SENTENÇA
Durante o decorrer do processo, vários atos jurisdicionais são praticados pelo órgão julgador. São eles: os despachos, as decisões interlocutórias e as decisões definitivas. Sinteticamente, pode-se dizer que os despachos têm a finalidade de dar andamento ao processo, enquanto que as decisões interlocutórias buscam solucionar questão controvertida, diversa do fato principal, suscitada pelas partes. Tais decisões podem ou não por fim ao processo ou a um de seus estágios, sendo, por isso, classificadas em interlocutórias mistas ou interlocutórias simples, conforme o caso.
Há ainda as decisões definitivas que, embora ponham fim ao processo, julgando acerca da pretensão punitiva do Estado, não avaliam a procedência ou improcedência da acusação que pesa sobre o réu. Em regra, apenas reconhecem alguma causa extintiva da punibilidade. Diferem, portanto, das decisões interlocutórias mistas, visto que nessas não é avaliada a pretensão punitiva estatal.
Por fim, como ato coroador de toda a atividade jurisdicional, o juiz elabora a sentença.
CONCEITO
Vista de forma isolada, a sentença é o ato essencial mais esperado dentro do processo. Trata-se de um ato de inteligência onde o juiz torna certa a vontade da lei no caso concreto. Para Guilherme de Souza Nucci, a sentença é “a decisão terminativa do processo e definitiva quanto ao mérito, abordando a questão relativa à pretensão punitiva do Estado, para julgar procedente ou improcedente a imputação”.[1]
Fernando Capez leciona que a sentença é “uma manifestação intelectual lógica e formal emitida pelo Estado, por meio de seus órgãos jurisdicionais, com o objetivo de pacificar a sociedade, compondo a lide com a aplicação da lei ao caso concreto”.[2]
É com a sentença, tida em seu sentido estrito, que o juiz põe fim ao processo, decidindo pela procedência ou improcêndia da pretensão punitiva do Estado. Para tanto, faz um apanhado geral das provas que lhe foram apresentadas pelas partes e, motivadamente, aplica o regramento legal pertinente às circunstâncias da causa, solucionando, a partir da análise final do mérito, o conflito principal levado a seu conhecimento pela acusação.
Natureza Jurídica
Vladimir Balico apresenta a sentença com a natureza jurídica de fato jurídico e ato jurídico, simultaneamente.[3] Enquanto gênero, o ilustre professor considera que o simples fato do pronunciamento da sentença produz efeitos atribuídos pela lei, independentemente de seu conteúdo, razão pela qual a tem como fato jurídico. Em contrapartida, os efeitos da sentença decorrem da vontade do Estado, representado pelo órgão julgador, e, assim, retrata concretamente, no caso especificamente considerado, mediante ato do juiz, os ditames legais abstratamente concebidos. Observe-se que, sob esse prisma, o juiz não apenas declara a vontade da lei, mas também esclarece as razões que o motivaram a tomar uma e não outra decisão. Nessa concepção, tem-se a sentença como ato jurídico.
Dissertando sobre a natureza jurídica da sentença, Guilherme Nucci apresenta a classificação da mesma, o que será feito no tópico seguinte.[4]
CLASSIFICAÇÃO
Em que pese a existência de diversas classificações para a sentença, a maioria da doutrina,[5] com pouca diferença, adota a que distingue a sentença em sentido amplo, aí compreendidas as decisões, e a em sentido estrito.
A primeira subdivide-se em interlocutórias simples e interlocutórias mistas, já estudadas anteriormente. A segunda, por sua vez, considerada em sentido próprio, tal qual dispõe o artigo 162, §1°, do Código de Processo Civil, compreende a sentença condenatória, a absolutória e a terminativa de mérito (ou definitiva em sentido estrito).
Na sentença condenatória, a pretensão punitiva do Estado é julgada total ou parcialmente procedente, devendo o juiz fixar, exatamente, a sanção penal a ser infligida ao acusado. A sentença absolutória, por outro lado, é exarada quando o juiz se convence da improcedência da imputação apresentada pelo órgão acusador, subdividindo-se em própria, quando não acolhe a pretensão punitiva e não impõe qualquer sanção ao acusado, e imprópria, quando, apesar de ter havido julgamento no sentido da absolvição, ao réu é imposta medida de segurança.
