166 - Penhora sobre salários, proventos da aposentadoria e poupança: o princípio da legalidade e a utilidade da jurisdição

 
TEREZA APARECIDA A. GEMIGNANI – Juíza de Direito
 

“Não se escapou, aqui, de uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que não se inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo”

 

                            Luis Roberto Barroso

 

Resumo: O artigo se propõe a analisar a questão da penhora sobre salários, proventos da aposentadoria e poupança, sob a perspectiva da constitucionalização do processo, chamando atenção para os efeitos que a decisão produz na realidade fática que permeia o mundo do trabalho. Ressalta que é preciso maximizar a aplicação do princípio da legalidade, a fim de preservar a utilidade e a eficiência funcional da jurisdição.

 

Palavras-chave: penhora sobre salários, proventos de aposentadoria e poupança, maximização do princípio da legalidade, utilidade e eficiência funcional da jurisdição.

 

Sumário: 1 - Introdução;  2 - O direito do avesso;  3 -  A  constitucionalização  do  processo;  4 - A solução dada pelo sistema e o princípio da legalidade; 5 - A efetividade e utilidade da jurisdição; 6 - Conclusão; 7 - Bibliografia 

 

1-Introdução

 

Nosso direito sempre reconheceu a importância e relevância do salário, tanto assim que lhe conferiu a garantia da impenhorabilidade, quando confrontado com outro crédito de natureza diversa da alimentícia.

 

A questão ora enfrentada se reveste de maior complexidade, pois pretende analisar se esta garantia subsiste de forma absoluta, mesmo quando se trata de proceder ao pagamento de outro salário, verba que ostenta a mesma natureza. É o caso concreto que vem se multiplicando nas Cortes Trabalhistas, do empregador que, depois de desfazer seu negócio, ou de encerrar suas atividades empresariais, passa a trabalhar como empregado, ou se aposenta. Entretanto, fica devendo verbas salariais ao seu ex-empregado, que bate às portas da Justiça para executar a dívida e receber o que é seu.

 

Neste caso, poderíamos sustentar que remanesce a impenhorabilidade absoluta e integral de um salário (do ex-empregador), conferindo-lhe total garantia, ao mesmo tempo em que todas as garantias são negadas ao outro salário (do ex-empregado)?      

 

2-O direito do avesso

 

Um dos pilares de sustentação do Direito do Trabalho está calcado no conceito de que se o empregador detém o poder diretivo do empreendimento, deve exercê-lo em sua integralidade não só no que se refere aos bônus, mas também quanto aos ônus, não podendo transferir o encargo respectivo para o empregado. Se em alguns países, principalmente europeus, a idéia de gestão compartilhada é considerada viável, no Brasil isso não acontece. Todo empregador é muito cioso de seu poder exclusivo de dirigir a atividade empresarial e, via de regra, não aceita que haja qualquer participação dos empregados. Por esse motivo, o direito do trabalho também deve ser vigilante para impedir que sejam imputados aos empregados os efeitos decorrentes do insucesso patronal nos negócios.

 

Num ambiente de conjuntura econômica instável, marcada por um índice considerável de mortalidade das pequenas e médias empresas, o que preocupa é a tentativa de jogar nas costas do empregado, os efeitos econômicos da má condução empresarial do empregador.

 

Não é incomum a situação daquele que abriu um negócio, se deu mal e despediu os empregados sem lhes pagar os direitos devidos, passando a trabalhar como empregado e recebendo salários, ou mesmo os proventos de aposentadoria em caso de jubilação.

 

Durante o período em que a empresa funcionou auferiu os benefícios da força de trabalho dos empregados, que não dispunham de nenhuma participação em seu poder diretivo. Porém, quando sobreveio o infortúnio, despediu-os sem lhes pagar a devida contraprestação pelo trabalho (salários e direitos trabalhistas de natureza alimentar), pretendendo transferir-lhes as conseqüências da má performance patronal na gerência dos recursos empresariais.

