

 

O princípio da reciprocidade é um dos pilares mais sólidos e antigos das relações internacionais, que surgiram com o atual formato (entre Estados constituídos) no final do século XVIII. Foi no século XIX que se generalizou a tendência de construção de Estados burocraticamente sólidos, capazes de se impor internamente e também de se relacionar com outros Estados vizinhos ou distantes.

 

A reciprocidade é medida de igualdade, de natureza política, que tem a finalidade de atingir o equilíbrio, agindo mais numa zona cinzenta entre o fato e o Direito.

 

O princípio da reciprocidade é uma manifestação de soberania e consis­te em permitir a aplicação de efeitos jurídicos em determinadas relações de direito, quando esses mesmos efeitos são aceitos igualmente por países estran­geiros. A reciprocidade de tratamento constitui a base do relacionamento entre Estados soberanos

 

Como sabemos, os turistas brasileiros que buscam dirigir-se aos Estados Unidos da América, qualquer que sejam suas finalidades, estão sujeitos a uma série de exigências documentais, além da cobrança pela emissão do visto.

 

Após o atentado terrorista de “11 de setembro de 2001”, os EUA inten­sificaram as exigências para obtenção de visto de entrada como turista para nacionais de várias Nações, entre elas o Brasil. Tal medida ensejou protestos no mundo todo e criou precedentes jurídicos na ordem internacional.

 

No Brasil, a decisão do juiz federal do Mato Grosso, em 29 de dezem­bro de 2003, determinando a aplicação aos cidadãos norte-americanos em viagem ao Brasil dos mesmos procedimentos de identificação fotográfica apli­cados aos cidadãos brasileiros, visou garantir o exercício do princípio da reciprocidade, a Portaria Interministerial nº 72, de 9 de janeiro de 2004, criou o Grupo de Trabalho permanente para “avaliar procedimentos especiais de controle de ingresso de estrangeiros no território nacional, baseados no critério de reciprocidade de tratamento a brasileiros no exterior.”

 

A reciprocidade impede que o Brasil dispense tratamento diferenciado daquele que se recebe e está focado, principalmente, na segurança nacional, nos interesses políticos, sócios econômicos e culturais.

 

Vale lembrar que o Ministério das Relações Exteriores informou que o Itamaraty é a favor da manutenção da Lei de Reciprocidade, “que é o pilar da história da diplomacia brasileira”. Se for para flexibilizar a lei, o Itamaraty quer dar a última palavra sobre a dispensa do visto, e não o Ministério do Turismo. O visto seria concedido de acordo com o interesse político e econô­mico, fatores que seriam levados em conta.

 

Conceder de forma unilateral o privilégio da dispensa de visto de turista ao cidadão norte-americano, viola o princípio da reciprocidade, tornando o país vulnerável a solicitações semelhantes por parte dos outros países que mantêm relações comerciais com o Brasil.



A questão do visto constitui tão-somente um dos temas em torno do desenvolvimento do turismo, não podemos nos esquecer que a reciprocidade prima pela segurança e pelos interesses nacionais e, caso não seja observada, poderá trazer problemas de segurança, como a imigração clandestina.

 

A Lei de reciprocidade prima pela segurança e pelos interesses nacio­nais e, a alteração do art. 10 do Estatuto do Estrangeiro entra em conflito direto com a intenção inicial do legislador, tendo em vista que os Estados Unidos da América não dispensa aos brasileiros o mesmo tratamento.

 

Ademais, a isenção do visto acarretaria forte impacto negativo da rela­ção custo-benefício na política externa brasileira.

 

Por fim, todos os países são potencialmente de “interesse turístico” para o Brasil, o que torna tal conceito muito amplo e subjetivo, dando margem para diversas interpretações.

 

REGIS DE OLIVEIRA é deputado federal (PSC/SP), desembargador e professor-titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP


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