A sentença terminativa de mérito se equivale às decisões terminativas anteriormente citadas, ou seja, julgam o mérito, mas não condenam nem absolvem o acusado. É o que ocorre, por exemplo, quando se julga extinta a punibilidade.
Para Gulherme Nucci e Mirabete, as sentenças absolutórias e as terminativas de mérito são também classificadas como declaratórias, uma vez que, no caso da primeira, “apenas consagra o estado de inocência, inerente a todo ser humano, desde o nascimento”.[6] Os renomados autores acrescentam ao rol das classificações, ora apresentado, as sentenças constitutivas, assim consideradas as que concedem a reabilitação, restituindo ao acusado direitos perdidos pela força de uma condenação definitiva.
Outrossim, a doutrina[7] faz referência à classificação da sentença que leva em consideração o órgão que a prolata, podendo ser, então, subjetivamente simples (proferida pelo juízo singular ou monocrático), subjetivamente plúrima (proferida por órgão colegiado homogêneo) e subjetivamente complexa (proferida por órgãos colegiados heterogêneos).
Nucci apresenta ainda as sentenças como material (aquelas que decidem o mérito da causa) e formal (aquelas que decidem questões meramente processuais)[8] e Mirabete expõe o que chama de sentença executável (que pode ser executada de imediato), não executável (da qual ainda pende recurso) e condicional (cuja execução depende de um acontecimento futuro e incerto).[9]
Requisitos
Por se tratar de ato essencial do processo, prevê o artigo 381 do Código de Processo Penal determinados requisitos que, obrigatoriamente, as sentenças devem respeitar e conter. São eles: “I - os nomes das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias para identificá-las; II - a exposição sucinta da acusação e da defesa; III - a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão; IV - a indicação dos artigos de lei aplicados; V - o dispositivo; e, por fim, VI - a data e a assinatura do juiz”.
Os citados requisitos referem-se tanto às sentenças prolatadas no primeiro grau quanto aos acórdãos emanados de órgãos colegiados de instância superior. Sua inobservância pode acarretar nulidade por falta de formalidade de elemento essencial do ato (art. 564, IV, CPP), ficando o julgado viciado passível de anulação.
Na sentença, as partes devem ser claramente identificadas pelo juiz, pois assim estará delimitando aqueles que efetivamente estão envolvidos na relação processual.
Deve também o magistrado se preocupar em expor sucintamente o alegado pela acusação e pela defesa, desde a imputação inicial e a defesa prévia até as alegações finais. É o chamado Relatório. Com ele, o juiz demonstra que tomou conhecimento dos autos e das informações trazidas pelas partes ao processo, estando, destarte, apto a realizar um julgamento justo. A ausência absoluta do Relatório, salvo no caso previsto dos Juizados Especiais Criminais (art. 81, §3°, Lei n° 9.099/95), conduz a nulidade insanável.
Os motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão constituem a fundamentação do órgão julgador que esclarece como e porquê prolatou a sentença nos termos em que é apresentada. A motivação é imperiosa no sistema de livre convencimento adotado pelo ordenamento jurídico pátrio. Para Nucci, “é o cerne, a alma ou a parte essencial da sentença”.[10]
De fato, salientam Grinover, Scarance e Gomes Filho, “o magistrado tem liberdade na seleção e valoração dos elementos de prova para proferir a decisão, mas deve, obrigatoriamente, justificar o seu pronunciamento”.[11]
Quanto a indicação do artigo de lei e o dispositivo, lecionam os citados mestres que ambos integram a parte dispositiva da sentença, cuja falta implica em nulidade irreparável da peça.[12] O primeiro diz respeito às referências legais dos fundamentos e o segundo à conclusão alcançada pelo juiz, julgando procedente ou improcedente a ação. É na parte dispositiva que o magistrado aplica, com base em seu convencimento, formado pela análise criteriosa das provas apresentadas pelas partes, o direito ao caso concreto.
Tem-se no dispositivo a verdadeira sede da decisão.