 

Ajuizada a ação trabalhista e com um título judicial em mãos, os empregados encontram dificuldades para receber o que lhes pertence, oportunidade em que descobrem que seu antigo empregador está trabalhando e recebendo salários, aposentado e auferindo os respectivos proventos ou até mesmo amealhando recursos em poupança.

 

A questão que se coloca é: pelo ordenamento legal em vigor, o ex-empregado tem, ou não, o direito de executar uma decisão que reconheceu a existência de créditos trabalhistas de natureza alimentar em seu favor, para tanto penhorando os salários, proventos de aposentadoria ou poupança do seu devedor (ex-empregador), que se beneficiou dos frutos de seu trabalho?

 

Ao tratar da impenhorabilidade, o artigo 649 do CPC já sinalizava de forma significativa a exceção quanto ao pagamento de prestação alimentícia (inciso IV do artigo 649 do CPC), assim reconhecendo que o crédito de natureza alimentar detinha condição especial, de modo que este benefício não pode ser concedido apenas a uma das partes, em detrimento de outra, quando os interesses contrapostos se referem a verbas de mesma natureza, tanto em relação a um, quanto  a outro.

 

A recente alteração promovida pela lei 11.382/2006 explicitou de forma ainda mais clara esta questão, estabelecendo expressamente que não só em relação aos salários, mas também quanto aos proventos de aposentadorias e pensões, e quantias destinadas “ao sustento do devedor e sua família”, a impenhorabilidade deixa de subsistir em caso de “penhora para pagamento de prestação alimentícia” (inciso IV e parágrafo 2º do artigo 649 do CPC), sinalizando que, em cumprimento a disposição legal expressa, ambos os interesses estão resguardados e assim devem ser satisfeitos. Ademais, importante registrar que a exceção legal não se refere apenas a “pensão alimentícia”, pois não foi esse o conceito agasalhado pela lei, mas sim “prestação alimentícia”, que detém conotação mais abrangente, assim incluindo os créditos trabalhistas, que ostentam inequívoca natureza alimentar, pois é com eles que o trabalhador consegue prover a sua subsistência, de modo que a tese da impenhorabilidade absoluta dos salários do ex-empregador, em desfavor dos salários do ex-empregado, se revela insustentável pelo ordenamento processual em vigor.

 

3-A constitucionalização do processo

 

Ao discorrer sobre a idéia mestra, que norteou as alterações implementadas no processo civil na última década do século 20, Dinamarco[1] destaca, com percuciência, que a garantia constitucional de acesso a justiça não pode ser interpretada como  simples  ingresso em Juízo, pois “seria algo inoperante e muito pobre se se resumisse a assegurar que as pretensões das pessoas cheguem ao processo, sem garantir-lhe também um tratamento adequado. É preciso que  as pretensões apresentadas aos juízes cheguem efetivamente ao julgamento de fundo, sem a exacerbação de fatores capazes de truncar o prosseguimento do processo”, sob pena do próprio sistema se tornar estéril, assim frustrando o direito de ação que detém garantia constitucional, abrindo caminho para a desagregação social, cujo resultado cabe ao direito evitar.   

 

Ademais, ensina que o exercício da jurisdição também tem o escopo de “educar as pessoas para o respeito a direitos alheios e para o exercício dos seus”, pois quando a justiça funciona mal “transgressores não a temem e lesados pouco esperam dela”, o que leva ao descrédito das instituições. Neste sentido, quando um trabalhador detém uma decisão judicial que reconhece a existência de créditos em seu favor, e não consegue executá-la para receber o que é seu, tal não configura apenas um apequenamento de seu direito individual à jurisdição, mas compromete o próprio sistema jurídico, que se mostra ineficiente e incapaz de solucionar o conflito existente, estigma que pode levá-lo ao descrédito e asfixia, causando um dano a toda sociedade,  que sente o colapso de uma de suas artérias mais importantes de oxigenação.

 

Daí a necessidade de se evitar a “eternização dos conflitos e o prolongamento das angústias dos litigantes”, garantindo o necessário equilíbrio entre duas forças antagônicas: “de um lado a celeridade processual, que tem por objetivo proporcionar a pacificação tão logo quanto possível; de outro a ponderação no trato da causa e das razões dos litigantes, endereçada à melhor qualidade dos julgamentos”.

