213 - A Ação Civil Pública como instrumento para tutelar os direitos individuais homogêneos


VIVIANE MANDATO T. RIBEIRO DA SILVA – Advogada
 

SUMÁRIO: Introdução - 1. Da evolução normativa da defesa dos direitos metaindividuais no direito pátrio: breves considerações - 2. A ação civil pública como instrumento concretizador dos direitos transindividuais – 2.1 A tutela de direitos individuais homogêneos por meio da ação civil pública – 3. Conclusão. 4. Bibliografia.

 

Palavras-Chave:1. Direitos transindividuais – 2. Ação Civil Pública -                                    3. Direitos individuais homogêneos.                    

 

        

INTRODUÇÃO

Sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.”[1][1]

 

Em tempos cognominados pós-moderno, propugna-se pela necessidade de se garantir efetivamente os direitos fundamentais e os sociais constitucionalmente reconhecidos, partindo-se da premissa de que o Estado existe para servir a pessoa. O limite e razão de ser do domínio político é a pessoa humana. Nesse sentido, a res publica existe para servir ao homem e não o inverso[1][2].

 

Ao positivar direitos, a Constituição impôs ao Estado, no âmbito de suas funções estruturais, uma atuação direcionada a viabilizar que o instrumento da jurisdição, o processo, atinja a finalidade ontológica para a qual foi concebido, qual seja, a de realizar, no mundo fenomênico, o direito declarado pela ordem jurídica. Eis o que a doutrina denomina função social do processo[1][3].

 

Explica-se. Numa sociedade designada por relações jurídicas massificadas, em que os efeitos da produção industrial seriada e a desnacionalização do capital culminaram na destruição quase irremediável do meio ambiente, no incremento da miséria e na sujeição dos indivíduos, e, por extensão, toda a coletividade, a toda sorte de lesão a direitos dos mais elementares, a percepção individualista do direito teve que ceder passo a um enfoque transindividual. Nesse contexto, sedimenta-se a idéia da função social da propriedade e dos contratos, ou seja, na conformação dos interesses individuais aos sociais.

 

Daí falar-se em responsabilidade social na gestão empresarial, conectando-se esta com um desenvolvimento social mais justo, tomando-se, como exemplo, a contratação de pessoas portadoras de deficiência, a adoção de creches e escolas públicas, a manutenção de programas de profissionalização e de alfabetização, etc.

Se, pelas razões expostas, o direito assume uma dimensão coletiva, em que se impõe a compatibilização do interesse individual com o coletivo, parecer ser corolário lógico que a tutela judicial seja adequada e adaptada ao direito que se pretende proteger, daí falar-se que o processo deva desempenhar uma função social, qual seja, a de viabilizar a realização e fruição dos direitos reconhecidos pela ordem jurídica.

 

Partindo dessa tônica e da premissa de que o legislador infraconstitucional consumerista categorizou os direitos individuais homogêneos como espécie do gênero direitos transindividuais, exporemos nosso pensamento acerca dos critérios para aferição do cabimento da ação civil pública para a tutela dessa categoria de interesses.

 

CAPÍTULO 1. DA EVOLUÇÃO NORMATIVA DA DEFE-SA DOS DIREITOS METAINDIVIDUAIS NO DIREITO PÁTRIO: BREVES CONSI-DERAÇÕES.

Antes de adentrarmos ao aspecto evolutivo da tutela dos direitos metaindividuais no direito pátrio, insta tecermos breve comentário acerca da origem desse grupo de interesses.

 

A categorização de um interesse como metaindividual ou transindividual é oriunda da construção doutrinária resultante da subdivisão dos interesses públicos. Em razão de nem sempre haver coincidência entre os interesses que a sociedade prioriza e os que o administrador elege, a doutrina italiana subdividiu os interesses públicos em primário e secundário, entendendo-se aqueles como os eleitos pela atividade governamental, ou seja, os objetivos a serem perseguidos pelo Estado visando atender ao bem comum. Já o interesse público secundário consubstancia as utilidades e necessidades da sociedade, como, por exemplo, a educação, saúde, meio ambiente saudável, a proteção ao patrimônio social, etc.

 

A decantação dos interesses públicos em primário e secundário culminou na tricotomização do direto. Identificam-se interesses puramente individuais, exclusivamente estatais e os da sociedade. Fala-se, daí, em direito privado, público e transindividual.

 

Muito embora essa classificação seja recente, a assimilação de interesses da sociedade distintos dos do Estado já existia na Grécia antiga. Naquela época, havia duas espécies de órgãos de jurisdição: um para os conflitos relativos à esfera privada e outro para os da esfera pública. Entretanto, a par de dicotomizar o direito, os gregos entendiam que certos interesses não pertenciam à categoria exclusiva do direito público nem a do privado. Exemplo disso é o da preservação da vivência em sociedade. Os gregos partiam da premissa de que era dever de todos os cidadãos, indistintamente, zelar pela preservação da própria polis.

