192 - Pulseira eletrônica nos condenados e a dignidade humana

 
FERNANDO ANTÔNIO DE LIMA - Juiz de Direito
 

É fato que a globalização da economia promoveu uma grave crise econômica e social nos países pobres e ricos, gerando enorme desigualdade, sob o pretexto de incrementar a modernização.

 

A ofensiva neoliberal contra o Estado de Bem-Estar Social afrouxou as políticas sociais e confrontou-se com as leis trabalhistas, ao mesmo tempo em que promoveu políticas de privatização e desregulamentação da economia.

 

Os frutos do capitalismo exacerbado todos sabemos: Coca Cola, prostituição, celular, automóveis, favelas, drogas.

 

Por detrás dessa intensificação do neoliberalismo, instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial impõem aos países pobres o famoso ajuste estrutural: emprestam altas quantias de dinheiro, sob a condição de que os países agraciados promovam as políticas impostas por tais instituições.

 

Essas políticas, que vêm de fora e às quais se submetem os países pobres, consistem no controle do gasto público, na redução das despesas com saúde e educação, corte no funcionalismo público, redução de salários e privatização dos serviços estatais. Chega-se, inclusive, a condenar o controle de preços, inclusive no que concerne aos produtos de primeira necessidade.

 

Trata-se, na verdade, de uma verdadeira guerra aos pobres, promovida pelo neoliberalismo, e que redunda no aumento estrondoso da criminalidade1.

 

Coincidência ou não, o Brasil, nos últimos dez anos, agarrou-se, com força, a esse novo capitalismo, e a população carcerária, nesses dois lustros, simplesmente dobrou2.

Nesse cenário, o Estado adota uma postura reducionista no tocante às políticas sociais e econômicas e, contraditoriamente, uma postura maximalista no que se refere às políticas criminais3.

 

Por que o Direito Penal tende a assumir essa atitude altamente intervencionista?

 

A explicação é simples. Esse Estado repressor visa a gerar medo e conformismo nos excluídos do sistema e, ao mesmo tempo, busca punir os que não se conformam com o neoliberalismo, para, assim, conservar a ideologia da sociedade de mercado4.

 

É dentro dessa idéia de um direito penal extremamente repressor que, agora, ressurge uma proposta para diminuir a criminalidade. Está-se a falar da pulseira eletrônica, a ser inserida nos presos que cumprem pena no regime semi-aberto, de maneira que o Poder Público possa localizá-los e, assim, evitar o cometimento de novos delitos5.

 

A discussão reapareceu devido à aplicação desse mecanismo a dois dirigentes da igreja Renascer em Cristo, os quais, nos Estados Unidos, acusados por contrabando de dinheiro, receberam o monitoramento eletrônico.

 

A proposta foi apresentada pelo governo do Estado de São Paulo, preocupado com o aumento da criminalidade e com os recentes ataques promovidos por organizações criminosas contra as instituições paulistas.

 

Antes de tudo, é importante que o governador José Serra esteja colocando para a sociedade as maneiras pelas quais se possa combater o crescente número de crimes praticados no Estado. O Direito Penal, sim, é um instrumento estatal legítimo para prevenir e reprimir muitos dos conflitos sociais. É o Direito Penal, aliás, que defende bens jurídicos da mais alta relevância e que permite a higidez do Estado Democrático de Direito.

 

Todavia, para ser eficaz e respeitar os direitos individuais, as penas devem observar certos limites.

 

Nesse sentido, a proposta de colocar pulseiras eletrônicas nos presos submetidos ao regime semi-aberto apresenta diversas inconstitucionalidades.

 

Não se desconhece o fato de que os Estados Unidos e a Inglaterra adotam a monitoração eletrônica dos presos. Mas a realidade do Brasil é outra, e outra é a Constituição brasileira. Não se podem importar modelos, sem antes criticá-los e verificar se eles se adaptam às nuanças da sociedade brasileira.

 

Em primeiro lugar, a proposta fere o princípio da dignidade humana, que constitui fundamento inexorável da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, inciso III).

 

Segundo a filosofia grega, a pessoa só existia se pertencesse ao Estado, isto é, se exercesse os direitos políticos. Com o cristianismo, passou a pessoa a ser um fim em si mesmo, não sendo necessário, para ela existir, o fato de pertencer ao Estado. A conseqüência é que o ser humano passa a ser titular de direitos6.

 

Segundo terminologia empregada por Miguel Reale, há três concepções a respeito da dignidade humana. A primeira, decorrente do liberalismo-burguês, é o individualismo, pelo qual a pessoa, quando busca seus próprios interesses, realiza o interesse coletivo.

Já a segunda é o transpersonalismo, segundo o qual apenas o interesse coletivo é capaz de assegurar os interesses individuais. Trata-se de uma concepção socialista, em que a liberdade individual é sacrificada em prol da igualdade.