 

Ao inserir o inciso LXXVIII, no artigo 5º da CF/88, a Emenda Constitucional 45/04 ressaltou que estas duas forças não atuam em separado, mas como vasos comunicantes de um mesmo movimento, de modo que uma não existe, se a outra não for observada.

 

Assim, se o ex-empregador tem direito aos seus salários, também deve responder pelo período em que se beneficiou da força de trabalho e pagar o débito que tem em relação ao seu ex-empregado, pois se trata de crédito que ostenta a mesma natureza (salarial). Ademais, é sempre saudável fazer valer as diretrizes fundantes da ciência do direito - nemine laedere e sum cuique tribuere - ressaltando seu papel pedagógico e formador do comportamento social, sinalizando ao devedor que o sistema jurídico não admite, que alguém possa beneficiar-se do trabalho dispendido por outro ser humano, deixar de entregar a necessária contraprestação que lhe pertence, e ficar tudo por isso mesmo, sem sofrer nenhuma conseqüência.

 

Nesta linha de raciocínio, mais insustentável ainda é admitir que alguém possa manter uma reserva que lhe sobra (poupança), deixar de pagar verbas de natureza alimentar a outrem, que delas necessita para atender as suas necessidades básicas de subsistência, de modo que o disposto no inciso X, do artigo 649 do CPC, quanto à impenhorabilidade das cadernetas de poupança até 40 salários-mínimos, não pode ser aplicado quando se trata de crédito trabalhista.

 

Erigido como fundamental pela Constituição Federal em vigor, o direito do trabalho, inclusive em sua vertente processual, se encontra cada vez mais permeável ao movimento de constitucionalização, que vem revolucionando a ciência jurídica contemporânea. Como bem ressalta Dinamarco, o “direito processual constitucional exterioriza-se mediante a tutela constitucional do processo”, consistente na observância de um conjunto de princípios e garantias postos pela Constituição, como a isonomia e o devido processo legal, entre outros.

 

Neste passo, como reconhecer que está sendo observado o devido processo legal se a parte, vencedora numa ação, fica com uma sentença em mãos sem poder executá-la? Onde está o enforcement da jurisdição? Trocando em miúdos, para que serve a jurisdição, se é para terminar assim? Para que serve o estado democrático de direito, se os que devem continuam a dever, e os que tem a receber nunca recebem?

 

Trata-se de reconhecer que as garantias constitucionais não são belas palavras, agradáveis de ouvir, mas bens da vida, cuja eficácia deve ser devidamente observada.

 

Com efeito, se a lei passa a ser vista apenas como algo etéreo, que não precisa ser cumprido e ali está apenas “para constar”, como sustentar institucionalmente um país?

 

Como concluir que foram respeitados os princípios da legalidade e isonomia, se a impenhorabilidade absoluta vem beneficiar apenas os salários do ex-empregador, deixando as verbas salariais do ex-empregado sem qualquer garantia? 

 

Trata-se, na verdade, de conferir concretude aos princípios reitores da vida em sociedade. A razoável duração do processo, estabelecida no inciso LXXVIII, do artigo 5º da CF/88, permite que o vencedor de um processo e detentor de um título judicial permaneça anos a fio sem receber seu crédito?

 

O princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no inciso XXXV do artigo 5º da CF/88, permite que o Estado assista impassível alguém usufruir os benefícios proporcionados pelo trabalho de outrem e deixe de remunerá-lo por isso?

 

O devido processo legal, agasalhado no inciso LIV do artigo 5º da CF/88, permite que um processo pare na execução e assim permaneça sem a adequada solução, quando o devedor tem a possibilidade de solver seu débito, mesmo que isso ocorra de forma mais gradual, através do depósito de um percentual de sua renda mensal?

 

Por que a garantia prevista no inciso X do artigo 7º da CF/88 deve beneficiar apenas o salário do “ex-empregador”  e não o salário do “ ex-empregado”?

