“Quem poderá definir essa pulsação misteriosa, própria aos organismos animais e vegetais, que sopita inadvertida nas sementes de trigo encontradas nos sarcófagos de faraós egípcios e que germinam milagrosamente depois de dois milênios de escuridão, que se oculta na gema de uma roseira que mãos habilidosas transplantam de um para outro caule, que lateja, irrompe e transborda na inflorescência de milhões de espermatozóides que iniciam sua corrida frenética à procura de um único óvulo, a cada encontro amoroso?” (Antônio Chaves, “Direito à vida e ao próprio corpo”, p. 13).
1. Introdução: a Constituição de 1988 como um marco jurídico.
A Constituição da República apresenta textualmente a inviolabilidade do direito à vida, encabeçando os direitos e garantias individuais (art. 5º, caput), e o princípio da dignidade da pessoa humana, como fundamento da República (art. 1º, III). E, de início “cabe considerar que a Carta de 1988, como marco jurídico da transição ao regime democrático, alargou significativamente o campo dos direitos e garantias fundamentais, estando dentre as Constituições mais avançadas do mundo no que diz respeito à matéria.”[1]
2. O direito à vida: um direito fundamental.
O direito à vida, considerando os bens integrantes físicos, psíquicos e morais da personalidade, transcende todo um ramo do direito, ou melhor, é ubíquo, por ocupar posição de primazia (princípio do primado do direito mais relevante)[2]; é bem maior na esfera natural e jurídica, uma vez que em sua volta, e como conseqüência de sua existência, todos os demais direitos da pessoa humana gravitam, revelando, assim, o aspecto da inviolabilidade.
Trata-se de direito irrenunciável, que se manifesta desde a concepção, ainda que artificialmente, até a morte, com proteção exigida quanto mais insuficiente for o seu titular, intransmissível (quanto à impossibilidade de mudança de sujeito, de titularidade - direito inerente à pessoa), indisponível, não sendo um direito sobre a vida, mas à vida.
É, portanto, de caráter negativo, impondo-se pelo respeito que a todos se exige (erga omnes), de maneira que é direito à vida sem direito à morte, sendo ineficaz qualquer declaração de vontade do titular que importe em cerceamento a esse direito, mesmo sob consentimento (princípio da irrelevância do consentimento)[3], porque se entende universalmente que o homem não vive apenas para si, mas para cumprir missão própria na sociedade. É, assim, um direito fundamental; em suma, um direito natural, como expressão jurídica da experiência humana.
Direitos fundamentais são aqueles sem os quais “a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida”[4] e que correspondem às suas necessidades essenciais, caracterizados pela universalidade, indivisibilidade e irrevogabilidade.
Acrescente-se que em face dessas características não cabe uma classificação exaustiva, como se costuma fazer numa visão histórica dos direitos do homem, para a qual, após os direitos individuais, considerados de 1ª geração, vieram os direitos sociais, ditos de 2ª geração, seguidos dos direitos ecológicos, como de 3ª geração, e que hoje estar-se-ia diante dos de 4ª geração, cujas exigências estão concentradas nos “efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.”[5] Na realidade, "adota-se o entendimento de que uma geração de direitos não substitui a outra, mas com ela interage. Isto é, afasta-se a idéia de sucessão 'geracional' de direitos, na medida em que se acolhe a idéia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos essencialmente complementares e em constante dinâmica de interação." [6]
Como diz Fábio Konder Comparato:
“Tudo começou com o reconhecimento de que os seres humanos, qualquer que seja o seu sexo, sua raça, sua situação patrimonial, ou o grupo cultural a que pertencem, possuem direitos inatos, que governantes não criam nem podem suprimir (...) para alcançar enfim, no encerramento do século XX, a própria humanidade em seu conjunto.” [7]
Ora, “...todos têm direito à vida, não importando a idade, a cor da pele, o lugar onde nasceu, a preferência política, a profissão, a riqueza ou pobreza, ou qualquer outro fator.”[8]
3. A dignidade da pessoa humana.
O direito à vida tem seu substrato na dignidade da pessoa humana como princípio fundamental.
Observa-se, preliminarmente, que sua localização está em posição hierárquica superior, porque “a pessoa é o valor-fonte de todos os valores ou o valor fundante da experiência ética.”[9] De maneira que, “...constituindo, em conseqüência, um ‘minimum’ invulnerável que todo o ordenamento jurídico deve assegurar, e que nenhum outro princípio, valor, ser pode sacrificar, ferir o valor da pessoa.”[10]
Liga-se ele ao sentido que cabe ao homem, no cumprimento de sua missão neste mundo (implicando um compromisso do Estado e das pessoas), respeito e proteção mútuos para com a vida de cada um, com a certeza de que as virtudes de cada qual poderão se expandir e se concretizar.
Condiz à própria ‘ratio juris’, pela qual “a dignidade é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”[11], no aspecto de não se menosprezar a estima de qualquer um.
Tal princípio, textualmente consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988 como fundamental (art. 1º, III), deve ser analisado conjuntamente com o da inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, ‘caput’).
Desse modo, qualquer projeto de lei tendente a abolir a inviolabilidade (intangibilidade ou intocabilidade) do direito à vida será inconstitucional, não sendo sequer suscetível de emenda, nos termos do art. 60, § 4º, da Constituição.
Cabe lembrar que, pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, está em vigor a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica) que dispõe em seu artigo 4º, item 1: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.”
4. Conclusão.
Assim, a pessoa, digna e íntegra pela sua própria existência única e ao mesmo tempo partícipe no mundo, deve ser respeitada e preservada em seu destino, para que continue vivendo, como medida do Direito, substancialmente.
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[1] Flávia Piovesan. “Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional”, p. 57.
[2] PONTES DE MIRANDA. “Tratado de Direito Privado”, Parte Especial, Tomo VII, 2ª ed., p. 15 e 23.
[3] Idem, Ibidem, p. 15-16.
[4] Dalmo de Abreu DALLARI. “Direitos Humanos e Cidadania”, p. 7.
[5] Norberto BOBBIO. “A era dos direitos”, p. 6.
[6] Flávia PIOVESAN. "Temas de Direitos Humanos", p. 27-28.
[7] “A afirmação histórica dos direitos humanos”, p. 403.
[8] Dalmo de Abreu DALLARI. “O que são direitos da pessoa?”, p. 12.
[9] Inocêncio Mártires COELHO. “Interpretação constitucional”, p. 84.
[10] Fernando Ferreira dos SANTOS. “Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”, p. 105.
[11] Alexandre de MORAES. “Direitos humanos fundamentais”, p. 60.