 

A terceira concepção a respeito da dignidade humana é o personalismo, que nega as duas anteriores. Agora, busca-se compatibilizar o interesse individual e os valores coletivos.

 

O personalismo parte da distinção entre indivíduo e pessoa. O indivíduo é o homem-abstrato, do liberalismo-burguês; a pessoa é alguém que faz parte do todo, mas não uma parte qualquer: é algo da mais alta importância, que tem um valor em si.

 

Assim, não existe predomínio do interesse coletivo sobre o individual, nem vice-versa. É o caso concreto que ditará a melhor solução.

 

No entanto, não há valor que supere a pessoa humana, de modo que o coletivo jamais poderá sacrificar a pessoa7.

 

Por isso é que toda ação estatal tem de visar à pessoa humana, sob pena de incorrer no vício da inconstitucionalidade8.

 

Nessa ordem de idéias, qualquer proposta, ainda que busque atender ao interesse coletivo, como o combate à criminalidade, não pode aniquilar ou desconsiderar a dignidade humana. Monitorar eletronicamente uma pessoa significa torná-la objeto da ação estatal. O Estado passa a controlá-la a tal ponto que a dignidade inerente aos humanos desaba como um frágil castelo de cartas.

 

A pulseira eletrônica, por ferir a privacidade e a intimidade do sentenciado (CF, art. 5º, inciso X), remete às reminiscências do nazismo. Os judeus eram obrigados a se identificar por uma estrela amarela de seis pontas. Saem os judeus, para entrarem os excluídos da globalização, agora identificados não com estrelinhas, mas com pulseiras agarradas aos braços.

 

A dignidade humana não é um princípio vão. Tem profunda densidade normativa. O constituinte enunciou-a, inclusive, logo no início da Constituição Federal. Os intérpretes, então, foram avisados. Antes dos poderes constituídos, antes dos representantes eleitos, antes mesmo da organização do Estado, vem a dignidade humana. A mesma dignidade humana que tem a força suficiente para gerar direitos subjetivos, segundo Robert Alexy9.

 

A proposta, também, não se casa com o princípio da proporcionalidade: não é adequada, pois os fins (combate à criminalidade, finalidade a que historicamente o direito penal extremamente repressivo não conseguiu atingir) não justificam os meios (pulseira eletrônica); não é necessária, já que existem outros meios menos invasivos aos direitos individuais, como a promoção de políticas públicas, para acabar com a delinqüência; nem razoável, já que não se justifica que a pessoa humana seja simples objeto da ação estatal.

 

O devido processo substancial, que se confunde com o princípio da proporcionalidade, busca frear os abusos estatais. Toda atividade governamental submete-se a um rígido controle. O filtro judicial, nesse sentido, busca compatibilizar a atuação do Estado e os direitos individuais.

 

Surge, então, a idéia dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa contra a investida abusiva de qualquer órgão governamental – seja do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário. Trata-se de uma concepção burguesa dos direitos individuais, mas que prevalece até hoje, como forma de se protegerem as liberdades constitucionais, propiciando às pessoas um certo grau de autonomia individual10.

 

Qualquer restrição aos direitos individuais deve respeitar o núcleo essencial desses direitos, de maneira tal que não pode esvaziá-los11. O Estado, a pretexto de buscar a satisfação do interesse coletivo, não está autorizado a aniquilar os direitos individuais. A pulseira eletrônica elimina a intimidade e a privacidade do sentenciado, que, para o Estado, já não é tão perigoso assim – seja porque já progrediu de regime, seja porque o regime inicial foi o semi-aberto.

 

É preciso reconhecer que os direitos fundamentais manifestam uma dimensão objetiva, de modo tal que assumem o caráter de princípios básicos da ordem constitucional. Assim, confundem-se com os valores que norteiam o Estado Democrático de Direito, impondo diretrizes de ação aos órgãos estatais e limites aos poderes constituídos12. Qualquer tentativa de aniquilá-los significa destruir toda a ordem democrática.

 

A Constituição Federal preocupa-se com a ressocialização do sentenciado, tanto que impõe ao legislador ordinário cuidar da individualização de penas (art. 5º, inciso XLVI). Ora, recrudescer as normas penais, inserindo pulseiras eletrônicas nos apenados, significa cumprir com o mencionado objetivo constitucional? Aquele que está no regime semi-aberto, logo com parcela recuperada da liberdade, não será estigmatizado pela sociedade, se tiver de andar com pulseiras atravancadas nos braços? Quem dará emprego a uma pessoa que esteja nessa situação?

 

É preciso inverter os pólos. Urge um Estado forte, mas forte não no seu papel repressor. Forte, sim, no desempenho de políticas públicas, que colham das ruas as crianças sem perspectivas, os pais sem trabalho, as famílias sem estrutura.