 

Ora, não é sustentável a interpretação que impeça o resultado útil da jurisdição!

 

Como ramo do direito público, a validade do direito processual está definitivamente atrelada a sua “capacidade de decidir imperativamente e impor decisões”, sem esquecer que é preciso obter o “máximo possível de garantia social com o mínimo de sacrifício pessoal”, como ressalta Dinamarco.

 

Neste mesmo sentido caminha Nelson Nery Junior [2], ao discorrer sobre a conceituação do devido processo legal, explicando que este princípio “caracteriza-se pelo trinômio vida-liberdade-propriedade, vale dizer, tem-se o direito de tutela àqueles bens da vida em seu sentido mais amplo e genérico”, ou seja, a “ possibilidade efetiva de a parte ter acesso à Justiça”, o que inclui o efetivo recebimento dos direitos judicialmente reconhecidos.

 

Com efeito, de que valeria ter direito a isonomia, ao contraditório, a publicidade, à motivação das decisões, se tudo isso acabar numa folha de papel, sem que o bem da vida seja entregue ao credor?

 

4-A solução dada pelo sistema e o princípio da legalidade

 

 

A solução passa pela utilização do principio da proporcionalidade, a fim de preservar as garantias constitucionais e gerar importantes reflexos no balizamento das condutas sociais. Com efeito, ao proceder a penhora de um percentual-geralmente 30% - dos salários do ex-empregador, para garantir o pagamento dos salários que deve ao ex-empregado, o Estado está conferindo  utilidade  e eficácia ao exercício da jurisdição, assim garantindo a  credibilidade das instituições, ao mesmo tempo em que sinaliza ao devedor que deve honrar seus compromissos, nem que para isso tenha que se privar de algo, pois é preciso reconhecer que as necessidades do outro, pelo recebimento de um crédito de natureza alimentar, são tão importantes quanto as suas, assim resgatando o sentido da alteridade, base de edificação do ordenamento jurídico.

                 

Ora, a impenhorabilidade salarial absoluta, prevista no inciso IV do artigo 649 do CPC, só pode ser reconhecida quando houver conflito de interesses entre um crédito de natureza civil e uma verba salarial, caso em que o juiz se limita a subsunção do fato à regra.

 

Entretanto, quando o conflito envolve interesses salariais das duas partes, o caso é diferente, levando o julgador a socorrer-se dos princípios constitucionais como bússolas de orientação, pois é preciso proceder à interpretação do direito posto no inciso supra referido, não como norma isolada, mas em consonância com o parágrafo 2º do mesmo artigo 649 do CPC, a fim de obter a justa solução da lide.

 

E o que está posto pelo direito?

 

Está posto que as verbas de natureza salarial detém privilégio sobre as demais.    

     

Se assim é, como resolver um conflito entre duas pretensões, quando ambas detém a mesma natureza e estão igualmente protegidas pelo direito posto?

 

Acaso o sistema respalda uma solução que confere garantias apenas ao salário do devedor (ex-empregador trabalhista), e a nega ao salário do credor (ex-empregado)?

 

Ou seja, um seria “mais salário” do que o outro?

 

Este é o punctum litis da controvérsia, cuja solução tem que ser buscada pela adequada e ponderada interpretação do ordenamento jurídico vigente.

 

Assim, comecemos pelas categorias tradicionais de hermenêutica.

 

a-Análise gramatical

 

Um texto legal não pode ser aplicado pela metade, de modo que não há sustentação para a aplicação pura e simples do inciso IV, do artigo 649 do CPC, sem considerar o constante do parágrafo 2º do mesmo artigo. Neste passo, a conclusão de que o salário do ex-empregador se reveste de impenhorabilidade absoluta, em detrimento das verbas salariais devidas ao ex-empregado, não encontra amparo nem mesmo na simples análise gramatical, do texto expresso na lei processual.

