199 - Comprovação da origem lícita dos recursos para remunerar o advogado – Ofensa ao Processo Penal Constitucional

 
FERNANDO ANTÔNIO DE LIMA – Juiz de Direito
 

 

Dados do Censo Penitenciário Nacional apontam que, em 1995, a população carcerária era de 148.760 pessoas, saltando para 328.776 apenas dez anos depois1.

 

A explicação para tudo isso talvez esteja no desmantelamento do tecido social, devido à desestruturação do Estado na prestação das políticas públicas e no combate ao crime organizado.

 

Volvemos ao ano de 1938. Nos Estados Unidos, um radialista anuncia que o País está sendo invadido por marcianos. A população se desespera. O caos se instala. Importantes intelectuais sustentam que a histeria generalizada se deveu à crise econômica por que passava a população ianque, recém saída da Grande Depressão de 1929.

 

Ora, entendiam esses intelectuais, o Estado estava falido; o crime organizado imperava; as famílias não tinham perspectivas de futuro; uma simples brincadeira, como essa, seria capaz de pôr em desespero todo um país.

 

Talvez isso esteja acontecendo no Brasil. Os ataques promovidos no dia 15 de maio de 2006, direcionados principalmente contra as instituições policiais paulistas, assustaram sobremaneira a população civil brasileira.

 

Isso porque a desestruturação do Estado, devido à falta de políticas públicas – de saúde, educação, previdência, segurança pública – pôs em desespero todos os que vivem no Brasil.  Não se confia no Estado.  As boas perspectivas de futuro fogem ao alcance não só dos pobres, mas também da classe média. Daí por que o ataque promovido por alguns marginais sirvam para chacoalhar toda uma nação, assustada pelo desmantelamento do aparelho estatal2.

 

As políticas fiscalistas e neoliberais, que buscam o enxugamento do Estado e ao mesmo tempo o fortalecimento do aparelho repressivo, parecem despontar como uma das principais causas do aumento da criminalidade.  O sintoma principal disso é a duplicação da população carcerária nos últimos dez anos, período no qual o capitalismo financeiro, com as políticas de privatização e de diminuição das prestações estatais, ingressou com força no Brasil.

 

A classe política, diante desse estado de caos, de ruptura da coesão social, propõe o endurecimento das leis penais e a redução das garantias individuais, como forma de reduzir a criminalidade.  É a conhecida função simbólica do Direito Penal, o Direito Penal do “faz-de-conta”.

 

Aí é que entra o Projeto de Lei nº 282, de 2003, de autoria do Senador Antônio Carlos Magalhães. Por meio desse projeto – já aprovado no Senado e com tramitação na Câmara dos Deputados - acusados de certos crimes, como entre outros o tráfico ilícito de entorpecentes, só podem ser assistidos por defensor dativo.  Para contratar advogados particulares, tais acusados precisam comprovar a origem lícita dos recursos para pagar a esses causídicos3.

 

Na Câmara, porém, o Relator desse projeto (Deputado Marcelo Ortiz) não o viu com bons olhos. No parecer, entendeu pela inconstitucionalidade, por ofensa ao princípio constitucional da inocência, à dignidade humana, à indispensabilidade do advogado à administração da justiça (Constituição Federal, art. 133), ao direito de o preso ter assistência da família e do advogado (Constituição Federal, art. 5º, inciso LXIII)4.

 

Não há dúvidas de que essa nova alteração no processo penal tem conteúdo nitidamente autoritário, fazendo relembrar as origens do Código de Processo Penal brasileiro.

 

Com efeito, esse diploma legal remonta a 1941.  Sua inspiração foi a legislação italiana da década de 30, em que se evidencia a influência do regime fascista, ao qual estava submetida a Itália. É de Manzini – jurista italiano da época, o qual ainda granjeia enorme prestígio no nosso meio – a afirmação de que nós não adotamos o princípio da presunção de inocência, já que seria impossível prorromper uma ação penal em face de uma pessoa presumidamente inocente.  Eis a adoção, pois, do princípio da presunção de culpabilidade, que clarifica o autoritarismo que deu base ao nosso Código de Processo Penal.

 

Por outro lado, veio a Constituição Federal de 1988, para instituir um amplo acervo de direitos e garantias individuais, capaz de superar a visão autoritária sobre a qual foi editado o CPP brasileiro5.

 

Nessa nova visão, democrática e pluralista, devemos olhar o processo penal como presente não apenas em dispositivos legais.  As vistas do intérprete devem projetar para o terreno onde se situam as normas constitucionais, as quais irradiam importantes efeitos sobre os direitos e garantias individuais.  Daí por que hoje se fala em processo penal constitucional.