 

José Reinaldo de Lima Lopes, fazendo alusão à visão grega da democracia, descreve uma situação que envolve um interesse comum a todos os integrantes da comunidade e que hoje pode ser categorizado como direito difuso: “imaginava-se que a democracia dependia de que todos e qualquer um se sentissem atingidos por ações delituosas de qualquer cidadão e tomassem o interesse de denunciar o caso ao tribunal. O ideal era de que todo o cidadão se sentisse indignado com qualquer ilícito, mesmo sem ser a vítima”[1][4].

 

Essa percepção dos gregos denota que a existência de interesses pertencentes a titulares indetermináveis não é fenômeno moderno. A grosso modo, pode-se dizer que naquela época tais interesses não eram concebidos como uma categoria distinta, mas uma realidade natural das relações humanas, daí não reclamarem um tratamento legislativo próprio.

 

Mas, a par de a identificação de interesses da sociedade não ser novidade, foi a partir do segundo quartel do século XX que a doutrina voltou sua atenção para esse tema, em razão do incremento demográfico, da revolução industrial e, principalmente, pela sedimentação da massificação das relações de consumo. Direitos e conflitos típicos da sociedade industrializada e de consumo forjaram a reflexão quanto à necessidade de se tricotomizar o direito e de instrumentalizar sua defesa em juízo.

 

Sob o ponto de vista legislativo, data de 1965 a preocupação do legislador pátrio em tutelar direitos transcendentes ao indivíduo, vale dizer, direitos cuja proteção interessa a toda a coletividade.

 

O primeiro diploma a surgir no cenário jurídico pátrio para instrumentalizar a tutela de direitos transindividuais foi a ação popular. Regida pela lei 4717/65, a ação popular tem por objetivo nulificar o ato ou contrato lesivo ao patrimônio público, aí entendido como bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico, impondo ao agente causador do dano o dever de restituir ou ressarcir os prejuízos causados.

 

Com o desenvolvimento tecnológico, forjado pela revolução industrial, surgiram conflitos envolvendo toda a coletividade, o que trouxe à baila a percepção de que outros interesses, além do patrimônio público, demandavam proteção. Com efeito, a poluição decorrente do processo industrial seriado extrapolou os limites do ambiente de trabalho, poluindo o ar, a água e o ecossistema. Apreendeu-se, destarte, que proteger o meio ambiente não atendia apenas ao interesse individual, mas o da coletividade. Promulga-se, então, uma lei preordenada a defesa do meio ambiente: a lei n. 6938/81. Esse diploma legislativo representou significativo avanço no reconhecimento e tutela de interesses supra-individuais, mas revelou-se insuficiente, pois outros direitos também representativos de interesses transindividuais, como, por exemplo, o dos portadores de deficiência, o dos idosos, o dos consumidores, etc., e que reclamavam tutela, estavam alijados de seu âmbito, cuja abrangência se restringe à preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental. Promulga-se então, em 1985, a Lei 7347 preordenada a instrumentalizar a defesa de todo e qualquer direito difuso e coletivo.

 

Sem prejuízo do grau de modernidade dos instrumentos incorporados e apesar de ter sido concebida especificamente para proteger direitos transindividuais, a doutrina aponta que a LACP não alcançou a aplicabilidade idealizada pelo legislador infraconstitucional, tendo se restringido à tutela de apenas alguns interesses metaindividuais, como o meio ambiente, o consumidor e patrimônio histórico e cultural, em razão da ausência conceitual de direitos difusos e coletivos, sendo esta, aliás, a razão apresentada para o veto presidencial da norma do inciso IV, do artigo 1º, em que o legislador estendia a tutela a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

 

Só após 1988 é que a eficácia da Lei 7347 exsurgiu nos moldes idealizados em 1985. Em primeiro, pela razão de a nova e vigente ordem constitucional ter recepcionado e alçado a ACP à índole constitucional; em segundo, pelo fato de o legislador infraconstitucional, por meio da Lei 8078/90, ter inserido no ordenamento jurídico pátrio a definição dos direitos transindividuais e alterado a redação do artigo 1º[1][5], da LACP, para inserir o inciso IV, ampliando, ipso facto, seu alcance. Ainda, determinou a interação entre os dois subsistemas[1][6], arrolou os legitimados ativos para de defesa de direitos coletivos, sistematizou a concessão da tutela específica, regrou os efeitos subjetivos da coisa julgada, dentre outras matérias de direito adjetivo.

 

 

CAPÍTULO 2. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INS-TRUMENTO CONCRETIZADOR DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS.

 

Direitos transindividuais são os interesses públicos primários, titularizados pela sociedade, valer dizer, todo interesse que tenha relevância social. Esse grupo de interesses, como já dissemos, foi sufragado pelo constituinte originário de 1988 devido às repercussões advindas do desordenado crescimento populacional e da massificação das relações jurídicas, cuja pujança resultou em novas necessidades socioeconômicas criando, por conseqüência, novos conflitos sociais.