 

b-Análise sistemática e teleológica

 

Ao tratar da execução de um débito de natureza civil, a norma processual sinalizou claramente que, neste contexto, a verba salarial é privilegiada e assim deve ser resguardada. Assim, se à vista de um primeiro exame superficial se pudesse alegar que o disposto no artigo 649 do CPC respaldaria a tese patronal, uma análise mais acurada e criteriosa do direito posto revela exatamente o contrário, ou seja, a regra processual sinalizou claramente que as verbas salariais ostentam garantias especiais.  Porém, em nenhum momento estabeleceu que essas garantias  seriam conferidas apenas aos salários do ex-empregador, e negadas aos salários do ex-empregado. Ambos constituem verbas da mesma natureza- salarial- e um não pode ser considerado mais importante do que o outro, porque o sistema legal em vigor assim não dispôs.

 

Ademais, como sustentar que o salário do ex-empregador é intocável, se ele próprio não reconheceu este direito aos salários que deve ao ex-empregado?  Como dar ao ex-empregador uma garantia que ele sonegou ao ex-empregado, e concluir que isto foi fixado pelo ordenamento, quando em nenhum momento o direito posto assim estabeleceu?

 

Conforme bem ponderou Carlos Maximiliano[3], não “basta a elaboração lógica dos materiais jurídicos que se encontram num processo, para atingir o ideal de justiça, baseada nos preceitos codificados. Força é compreender bem os fatos e ser inspirado pelo nobre interesse pelos destinos humanos; compenetrar-se dos sofrimentos e aspirações das partes”, fazendo valer o Direito como instrumento que possibilita a  coexistência humana.

 

Num sistema em que ao Estado cabe o monopólio da força e da jurisdição, como sustentar que alguém, apesar de ser detentor de um título judicial executivo formado por verbas de natureza salarial, nada receba porque, ao contrário do que ocorreu em relação aos seus, os salários daquele que lhe deve são mais importantes e devem permanecer intocáveis. Ou seja, como sustentar que os salários do ex-empregador, “são mais salários” que os salários do ex-empregado?

 

É inequívoco que tal posicionamento se revela inadmissível num Estado de Direito, pautado pela idéia matriz de dar a cada um o que é seu, pois provoca graves fissuras no edifício jurídico, cuja base de sustentação reconhece expressamente a isonomia e o trabalho, como valores fundantes da república brasileira.

 

Então, como buscar a solução, se as regras tradicionais de interpretação deságuam num impasse?

 

A solução passa pela utilização de novas ferramentas de hermenêutica, a fim de dar a cada um o que é seu, quando ambas as partes ostentam a titularidade de verbas salariais que se contrapõem.

 

A solução passa pelo desenvolvimento de uma nova dogmática, que requer a utilização de categorias próprias de interpretação, que deve estar em conformidade com os princípios postos pela Constituição, notadamente os que possibilitam que, entre duas alternativas possíveis, deverá ser escolhida aquela que confere maior efetividade à jurisdição.

 

Em caso de colisão de direitos fundamentais, como ocorre em relação às  garantias que protegem os salários, tanto do credor, como do devedor,  como fontes de subsistência, a solução passa pela compressão, reduzindo-se o âmbito normativo das garantias de uns, em relação aos outros, nos limites do necessário, sendo que a medida do que comprimir, ou não, é dada pela técnica da ponderação de bens.

 

Ao discorrer sobre o princípio da proporcionalidade, Suzana de Toledo Barros[4] ressalta que, como está previsto expressamente em algumas constituições, como a alemã “em nenhum caso um direito fundamental poderá ser afetado em sua essência” (artigo 19.2), sendo que Constituição Portuguesa também estabelece que “as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias tem de revestir caráter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais” (artigo 18.3). A mesma expressão está contida no artigo 53.1 da Constituição da Espanha, ao prever que somente através de “lei, que em todos os casos deve respeitar seu conteúdo essencial, poderão ser regulados esses direitos e liberdades”.