 

Assim, toda vez que se trabalhar com o processo penal, impende atentar para a ingente importância desempenhada pela hermenêutica constitucional, que se vale de métodos e, sobretudo, de princípios constitucionais, para solucionar as grandes questões interpretativas que se apresentam aos que lidam com o Direito.

 

Exsurge, então, o princípio da força normativa da Constituição, segundo o qual se deve dar preferência àqueles pontos de vista que dêem densidade à imperatividade das normas constitucionais, isto é, que retirem, destas, a maior aplicabilidade e eficácia possível. 

 

Por seu turno, como decorrência do princípio da força normativa da Constituição, vem a pêlo o princípio da máxima efetividade, que veicula um conselho aos aplicadores do direito.  Assim, em matéria de direitos fundamentais, a interpretação tem de visar à compactação de tais direitos6.

 

Nessa ordem de idéias, o intérprete do processo penal, tendo em vista os princípios constitucionais mencionados, deve sempre ter em vista os direitos e garantias individuais.

 

Não foi o que se aventou com o Projeto de Lei nº 282/2003, do Senado Federal. Ao contrário, esse esboço de legislação retrocedeu às origens principiológicas do Código de Processo Penal, cujas raízes brotam do regime fascista que existia na Itália.

 

Em primeiro lugar, porque a Carta, preocupada com os direitos individuais, prestigia o advogado, transcendentalizando-o à posição de figura indispensável à administração da justiça (art. 133).

 

É por isso que Figueiredo Dias, mencionado por Tourinho, apascenta que o advogado exerce uma função pública, que se insere na administração da justiça.  Esse mister não se limita à relação contratual advogado/cliente, mas alcança os superiores interesses da comunidade7.

 

Não poderia, em razão disso, uma lei desprestigiar essa função pública, condicionando o exercício da advocacia à comprovação da origem lícita dos recursos que remunerariam o causídico.

 

Todos concordam que a acusação é uma função pública; que o ato de julgar é uma função pública; que o ato de legislar também é uma função pública.  Função pública no sentido de ser essencial à comunidade.  Mas ninguém ousa condicionar, essas funções públicas, à comprovação da licitude da remuneração do promotor de Justiça, do Juiz, do Senador ou do Deputado. Por que só o advogado seria presumidamente cúmplice dos atos criminosos? O mesmo advogado que instrumentaliza o direito de defesa; que busca equilibrar a relação processual, que age em prol dos direitos individuais.

 

Assim, quando o legislador infraconstitucional traz novas condicionantes ao exercício da advocacia, é óbvio que exorbita dos poderes que lhe foram conferidos pela Carta Magna.

 

A advocacia contribui inestimavelmente para a concretização da liberdade, além de neutralizar os abusos, fazer cessar as arbitrariedades8.  Freá-la significa impulsionar o autoritarismo, que parecia ter sido expulso destas terras, mas que, algumas vezes, desponta a medrar, até que venham as instituições democráticas para podá-lo.

 

Também desrespeitou, o apontado projeto de lei, o devido processo legal, nas dimensões formal e material.

 

Formalmente, o devido processo legal compreende as formalidades, as garantias processuais, as garantias do procedimento, como o contraditório, a ampla defesa.

 

Já, no aspecto substancial, diz respeito às garantias contra as investidas abusivas do poder. Confunde-se com o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, segundo o qual qualquer ato do poder público deve sempre se ater à justa medida, ao equilíbrio, dissociado do arbítrio, ponderando, dos valores em conflito, qual deles deve prevalecer, no caso concreto.

 

Para o Supremo Tribunal Federal, mesmo as leis se sujeitam ao princípio da proporcionalidade, de maneira que, se o juízo de ponderação não for razoável, a norma será tida por inconstitucional9.

 

Não bastasse isso, o Projeto de Lei 282/2003 também viola o princípio constitucional do estado de inocência, que contém duas regras. Uma, de tratamento: ninguém, durante a persecução penal, pode sofrer restrições pessoais, fundadas na possibilidade de condenação.  A outra, probatória: o ônus da prova da autoria e do fato impende à acusação, somente cabendo ao réu provar as causas excludentes da ilicitude e da culpabilidade10.

 

É que trazer condicionantes arbitrárias ao exercício do direito de defesa traduz em tratar, o acusado, como possivelmente condenado, o que ofende a regra de tratamento, extraída do princípio do estado de inocência.

 

Também há ofensa ao princípio do contraditório, que sempre foi visto com forma de se garantir a participação das partes no processo, como forma de contribuir para o convencimento do Juiz. 