 

A solução desses conflitos ensejou a proliferação de novos direitos, cuja positivação no ordenamento jurídico forjou uma mudança paradigmática quanto à compreensão da finalidade de certos institutos jurídicos e quanto ao papel a ser desempenhado pelo Estado. De um lado, havia um número cada vez maior de conflitos qualificados pela complexidade inerente à sociedade de massas, ou seja, a indeterminabilidade dos titulares dos direitos e/ou indivisibilidade dos objetos tutelados; e de outro, um sistema processual inapto a pacificar lides que refletiam interesses supra-individuais. 

 

O evidenciamento de que o direito adjetivo concebido para a solução de conflitos intersubjetivos era incompatível com a tutela de direitos pertencentes a toda coletividade e com o efetivo acesso à Justiça, impôs a elaboração de um instrumento apto às especificidades da categoria de direitos albergada pela Lei Maior. Foi nesse contexto que a ACP foi concebida.

 

A partir dessa perspectiva, iniciaremos nossa análise quanto a função social cabente à ACP na hipótese de seu objeto litigioso envolver direito individual homogêneo.

 

2.1 A tutela de direitos individuais homogêneos por meio da ação civil pública

 

A Lei 7347/85, nos incisos de seu artigo 1º, ao enunciar sua abrangência, faz referência, no inciso IV[1][7], apenas aos interesses difusos e coletivos, daí a doutrina cogitar sobre o cabimento da ação civil pública para a tutela dos direitos individuais homogêneos.

 

Formaram-se três correntes doutrinárias: a restritiva, a ampliativa e a eclética.

A corrente restritiva, com algum eco na jurisprudência[1][8], propugna pela impossibilidade da defesa desses direitos por meio da ação civil pública, argumentando que os direitos subjetivos individuais só podem ser defendidos pelos próprios interessados e o Ministério Público é instituição preordenada a defender interesses da coletividade. O fundamento jurídico dessa teoria é a norma do artigo 129, III, do texto constitucional.

 

A doutrina ampliativa sustenta o cabimento amplo e irrestrito da ação civil pública, porquanto os interesses individuais homogêneos são espécie do gênero direitos transindividuais, e estes são de interesse social. Argumenta, ainda, com arrimo na doutrina itálica, que o interesse social exsurge do fato da existência ação coletiva, da desnecessidade de se promover inúmeras demandas individuais com idênticos pedidos e por conferir máxima efetividade ao princípio do acesso à justiça.

 

Por fim, a corrente eclética, numa posição intermediária, admite a ação civil pública desde que se identifique a relevância social do direito tutelando. Esse é o posicionamento que vem se sedimentando até mesmo na jurisprudência[1][9].

 

Examinando os argumentos doutrinários, o comando constitucional da defesa dos interesses sociais e as diretrizes teleológicas da Lei 7347/85, em integração com a Lei 8078/90, encampamos a corrente propugnadora do cabimento da ação civil pública para a defesa dos direitos individuais homogêneos.

 

De início, a nosso ver, encerra um equívoco de perspectiva analisar o cabimento da ação civil pública sob o enfoque subjetivo. O mais consentâneo com a filosofia da LACP é considerar o bem juridicamente tutelado. E este é o substrato da doutrina eclética[1][10], segundo a qual, a integração dos dois subsistemas normativos disciplinadores da proteção a direitos metaindividuais, a saber, leis 7347/85[1][11] e 8078/90[1][12], denota que o legislador tratou o direito individual homogêneo como coletivo por considerá-lo “não propriamente pela ótica individual e pessoal de cada prejudicado, e sim pela perspectiva global, coletiva, impessoal.”[1][13]

 

Perfilhando esse entendimento e com arrimo no disposto no caput do artigo 127, in fine[1][14], da Constituição Federal, o Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo editou Súmula[1][15], orientando o parquet a atuar para a defesa dos direitos individuais homogêneos apenas quando identificada a relevância social do bem jurídico, lesado ou ameaçado de lesão, ou a abrangência do dano.

 

Infere-se dessa súmula que o elemento indicativo para o cabimento ou não da ação civil pública é a objetividade jurídica tutelada, ou seja, o direito a ser tutelado e não seu titular, pois a relevância social é imanente a certos direitos, como, por exemplo, os declarados nos artigos 5º, 6º, 225, da Constituição Federal. Ademais, como destaca a doutrina, na sociedade massificada sedimenta-se cada vez mais a idéia de que o substrato do direito social constitui “socializar os riscos e perdas sociais, variáveis conforme os grupos e situações sociais envolvidos (...) nesse sentido, o direito social passa, cada vez mais, a ser o resultado de um equilíbrio entre interesses conflitantes formalizados como um acordo que sempre implicará em sacrifícios mútuos”,[1][16] a fim de se atingir a paz social.