Por fim, deve o órgão julgador ser identificado, conferindo autenticidade ao julgado e estabelecendo o instante em que foi proferida a sentença. Para tanto, é mister a data e a assinatura do juiz caracterizando verdadeiramente o ato jurisdicional.
CORRELAÇÃO ENTRE ACUSAÇÃO E SENTENÇA E A APLICAÇÃO DOS ARTIGOS 383 E 384 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Estabelece o princípio da correlação que há necessidade imperiosa da correspondência entre a condenação e a imputação, ou seja, o fato descrito na peça inaugural de um processo – queixa ou denúncia – deve guardar estrita relação com o fato constante na sentença pelo qual o réu é condenado.
O princípio da correlação, também chamado de princípio da relatividade[13] ou da congruência da condenação com a imputação ou ainda da correspondência entre o objeto da ação e o objeto da sentença,[14] representa uma das mais relevantes garantias do direito de defesa, pois assegura ao réu a certeza de que não poderá ser condenado sem que tenha tido oportunidade de, previa e pormenorizadamente, ter ciência dos fatos criminosos que lhe são imputados, podendo, assim, defender-se amplamente da acusação.
Nesse contexto, assevera Tourinho Filho que, in verbis,
“iniciada a ação, quer no cível, quer no penal, fixam-se os contornos da res in judicio deducta, de sorte que o Juiz deve pronunciar-se sobre aquilo que lhe foi pedido, que foi exposto na inicial pela parte. Daí se segue que ao Juiz não se permite pronunciar-se, senão sobre o pedido e nos limites do pedido do autor e sobre as exceções e nos limites das exceções deduzidas pelo réu. […] isto é, o Juiz não pode dar mais do que foi pedido, não pode decidir sobre o que não foi solicitado”.[15]
Mirabete, por sua vez, esclarece que
“não pode haver julgamento extra ou ultra petita (ne procedat judex ultra petitum et extra petitum). A acusação determina a amplitude e conteúdo da prestação jurisdicional, pelo que o juiz criminal não pode decidir além e fora do pedido em que o órgão da acusação deduz a pretensão punitiva. Os fatos descritos na denúncia ou queixa delimitam o campo de atuação do poder jurisdicional”.[16]
Alerta ainda o douto jurista que na hipótese de haver distorção entre a imputação e a sentença, sem observância dos dispositivos legais pertinentes à matéria, o direito de defesa do réu poderá estar sendo violado, o que, se comprovado, acarretará a nulidade da decisão (RT 526/396, 565/383, JTACrSP 76/271, RJDTACrim 17/15-25).[17]
Não obstante estar o juiz, de certo modo, adstrito ao requisitório da acusação, não podendo sua sentença afastar-se dos fatos constantes na peça acusatória inicial, cumpre observar a vigência, no Processo Penal, do também princípio da livre dicção do direito (jura novit curia), onde resta consubstanciado que cabe ao juiz conhecer e cuidar do direito (narra mihi factum dabo tibi jus). Assim, o réu não deve defender-se da capitulação dada ao crime pelo Ministério Público ou pelo ofendido ou seu representante legal na denúncia ou na queixa, respectivamente, mas da descrição fática nela constante, ou seja, dos fatos nela narrados.
Nesse sentido, decidiu o STF que “o réu defende-se do fato que lhe é imputado na denúncia ou na queixa e não da classificação jurídica feita pelo MP, ou querelante” (HC 61.617-8-SP, j. 04.05.1984) e “o réu se defende do crime descrito na denúncia e não da capitulação nela constante” (HC 63.587-3-RS, j. 14.02.1986).[18]
Na esteira desses pensamentos, faz-se necessária a breve análise dos artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal.
O artigo 383 prescreve o instituto do emendatio libelli, segundo o qual, “o juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave”. Considerando que a adequação feita pelo Promotor ou querelante é meramente provisória e que os fatos narrados implicita ou explicitamente na peça acusatória são os mesmos analisados e julgados pelo juiz, não há ofensa ao princípio da correlação, pois o que ocorre é simples corrigenda da classificação contida na peça inaugural.