 

Isso porque, modernamente, o contraditório deve-se voltar, também, à igualdade entre os litigantes, propiciando-lhes paridade de armas11.  Ora, se o acusado não pode escolher o seu defensor, porque não consegue provar a origem lícita dos recursos com que pagará os honorários advocatícios, como afirmar a paridade de armas, se o réu nem mesmo confia em seu defensor, que seria nomeado pelo Juiz?

 

Aliás, deriva do direito à defesa técnica o direito de escolher o advogado, pois entre o acusado e o causídico deve haver relação de confiança.

 

Tanto é verdade que o Supremo Tribunal Federal já decidiu, segundo alvissara Antônio Scarance Fernandes, que o direito de escolher o defensor constitui projeção do postulado da plenitude de defesa.  Desse modo, se o defensor constituído não puder continuar no processo, o Juiz deve intimar o réu para que este constitua novo advogado.  Só depois disso, se o acusado mantiver-se inerte, é que o Juiz nomeia-lhe defensor dativo12.

 

Por todos os ângulos que se vê a questão, desde que com base nos princípios constitucionais, lobriga-se, com clareza, que o projeto de lei aqui discutido é inconstitucional.

 

É que, quando a criminalidade ameaça o tecido social, propostas autoritárias, inclusive para restringir a atividade do advogado, este que se ocupa a levar os pleitos por justiça ao Judiciário, começam a aparecer.

 

Aí é que entra a jurisdição constitucional, que deve colocar-se em campo, quando a atividade legislativa desassocia-se dos direitos individuais.

 

Por diversas vezes já se tentou, mas nunca se conseguiu atassalhar a advocacia.  É que ela sempre reaparece, heróica e retumbante, forte e aviventada, na proteção dos direitos individuais. Suprimi-la vai contra a própria natureza humana, já que a proposta contra os advogados é a proposta contra a parcialidade dos seres humanos 13, algo inalcançável por um simples projeto de lei, o qual, se aprovado, sofrerá, com certeza, uma dura reprimenda do Supremo Tribunal Federal, de cujas decisões ultimamente já se percebe exalar um delicioso perfume, aromatizado com o doce cheiro dos direitos individuais.

 

FERNANDO ANTÔNIO DE LIMA é juiz substituto; pós-graduando a distância em Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos pela Universidade da Amazônia (Unama) e LFG; pós-graduando em Direito Constitucional pela Unisul, pelo IDP (Instituto Brasileiro de Direito Público) e pelo LFG (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes)

 

 

Notas

 

(1)  Exposição de motivos do Projeto de Lei nº 7.252/2006. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso: 7.6.2006.

(2) ARBEX JÚNIOR, José. O Katrina nosso de cada dia. Revista Carlos Amigos, p. 13, São Paulo: Casa Amarela, nº 111, Ano X, Jun.2006.

 (3) O Projeto de Lei nº 282, de 2003, do Senador Antônio Carlos Magalhães, pretende dar nova redação ao art. 261 do Código de Processo Penal, verbis: “Art. 261-1. Compete exclusivamente a defensor dativo a defesa de acusados de envolvimento nos seguintes crimes: I- ações de associações ou organização criminosas; II- tráfico ilícito de entorpecentes; III- lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; IV- contra a economia popular; V- contra o Sistema Financeiro Nacional; VI- contra a Administração Pública que produzam prejuízo ao Erário.  Parágrafo Único. Fica assegurado o direito de contratação de advogados particulares aos acusados capazes de comprovar a origem lícita dos recursos financeiros destinados a essa finalidade, sejam tais recursos próprios ou de terceiros”.

(4) Parecer disponível em: www2.camara.gov.br/proposições. Acesso: 7.jul.2006.

(5) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal.  p. 8 e 9.  3ª ed., Belo Horizonte, Del Rey: 2004.

(6) COELHO, Inocêncio Mártires. Métodos e princípios da interpretação constitucional: o que são, para que servem, como se aplicam. Disponível em: www.aberta.unisul.br. Acesso: 6.jul.2006.

(7) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, v. 2, p. 480, 22ª ed., São Paulo, Saraiva: 2000.

(8) STF, HC 86634 MC/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, Informativo nº 400, de 5 a 9 de setembro de 2005.

(9) STF, Pleno, ADI 1910 MC/DF, Min. Relator Sepúlveda Pertence, j. em 22/4/2004.

(10) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, ob. cit., p. 26 e 27.

(11) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, ob. cit., p. 23.

(12) FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional, p. 263 e 264, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais: 2000.

(13) CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal, p. 43. Campinas, Edicamp: 2002.


    


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