 

Nesse contexto, podemos afirmar que a ação civil pública exerce relevante papel e desempenha plenamente sua função social quando tutela direito individual homogêneo, por trazer à baila o debate sobre políticas públicas que assegurem exercício dos direitos sociais, da igualdade e da justiça, valores supremos retratados no preâmbulo da Carta Política de 1988, in:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”

(grifo nosso)

 

É nesse sentido que, ao elencar as funções afetas ao parquet, a Constituição Federal contempla a proteção aos interesses sociais.  Portanto, ao promover uma ação civil pública para a defesa de direito individual homogêneo, o Ministério Público, ou outro co-legitimado coletivo, estará defendendo não o titular individual, mas um bem juridicamente relevante para a sociedade. E é essa a razão de a ação civil pública ter sido alçada à categoria de ação constitucional.

 

Nesse diapasão, o Ministério Público deve promover a ação civil pública para defender um direito individual homogêneo, pois, assim, estará cumprindo o comando constitucional de assegurar os direitos declarados pela Carta Magna, tornando factíveis os objetivos fundamentais da República inscritos no artigo 3º, dentre os quais, o de construir uma sociedade justa e o de reduzir as desigualdades sociais.

 

A par da disposição constitucional prescrevendo a tutela do interesse público, sem considerar o titular individual, vislumbramos que a própria lei 7347/85 insere em seu espectro de abrangência a defesa dos direitos individuais homogêneos ao arrolar no inciso II, de seu artigo 1º, a defesa do consumidor. Com efeito, as definições trazidas pela Lei 8078/90[1][17] abarcam tanto o indivíduo quanto a coletividade de pessoas. Portanto, em razão de a lei 7347/85 ter utilizado o termo consumidor em sentido genérico, resulta o cabimento da ação civil pública para a defesa de direitos coletivos e individuais lesados ou ameaçados por uma situação comum.

 

A interpretação extensiva que ora se faz é perfeitamente compatível com as diretrizes teleológicas das Leis 7347/85 e 8078/90, partindo-se da premissa que “a lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor responda a este finalidade, e portanto em toda a plenitude que assegure tal tutela.”[1][18] 

 

Destarte, da interpretação sistêmica da Lei 7347/85 depreende-se que o fim colimado pelo legislador é proteger os interesses primários da sociedade, daí a incorporação de uma série de mecanismos protetivos. Nesse compasso, se a defesa dos interesses individuais homogêneos retratar a tutela do interesse social, outra não pode ser a inferência senão o cabimento da ação civil pública.

 

Sustentar tese contrária implica em contradizer a mens legis e afirmar que a Constituição Federal resguarda os interesses sociais apenas em situações especiais, o que implicaria na absurda assertiva de que as garantias constitucionais de concretização dos direitos fundamentais podem ser interpretadas restritivamente.

 

Certos direitos, os denominados fundamentais, inegavelmente dotados de relevância social, por consubstanciarem os valores mais elevados para a sociedade, não comportam que haja restrição pelo legislador infraconstitucional ou pelo intérprete. Há “questões que por vontade expressa do legislador constituinte não foram deixadas “abertas” à concretização posterior das forças políticas. A esfera da organização do Estado, a forma do Estado, a distribuição orgânica de competências e os princípios estruturais fundamentais, que são típicos do direito constitucional (...)”.[1][19]

 

O E. Superior Tribunal de Justiça tem se posicionado em favor da defesa de interesses individuais homogêneos por meio da ação civil pública, mas se identificados, na sub specie juris, a relevância e a percussão social do conflito[1][20].

 

Radicado que a ação civil pública exerce plenamente sua função social ao tutelar direitos individuais homogêneos, importa analisar o critério para aferição da relevância social do direito.

 

Em doutrina há quem adote o critério quantitativo para aferir a relevância do direito, asseverando que “(...) nem sempre a defesa, pelo Ministério Público, de interesses individuais homogêneos de consumidores identifica-se com a sua incumbência constitucional de defender interesses sociais, imposta pelo art. 127, da Lei Maior, como ocorre, por exemplo, na hipótese em que os titulares de interesses individuais homogêneos, disponíveis não constituem número expressivo de lesados (...)”[1][21]. E exemplifica dizendo que “(...) não teria sentido, v.g., pôr o Ministério Público em defesa de meia dúzia de importadores de carros de luxo danificados no transporte; ainda que se trate de interesses individuais homogêneos, não haveria expressão social a justificar a atuação.”[1][22]  

 

Dissentimos, concessa venia, do critério quantitativo para identificar a relevância do direito, e utilizaremos o mesmo exemplo para ilustrar nosso entendimento.

 

Partindo da premissa de as relações de consumo são per se de ordem pública e interesse social, nos expressos termos do artigo 1º, da lei 8078/90, parece-nos que o critério eleito pelo legislador não reside no aspecto quantitativo, mas qualitativo.

 

Nesse passo, se atentarmos para o fato de que os danos derivativos das relações de consumos são potencialmente expressivos, fica evidente que, no exemplo em exame, deve ser considerada a potencialidade lesiva da conduta do transportador e não a quantidade efetiva de consumidores lesados.

 

Falar-se em relevância social significa considerar a repercussão social de uma determinada conduta frente aos valores essenciais para a vida em sociedade.