Neste caso, por não ter havido alteração do fato a respeito do qual foi exercido o direito de defesa, pode o juiz alterar a tipificação apresentada pela acusação e até mesmo condenar com pena mais grave, sem que haja necessidade de qualquer providência prévia.[19]
Situação diversa ocorre, entretanto, nas hipóteses do artigo 384, caput e parágrafo único, onde, durante o processo, surgem fatos e/ou circunstâncias elementares não contidos, expressa ou implicitamente, na peça acusatória (mutatio libelli). Por essa razão, a sentença não pode ser proferida de imediato, sob pena de nulidade por ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
A fim de poder proferir sentença válida, atendendo aos princípios norteadores do Processo Penal, deverá o juiz adotar uma das seguintes providências: se os novos fatos e/ou circunstâncias puderem ensejar a aplicação de pena idêntica ou menos grave à que seria imposta pela capitulação inicial, os autos serão baixados à defesa para que, no prazo de 08 (oito) dias, se manifeste e, se o desejar, produza provas, podendo ser ouvidas até 03 (três) testemunhas (art. 384, caput, CPP); se os novos fatos e/ou circunstâncias importarem em pena mais grave, o juiz baixará os autos à acusação para que adite a denúncia ou a queixa, abrindo-se um prazo de 03 (três) dias à defesa para que se, querendo, ofereça provas, arrolando até 03 (três) testemunhas.
Ocorre, entretanto, que o Ministério Público pode aditar a denúncia fora dos parâmetros sugeridos pelo órgão julgador, ou mesmo, sem a determinação do magistrado, aditá-la a qualquer tempo, por força do disposto no artigo 569 do Código de Processo Penal.
Em que pese pensamentos contrários, respaldados no artigo 129, I, da CF/88, que assegura ao Ministério Público, privativamente, a promoção e titularidade da ação penal, Vladimir Balico afirma que no caso de o referido órgão se recusar a aditar a denúncia, o juiz, por analogia, deverá fazer uso da regra prevista no artigo 28 do CPP.[20]
Grinover, Scarance e Gomes Filho asseveram que “caso o juiz julgue, aplicando pena mais grave, sem observância do art. 384, parágrafo único, do CPP, a sentença será nula”.[21]
COISA JULGADA
Prolatada a sentença, as partes devem ser intimadas para que, havendo interesse, interponham, no prazo legal, o recurso cabível. Não o fazendo dentro do prazo estabelecido pela lei, a decisão exarada pelo magistrado torna-se definitiva, imutável. Mesmo havendo interposição de recurso, esgotadas todas as vias possíveis de reexame da sentença atacada, com a derradeira manifestação do órgão jurisdicional revisor, confirmando ou modificando a decisão, esta se revestirá do caráter da inalterabilidade. Nesses casos, ocorre o fenômeno da coisa julgada.
Para José Frederico Marques a coisa julgada revela “a imutabilidade da entrega da prestação jurisdicional e seus efeitos, para que o imperativo jurídico contido na sentença tenha força de lei entre as partes”.[22] Vladimir Blanco, de forma bastante semelhante, define a coisa julgada como “o fenômeno da imutabilidade da sentença pela preclusão dos prazos para recurso, pelo qual a imperatividade do comando dela emergente adquire a força de lei entre as partes”. [23]
Distingue a doutrina a coisa julgada formal da coisa julgada material. Enquanto que nesta há apreciação e decisão do mérito, naquela o mérito não é examinado. A conseqüência mais importante disso é que a coisa julgada formal impede a rediscussão da matéria no mesmo processo, não obstando que outra ação seja intentada. Já a coisa julgada material vincula, além das partes, o próprio Poder Judiciário, pois, “encerradas todas e quaisquer discussões possíveis em torno das questões julgadas na sentença, não se podendo voltar à sua discussão em nenhuma outra ação ou processo, significando que, sobrevindo a coisa julgada material, a sentença se torna imutável para as partes e indiscutível para todos os juízes e tribunais”.[24]
Em síntese, enquanto que na coisa julgada formal os efeitos imutáveis da sentença irrecorrível atingem apenas aquele processo em que se obteve a decisão, na coisa julgada material tais efeitos irradiam-se para fora do processo, impedindo, no futuro, nova decisão sobre a mesma lide, ensejando o instituto da exceção de coisa julgada.[25]
Note-se que a coisa julgada formal é pressuposto da coisa julgada material. É possível que haja a coisa julgada formal sem a material, mas o oposto não.