 

Não calha copiar os maus modelos de outros países. Devem-se, ao contrário, incorporar as boas experiências vivenciadas por eles.

 

O governador José Serra é um excelente economista. Sempre foi um defensor do papel do Estado na economia e na concretização de políticas públicas, além de ser um árduo defensor da democracia. Sabe, como poucos, que os Estados Unidos, após a Primeira Guerra Mundial, também estavam em crise. Roosevelt, o presidente que comandou essa grande nação, mostrou ao povo norte-americano que os momentos de sufoco não podem ensejar a adesão a idéias simplistas.  

 

O nazismo arrebatou multidões, propôs a morte à democracia e às raças inferiores. Sucumbiu. E sucumbiu porque o Estado norte-americano, fazendo frente ao Estado alemão, em vez de endurecer suas leis penais, resolveu investir nas pessoas. Recuperou a auto-estima dos seus cidadãos e, com isso, a força da democracia. O Estado Democrático de Direito ganhou crédito na sociedade e, com apoio popular, venceu a 2ª Guerra Mundial.

 

É preciso, portanto, em tempos de crise na segurança pública, que o Estado se reorganize.  A pessoa humana tem de voltar a ser o centro das atenções. Os direitos individuais têm de ser, a todo custo, preservados. O combate à criminalidade tem de ser feito. Mas a ordem democrática não pode ser destruída. Renunciar à liberdade em troca de segurança é trocar o sossego pela escravidão, a felicidade pelo aprisionamento, a autonomia individual pelo controle estatal.

 

Pulseiras eletrônicas não diminuirão a criminalidade. Não se podem castigar ainda mais os excluídos da sociedade de mercado. Só uma mudança firme do papel do Estado é que trará de volta a tão almejada segurança pública. O capitalismo, tal como desenhado nos dias atuais, sem regulação estatal e sem freios, produz uma multidão de desempregados, que encontra no submundo do crime as oportunidades que deveria encontrar na sociedade.

 

Não é possível aceitar mais investidas contra os direitos individuais. Daqui há pouco, já enclausuradas nos shoppings e nos monstruosos portões eletrônicos, e vigiadas por câmeras postas para todos os lados, as pessoas aceitarão a renúncia total às suas liberdades, em troca de uma fantasiosa segurança. Nesse dia, todos acordarão do pesadelo a que resignadamente se submeteram e sofrerão de uma amarga nostalgia dos bons tempos de democracia e de respeito à dignidade humana em que o Brasil, embora por pouco tempo, teve a felicidade de vivenciar.

 

FERNANDO ANTÔNIO DE LIMA é juiz substituto pós-graduando a distância em Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos pela Universidade da Amazônia (Unama) e lFG; pós-graduando em Direito Constitucional pela Unisul, pelo IDP (Instituto Brasileiro de Direito Público) e pelo IFG (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes)

 

 

 

Notas

 

[1] PARAIRE, Philippe. Os mortos-vivos da globalização. In: O livro negro do capitalismo, p. 465, 468, 469, 471, 475 a 478, 481, 3ª ed., Record, São Paulo, Rio de Janeiro: 2000. 

2 LIMA, Fernando Antônio. Projeto de lei nº 282/2003, do Senado Federal: um novo atentado ao direito de defesa.   Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 14 , nº 169, dez.2006, p. 18.

3 FARIA, José Eduardo. Direitos humanos e globalização econômica: notas para uma discussão. Estudos Avançados, São Paulo, 1997, p. 50-51, apud Alberto Silva Franco, Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 8, nº 31, p. 121, julho-setembro, 2000.

4FRANCO, Alberto Silva, Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 8, nº 31, p. 122,  julho-setembro, 2000.

5 Folha de São Paulo, Cotidiano (C4), 30 de março de 2007, p. 4.

6SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio da dignidade humana, p. 1. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=160. Acesso em: 12fev.2007.

7 “Neste sentido, defende-se que a pessoa humana, enquanto valor, e o princípio correspondente, de que aqui se trata, é absoluto, e há de prevalecer, sempre, sobre qualquer outro valor ou princípio” (SANTOS, Fernando Ferreira dos, ob. cit., p. 3).

8 FARIAS, Edilsom Pereira, Colisão de direitos, p. 51, apud Fernando Ferreira dos Santos, ob. cit., p. 5.

9 MENDES, Gilmar. Aula proferida na pós-graduação de direito constitucional. Unisul – videoconferência, dia 30 de março de 2007.

10MENDES, Gilmar. Direitos fundamentais. Disponível em: www.uaberta.unisul.br. Acesso em: 6.jul.2006.

11 MENDES, Gilmar, ob. cit., p. 29 e 30.

12BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. Disponível em: www.uaberta.unisul.br. Acesso em: 6.jul.2006.



 



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