 

Assim, no exemplo trazido pela doutrina, o transportador, revestido da qualidade de prestador de serviço, agiu sem as cautelas necessárias e inerentes à natureza do serviço que estava sendo prestando, gerando, com isso, um acidente de consumo, ou seja, uma situação que percutiu na segurança patrimonial dos consumidores envolvidos, mas que poderia ter envolvido terceiros. Aliás, é exatamente a potencialidade do dano que orienta a norma do artigo 14, da lei 8078/90[1][23], a eleger a segurança como fundamento para categorizar os prejuízos decorrentes dos serviços mal prestados como acidente de consumo.

 

Em suma, a nosso ver, caberia ao Ministério Público demandar o transportador objetivando o cumprimento das normas cogentes do Código de Defesa do Consumidor quanto a prestação do serviço com a segurança necessária, a fim de prevenir a lesão a qualquer outro consumidor – utente ou potencial vítima exposta ao evento danoso - além de indenizar os consumidores efetivamente lesados.

 

Deflui-se, por conseguinte, a total pertinência da ação civil pública para a defesa de direitos individuais homogêneos em razão da relevância social do bem jurídico tutelando, abstraindo-se da feição quantitativa dos lesados. Destarte, na mesma lide, seriam deduzidas pretensões sob as três vertentes: a) de cunho difuso, para prevenir que o transportador repita a conduta, protegendo-se, destarte, a incolumidade física e patrimonial dos consumidores difusamente considerados (vítimas em potencial); b) de cunho coletivo, consistente na obrigação de fazer, ou seja, impor ao transportador o dever de cumprir as normas de segurança, para evitar que os consumidores que venham a contratá-lo sofram o mesmo dano, e c) a de cunho individual homogêneo, para indenizar os consumidores efetivamente vitimados.

 

A nosso ver, e com arrimo em precedentes do STJ, esse é o critério mais adequado para se aferir se determinada situação tem ou não repercussão social que recomende a intervenção do parquet, e que viabilize o manejo da ACP, sem, contudo, desfigurar os limites objetivos desse instrumento, constitucionalmente vocacionado para a tutela de interesses de relevância social. in:

 “PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO A PESSOA CARENTE. LEGITIMIDADE ATIVA RECONHECIDA. ARTIGO 25, IV, "A", DA LEI 8.625/93. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

 

1. Em exame recurso especial interposto pelo Ministério Público com fulcro na alínea "a" do permissivo constitucional contra acórdãos assim ementados:

"AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. MINISTÉRIO PÚBLICO. ILEGITIMIDADE. Direito individual cuja legitimidade ativa compete àquele que se diz necessitado. Nos termos da lei processual 'ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei' (art. 6º do Cód. de Proc. Civil). Definidas em lei, de forma taxativa, as finalidades da ação civil pública, não pode o Ministério Público pretender por meio desta medida judicial, outro objeto. Processo principal extinto sem apreciação do mérito. Agravo de instrumento prejudicado."

"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. Inexistência de omissão a justificar a interposição do recurso (art. 535, incs. I e II do Cód. de Proc. Civil). Prequestionamento desnecessário. Recurso que objetiva a modificação do julgado. Impropriedade. Embargos rejeitados."

 

2. Sustenta-se violação do artigo 25, IV, "a", da Lei 8625/93 argumentando-se que:

"A função ministerial - a legitimidade do parquet - somente estará se o interesse estiver sob a disponibilidade de seu titular. E tal não ocorre com o direito à saúde, que é objeto de proteção constitucional, afigurando-se direito indisponível. E, como tal, possível de ser tutelado pelo Ministério Público, ainda que o parquet esteja tutelando o interesse de uma única pessoa, que é o caso dos autos.

 

Ademais, negar legitimidade ao parquet no caso concreto, além de negar o próprio direito constitucional, é negar o desenvolvimento do direito processual vigente à pessoa humana."

 

3. Constitui função institucional e nobre do Ministério Público buscar a entrega da prestação jurisdicional para obrigar o Estado a fornecer medicamento essencial à saúde de pessoa pobre especialmente quando sofre de doença grave que se não for tratada poderá causar, prematuramente, a sua morte. Legitimidade ativa do Ministério Público para propor ação civil pública em defesa de direito indisponível, como é o direito à saúde, em benefício do hipossuficiente.

 

4. Recurso especial provido para, reconhecendo a legitimidade do Ministério Público para a presente ação, determinar o reenvio dos autos ao juízo recorrido para que este se pronuncie quanto ao mérito.”

(STJ REsp 819010/SP, 1ª Turma, DJ 02.05.2006 p. 274) (grifo nosso).

 

 

CONCLUSÃO

 

 

O implemento e o incremento da industrialização conjugados com o surgimento de inúmeras e novas necessidades sociais, forjaram a evolução da tecnologia, a fim de atender a pujante demanda consumerista, signo da sociedade hodierna.

 

Os avanços tecnológicos acabaram por agredir o meio ambiente, seja pela ocupação indiscriminada do solo urbano, seja em razão do uso indiscriminado dos recursos naturais, como, v.g., o desmatamento para instalação de indústrias e atividades agrícolas, a emissão de efluentes em rios e mananciais.