Cintra, Grinover e Dinamarco ensinam que a coisa julgada, seja ela material ou formal, não é efeito da sentença, mas qualidade desta e de seus efeitos.[26]
Para a doutrina, o reconhecimento da coisa julgada se funda na necessidade social de evitar a perpetuação de litígios, assegurando a estabilidade da ordem jurídica e da paz social. Mirabete, por exemplo, citando Fenech, assinala que, in verbis:
“a coisa julgada se funda na justiça e segurança jurídica; se um determinado sujeito foi condenado por fato ilícito, a justiça exige que não se imponha a ele nova sanção pelo mesmo fato, aplicando-se o princípio do ne bis in idem; se o mesmo sujeito foi submetido a um processo penal pela prática de um determinado fato supostamente criminoso, e o órgão jurisdicional que o julgou absolveu o acusado por entender inexistente responsabilidade criminal ou por entender que não existia no caso o jus puniendi, a segurança jurídica exige que não se possa sujeitá-lo novamente a outro processo penal pelo mesmo fato e que não seja ele condenado em decorrência da mesma ocorrência pela qual foi absolvido”.[27]
Cintra, Grinover, Dinamarco e Frederico Marques fazem menção ao que chamam de coisa julgada e coisa soberanamente julgada,[28] esta última própria das sentença absolutórias, as quais não podem ser modificadas, nem mesmo mediante o instituto da revisão criminal. Justifica-se Frederico Marques esclarecendo que:
“Na seara do direito processual penal contrapõem-se a segurança jurídica (fundamento da coisa julgada) e a justiça da decisão. Deve prevalecer a segurança da decisão, tendo em vista que sem esta a justiça seria muito precária. Assim, em se tratando de sentença penal absolutória, ainda que injusta, impõe-se segurança jurídica a impedir a rediscussão da matéria, no mesmo ou em qualquer outro processo. É dizer: opera-se a imutabilidade absoluta da coisa soberanamente julgada”.[29]
LIMITES OBJETIVOS E SUBJETIVOS
De forma bastante didática, Cintra, Grinover e Dinamarco orientam que estabelecer os limites objetivos da coisa julgada é o mesmo que questionar quais partes da sentença estão revestidas pelo manto da coisa julgada. Por outro lado, os limites subjetivos referem-se a quem é atingido pela autoridade da coisa julgada.[30]
Os limites objetivos da coisa julgada, na seara penal, estão indiretamente delineados no artigo 110, §2°, do CPP, onde está previsto que “a exceção de coisa julgada somente poderá ser oposta em relação ao fato principal, que tiver sido objeto da sentença”. Destarte, apenas o fato principal, assim entendido como o evento naturalístico do agente, está acobertado pelo manto da coisa julgada. Excluem-se, portanto, as causas decididas incidenter tantum, assim como os motivos e fundamentos da sentença. Observe-se, todavia, que se houver questão prejudicial decidida como questão principal em outro processo, civil ou penal, a sentença que sobre ela verse ficará, naturalmente, resguardada pelo fenômeno da coisa julgada material.[31]
No que tange aos limites subjetivos da coisa julgada, o artigo 472 do Código de Processo Civil, aplicável de forma integrativa a todas as disciplinas processuais, disciplina que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros”. Restringe-se, portanto, às partes os efeitos da imutabilidade da res judicata.
O principal fundamento para tanto, na concepção de Cintra, Grinover e Dinamarco, é de índole política: “quem não foi sujeito do contraditório, não tendo a possibilidade de produzir suas provas e suas razões e assim influir sobre a formação do convencimento do juiz, não pode ser prejudicado pela coisa julgada conseguida inter alios”.[32]
Por essa razão, particularmente no processo penal, nem a conexão entre os crimes ou entre pessoas tem o condão de estender a coisa julgada a terceiros. Explicam os autores acima mencionados que, in verbis:
“nem a condenação nem a absolvição do réu, num processo, podem constituir obstáculo para sentença a ser proferida com relação a outro réu, em processo diverso, quando os crimes, embora conexos, sejam julgados separadamente (p. ex. quando se trate de receptação, com relação ao furto). A mesma impossibilidade de transportar a coisa julgada para outro processo, contra réu diverso, ocorre no concurso de agentes, quando o co-agente não integra a mesma relação processual penal.
Diversa é a situação do litisconsorte, co-réu no mesmo processo, a quem se estendem os efeitos benéficos do recurso do litisconsorte que recorreu, salvo quando os motivos forem de caráter exclusivamente pessoal (CPP, art. 580)”.[33]
EFEITOS CIVIS DA SENTENÇA PENAL
Os artigos de 63 a 68 do Código de Processo Penal, 584, II, do Código de Processo Civil e 91, I, do Código Penal deixam claro que os efeitos da sentença penal têm nítida repercussão na esfera civil.
De fato, dispõe o artigo 63 do CPP que “transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros”. Continua o artigo 64 prevendo que “a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil”.
Outrossim, estabelece claramente o artigo 65 que “faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”, asseverando o CPP, no artigo 66, que “não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato”.
Malgrado o disposto no artigo 935 do novo Código Civil, onde consta que a responsabilidade civil é independente da criminal, apregoa o mesmo dispositivo civilista que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” e que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (artigos 186 c/c 927 do Código Civil).
Dentro do contexto exposto, fazendo-se a devida diferenciação entre responsabilidade civil e penal, pacífico é o entendimento que, havendo dado causado por qualquer ato ilícito, penalmente relevante ou não, atentando-se às exceções descritas nos incisos I e II do artigo 188 do Código Civil (atos praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; e a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente), o infrator ficará obrigado a indenizar, civilmente, o prejuízo causado.
FLÚVIO CARDINELLE OLIVEIRA GARCIA é delegado de polícia federal em Curitiba/PR e mestrando em Processo Penal pela PUC/SP -fluviocogarcia@ig.com.br; fluvio.fcog@dpf.gov.br
[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 2ª ed. São Paulo: RT, 2003. p. 561.
[2] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 3ª ed. São Paulo. Saraiva, 1999, p.348.
[3] BALICO, Vladimir. Sentença. Correlação entre acusação e sentença. Coisa julgada. Limites objetivos e subjetivos. Efeitos civis da sentença penal. Aplicação dos arts. 383 e 384, do código de processo penal, e a ineficácia dos atos processuais. O sistema de nulidades do processo penal. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Tratado temático de processo penal. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. pp. 400-2.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit. pp. 561-2.
[5] BALICO, Vladimir. Op. Cit. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Op. Cit. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. pp. 405-7; NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit. pp. 561-2; MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 10ª ed., 2000. pp. 445-6.
[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit. pp. 561-2; MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 446.
[7] BALICO, Vladimir. Op. Cit. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Op. Cit. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. pp. 405-7; NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit. pp. 561-2; MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 10ª ed., 2000. pp. 445-6.
[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit. p. 562.
[9] MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 446.
[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit. p. 563.
[11] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: RT, 7ª ed., 2001. pp. 211-2.
[13] MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
[14] GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: RT, 7ª ed., 2001. p. 222.
[15] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. Vol. 1. p. 50.
[16] MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
[18] Ainda nesse sentido: RT 461/306 e 507/525.
[19] GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. pp. 222-3.
[20] BALICO, Vladimir. Op. Cit. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Op. Cit. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 424.
[21] GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. p. 226.
[22] MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 1962, v. 3, p. 79.
[23] BALICO, Vladimir. Op. Cit. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Op. Cit. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 408.
[25] MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 472.
[26] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. p. 307.
[27] MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 471.
[28] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. p. 307; MARQUES, José Frederico. Op. Cit. pp. 411.
[29] MARQUES, José Frederico. Op. Cit. pp. 411.
[30] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. p. 307; MARQUES, José Frederico. Op. Cit. pp. 308-12.
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