 

Várias atividades econômicas desenvolvidas pelo particular e até mesmo a atuação do Estado no atendimento das necessidades coletivas causam a degradação e a poluição do meio ambiente e, por conseguinte, da qualidade de vida, pondo em risco, e, em alguns casos, até extinguindo, espécies animais e vegetais.

 

A simples expansão de uma cidade ou o desenvolvimento de uma atividade econômica sem prévio planejamento induz à degradação e poluição ambiental. Basta recordar os efeitos nocivos produzidos pelo complexo industrial da Cidade de Cubatão, no litoral paulista.

 

Da constatação de que a evolução tecnológica desordenada causa conflitos e prejuízos, diretos e indiretos, à própria sociedade, inferiu-se pela necessidade de se engendrar um sistema normativo que conferisse efetiva proteção a um bem de tal magnitude, como o meio ambiente. Para tanto, promulgou-se, em 1981, a lei 6938. Mas, outros interesses tão relevantes quanto o bem ambiental e que são categorizados como transindividual, reclamavam tutela. Promulga-se a lei 7347/85, apelidada de lei da ação civil pública. Contudo, a lei 7347/85 não teve ao alcance idealizado, pois não havia definição no sistema jurídico pátrio dos direitos difusos e coletivos.

 

Com a edição da Lei 8078/90, sobrevém o conceito de interesses transindividuais, conferindo-se amplitude à Lei 7347/85, porquanto, interagindo com as disposições do Código de Defesa do Consumidor, forma um único sistema normativo repressivo e preventivo de danos a direitos metaindividuais. Entretanto, os vários instrumentos processuais para a tutela eficaz dos direitos transindividuais postos à disposição pelo legislador não atingirão sua função social, se os aplicadores dos direitos imprimirem à lei 7347/85 uma interpretação restritiva, como a que propugna pela impossibilidade de ser exercida a defesa de interesses individuais homogêneos, desconsiderando o aspecto qualitativo dos interesses envolvidos.

 

Em razão disso, é preciso que haja um esforço para que a Lei 7347/85 cumpra sua dúplice função de instrumento pedagógica e concretizador da cidadania.

 

BIBLIOGRAFIA

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[1][1] Norberto Bobbio. A Era dos Direitos. P. 01

[1][2] José Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 225.

[1][3] Carlos Henrique Bezerra Leite. A Ação Civil Pública e a Tutela dos Interesses Individuais Homogêneos dos Trabalhadores em Condições de Escravidão. in Processo Civil Coletivo - Coordenado por Rodrigo Mazzei. pg. 552

[1][4]  José Reinaldo de Lima Lopes. O Direito na História. p.39.

 

[1][5] Lei 8078/90 “Art. 110. Acrescente-se o seguinte inciso IV ao art. 1° da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985:

(...)

IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo".

[1][6] Lei 8079/90 ”Art. 117. Acrescente-se à Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, o seguinte dispositivo, renumerando-se os seguintes:

 Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor".”

 

[1][7] Lei 7347/85. “Art 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:

(...)

IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.”

[1][8] MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE RIO NOVO - MG. EXIGIBILIDADE IMPUGNADA POR MEIO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA, SOB ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ACÓRDÃO QUE CONCLUIU PELO SEU NÃO-CABIMENTO, SOB INVOCAÇÃO DOS ARTS. 102, I, A, E 125, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO. Ausência de legitimação do Ministério Público para ações da espécie, por não configurada, no caso, a hipóteses de interesses difusos, como tais considerados os pertencentes concomitantemente a todos e a cada um dos membros da sociedade, como um bem não individualizável ou divisível, mas, ao revés, interesses de grupo ou classe de pessoas, sujeitos passivos de uma exigência tributária cuja impugnação, por isso, só pode ser promovida por eles próprios, de forma individual ou coletiva (STF – RE n. 21363. 1ª Turma. Rel. Ilmar Galvão. j. 9.12.1999)  .

[1][9] “PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO NO JULGADO. INEXISTÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEFESA COLETIVA DOS CONSUMIDORES. CONTRATOS DE ARRENDAMENTO MERCANTIL ATRELADOS A MOEDA ESTRANGEIRA. MAXIDESVALORIZAÇÃO DO REAL FRENTE AO DÓLAR NORTE-AMERICANO. INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. LEGITIMIDADE ATIVA DO ÓRGÃO ESPECIALIZADO VINCULADO À DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO.

I – O NUDECON, órgão especializado, vinculado à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, tem legitimidade ativa para propor ação civil pública objetivando a defesa dos interesses da coletividade de consumidores que assumiram contratos de arrendamento mercantil, para aquisição de veículos automotores, com cláusula de indexação monetária atrelada à variação cambial.

II - No que se refere à defesa dos interesses do consumidor por meio de ações coletivas, a intenção do legislador pátrio foi ampliar o campo da legitimação ativa, conforme se depreende do artigo 82 e incisos do CDC, bem assim do artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal, ao dispor, expressamente, que incumbe ao “Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor”.

III – Reconhecida a relevância social, ainda que se trate de direitos essencialmente individuais, vislumbra-se o interesse da sociedade na solução coletiva do litígio, seja como forma de atender às políticas judiciárias no sentido de se propiciar a defesa plena do consumidor, com a conseqüente facilitação ao acesso à Justiça, seja para garantir a segurança jurídica em tema de extrema relevância, evitando-se a existência de decisões conflitantes.Recurso especial provido (STJ REsp 555111, 3ª Turma, DJ 18.12.2006 p. 363). No mesmo sentido: Resp n. 177965 – Resp n.168.859; Resp n. 211019 e Resp. N. 95647.

[1][10] Eduardo Arruda Alvim. Apontamentos sobre o processo das ações coletivas. Processo Civil Coletivo - Coordenado por Rodrigo Mazzei. pg. 48

[1][11] Lei 7347/85. “Art 21 – Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível os dispositivos do Título III da Lei que instituiu o Código  de Defesa do Consumidor.”

[1][12] Lei 8078/90.  “Art 90 – Aplicam-se às ações previstas neste Título as normas do Código de Processo Civil e da Lei 7347/85, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar  suas disposições.”

[1][13] Hugo Nigro Mazzilli. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses difusos” apud Marco Antonio Zanellato, “A defesa dos interesses individuais homogêneos dos consumidores pelo Ministério Público.  Revista do Advogado n. 89 Dez/06.

[1][14] Constituição Federal.  “Art 127 - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”

[1][15] Súmula n.7 (editada em 1991 e revisada em 2003) – “O Ministério Público está legitimado à defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos que tenham expressão para a coletividade, tais como: a) os que digam respeito a direitos ou garantias constitucionais, bem como aqueles cujo bem jurídico a ser protegido seja relevante para a sociedade (v.g., dignidade da pessoa humana, saúde, segurança das pessoas, acesso das crianças e adolescentes à educação); b) nos casos de grande dispersão de lesados (v.g., dano de massa); c) quando a sua defesa pelo Ministério Público convenha à coletividade, por assegurar a implementação efetiva e o pleno funcionamento da ordem jurídica, nas suas perspectivas econômica, social e tributária.”

[1][16]  Ronaldo Porto Macedo Junior. Ação Civil Pública, O Direito Social e os Princípios. In: A Ação Civil Pública após 20 anos: efetividade e desafios. Pg. 560-4

[1][17] Consumidor é definido no caput do artigo 2º, como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza um produto ou serviço como destinatário final. No parágrafo único do artigo 2º, como a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. No artigo 17, como toda vítima do evento danoso. No artigo 29, como todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas previstas no Cap. V do Título I.

[1][18] Francesco Ferrara. Ensaio Sobre A Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Pg.137

[1][19] Cristina Queiroz. Interpretação Constitucional E Poder Judicial. Pg. 109-0

[1][20] STJ REsp 236.161 – DF  "AÇÃO INDENIZATÓRIA. DESCUMPRIMENTO DE CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. ILEGITIMIDADE ATIVA DOMINISTÉRIO PÚBLICO.

O Ministério Público não tem legitimidade para postular na defesa de interesses individuais homogêneos de consumidores relativos aos descumprimento de contrato de promessa de compra e venda pela promitente-vendedora, haja vista não configurarem interesse da coletividade."

(...)

Conquanto silenciando, pois, a respeito da proteção a interesses individuais homogêneos, aludido art. 1º restou, porém, complementado pelo art. 21 da mesma legislação, o qual determina a integração das Leis nºs 7.347/85 e 8.078/90, possibilitando a defesa, via Ação Civil Pública, de direitos individuais homogêneos relacionados a grupos de consumidores.

Todavia, através da integração das Leis nºs 7.347/85 e 8.078/90, o legislador ordinário teria, em última análise, ampliado o quadro delineado de forma originária pelo art. 129, III, da CF/88, o qual legitima o Ministério Público a promover a Ação Civil Pública tão-somente para a proteção de interesses difusos e coletivos, inserindo, então, no bojo de tal instrumento processual, a defesa dos direitos individuais homogêneos, detentores de gênese comum, e oriundos de relações de consumo. A ampliação do campo de incidência da Ação Civil Pública, a seu turno, estaria constitucionalmente fulcrada nos ditames do inciso IX do mesmo art. 129, que possibilita ao Ministério Público 'exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade', a qual se encontra restrita, basicamente, à 'defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis' (art. 127, caput, da CF/88).

(...)a interpretação sistemática das disposições constantes da Carta Magna e das Leis nºs 7.347/85 e 8.078/90, destinada à harmonização do ordenamento jurídico pátrio, enseja a legitimidade do Ministério Público ao ajuizamento de Ação Civil Pública para a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, quer indisponíveis, quer disponíveis, mas, nesta última hipótese, desde que flagrante e indiscutível, no caso concreto, a relevância social dos mesmos, determinante da sua tutela coletiva, de modo a inseri-los, em última análise, na acepção de direitos difusos e coletivos:

'A atuação do Ministério Público sempre é cabível em defesa de interesses difusos, em vista de sua larga abrangência. Já em defesa de interesses coletivos ou individuais homogêneos, atuará sempre que: a) haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou pelas características do dano, ainda que potencial; b) seja acentuada a relevância social do bem jurídico a ser defendido; c) esteja em questão a estabilidade de um sistema social, jurídico ou econômico, cuja preservação aproveite à coletividade como um todo.

(...) Assim, se a defesa de interesse coletivo ou individual homogêneo convier à coletividade como um todo, deve o Ministério Público assumir sua tutela. Mas, nos casos de interesses de pequenos grupos, sem características de indisponibilidade ou sem suficiente expressão ou abrangência social, não se justificará a iniciativa ou a intervenção do Ministério Público. Não se exige a indisponibilidade do interesse nem a hipossuficiência econômica do grupo lesado; para que sua defesa seja assumida pelo Ministério Público, exige-se apenas que tenha ela relevância social.' (Hugo Nigro Mazzilli , in 'A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo', 17ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 2004, pp. 157/158)

Expostos os principais entendimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre a matéria, e registrando que me encontro perfilhado à última corrente consignada, perfaz-se oportuno explanar que, inexistindo definição legal quanto à relevância social dos direitos individuais homogêneos disponíveis, necessária a justificar-lhes o amparo coletivo, cabe aos Tribunais pátrios, e notadamente a este Colegiado de Uniformização Infraconstitucional, mediante análise casuística, traçar  limites à respectiva caracterização.

Neste sentido, perfaz-se imperioso evitar a tendência, diante da inovação legislativa quanto à proteção de direitos individuais homogêneos relacionados a grupos de consumidores, de se incorrer na exacerbação indiscriminada de aludida tutela, desvirtuando a finalidade primordial da própria Ação Civil Pública, e interferindo mesmo na autonomia negocial das partes, de modo a violar a própria legitimação ordinária (arts. 3º e 6º do CPC) e o exercício da advocacia privada ou pública (arts. 133 e 134 da CF/88):

'A proteção à vida, à liberdade, à privacidade, à educação, à saúde não enseja qualquer dúvida que deva ser amparada de forma ampla e abrangente; outros interesses, no entanto, não apresentam a mesma conotação social de modo a propiciar o amparo processual da ação coletiva; não se pode equiparar tais situações sob pena de desnaturar o instituto cuja finalidade precípua é amparar o coletivo e o difuso e, quando indisponível e homogêneo, o individual.

(...). A preocupação maior deve ser a de interpretar restritivamente tal possibilidade, a ponto de não comprometer o próprio direito ou interesse individual. Se o interesse está ligado a um dever estatal, ou a um valor expressamente consagrado no texto constitucional, poderá implicar na possibilidade e conveniência de defesa do grupo, o que evidentemente inocorre se o interesse é meramente patrimonial; nesta hipótese, descabe a ação civil pública e não se legitima o Ministério Público ou qualquer outra entidade para sua defesa em juízo, exceto o próprio interessado ou quem por ele autorizado, sob pena de ofensa ao art. 133 da Constituição Federal.' (Ana Maria Scartezzini , Ação Civil Pública, in 'Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública', coordenação de Arnoldo Wald, São Paulo, Ed. Saraiva, 2003, pp. 23/24)

In casu, aplicando-se as considerações enunciadas, não vislumbro a relevância social necessária à defesa coletiva dos interesses individuais homogêneos e disponíveis ora enfocados, (...) Ou seja, concretamente, a gênese comum dos interesses dos diversos adquirentes da unidades autônomas, é dizer, a contratação do mesmo empreendimento imobiliário, é insuficiente a embasar a interposição de Ação Civil Pública pelo Parquet Estadual. Não se justifica, desta feita, o afastamento da legitimação ordinária individual dos aderentes para buscarem, em assim convindo, a nulidade de cláusulas contratuais e a rescisão das promessas de compra e venda de imóveis, com a restituição das parcelas adiantadas (v. g., a propósito, Ilmar Galvão, op. cit., p. 207). A legitimação extraordinária ministerial implicaria, ao revés, em afronta à autonomia de vontade dos participantes, aos quais, sentindo-se lesados, garante a Carta Magna o livre acesso ao Judiciário, através de advogados ou defensores públicos (arts. 133 e 134 da CF/88).” (grifo nosso)

 

[1][21] Marco Antonio Zanellato, “A defesa dos interesses individuais homogêneos dos consumidores pelo Ministério Público. Revista do Advogado n. 89 Dez/06. p. 101 

[1][22] Hugo Nigro Mazzilli. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses difusos” apud Marco Antonio Zanellato, Ibidem

[1][23] Lei 8078/90, “Art 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação do serviço, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1º O serviço é defeituoso quando não oferece a segurança que o consumidor dele pode esperar.”



 



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