 

Esclarece, com remissão ao pensamento de Vieira de Andrade, que há dois tipos de teoria para explicar o conceito do que significa a expressão “núcleo essencial”. Para as teorias absolutas o conteúdo essencial seria um núcleo fundamental, determinável em abstrato, próprio de cada direito, resguardando seu âmago, que não poderia ser afetado, sob pena do direito deixar de existir. Para as teorias relativas, cujo maior expoente é Hesse, o conteúdo essencial de um direito só poderia ser determinado “à luz do direito restringido”, isto é, tendo-se em conta o caso concreto, pois é em razão das circunstâncias fáticas, que seria possível apurar a extensão e os limites deste núcleo, cuja “membrana delimitadora” seria “elástica”, de modo que o “tamanho do conteúdo essencial só poderia ser mensurado em face de um conflito específico, ou seja, quando estivessem em jogo valores comprimindo-se reciprocamente”, pois a “restrição é legítima quando indispensável e na medida do necessário para a proteção de um direito fundamental”.

 

Conclui que uma teoria não elimina outra, pois para evitar o relativismo constante, “é necessário julgar as razões das restrições a partir de um dado previamente fixo (conteúdo essencial), embora se deva valorizar uma solução que, prestigiando a concordância prática entre os vários bens concorrentes, possa definir limites mais elásticos aos direitos (mais além ou mais aquém daquilo que teoricamente se poderia prever como limite absoluto) dada a situação apresentada”.

 

Tal diretriz metodológica se apresenta viável, ante a ausência de uma ordem hierarquizada entre os valores constitucionalmente consagrados, de modo que em caso de colisão, a redução do âmbito normativo de cada um, se dará na medida do necessário, para garantir que ambos possam coexistir, balizados pela técnica da ponderação, e adequação de meios e fins. Neste contexto, se por um lado existe a garantia que a lei concedeu aos salários do devedor, por se tratar de um meio de subsistência, por outro lado é preciso reconhecer que esse mesmo direito está assegurado aos salários do credor, que também detém o direito constitucional de acesso à uma jurisdição revestida de utilidade, para que o trâmite processual detenha razoável duração.

 

São esses os interesses em conflito, nascidos da mesma matriz constitucional, assim reivindicados pelas duas partes, cuja solução passa pelo sacrifício de um, na justa medida que possa acarretar a preservação do direito do outro, tendo em vista que ambos possuem uma região de “intersecção”. Neste caminhar, instituir a penhora sobre parte dos salários ou proventos de aposentadoria do devedor -geralmente em 30% -, atende aos escopos legais, pois ao mesmo tempo em que lhe preserva um percentual razoável (70%), garante ao credor o recebimento de sua dívida, embora num prazo mais dilatado, assim preservando também a eficácia da jurisdição.

 

Destarte, falacioso o argumento dos que alegam que é preciso observar o princípio da legalidade e reconhecer a impenhorabilidade apenas em benefício do devedor, porque não foi isso que a lei estabeleceu.

 

Pelo contrário, até mesmo o código de Processo Civil ressaltou a natureza  especial e superior das verbas salariais em face de  dívidas de outra natureza, assim respaldando  o raciocínio de ponderação supra referido, que preserva os salários tanto do credor, quanto do devedor, na justa medida necessária para garantir o cumprimento de uma decisão judicial.

 

 

Ressalte-se que a lei expressamente excepcionou da impenhorabilidade absoluta as prestações alimentícias, assim apontando que o crédito do trabalhador, que ostenta essa natureza, detém condição preferencial em relação aos demais, de modo a corroborar  como correto o procedimento referido, adotado para garantir o recebimento do crédito trabalhista do ex-empregado.

 

Com efeito, como sustentar que o princípio da legalidade deve ser observado apenas em relação aos salários do ex-empregador, mas flagrantemente descumprido em relação aos salários do ex-empregado?

 

Por que a reserva legal só vale para um, e não vale para o outro, se ambos os valores em conflito se referem a salários, e o acesso a jurisdição útil, bem como a razoável duração do processo, constituem direitos fundamentais, que a Constituição Federal garante também ao  credor trabalhista?

 

É exatamente por isso que, ao invés de ser conferido de forma absoluta, beneficiando apenas uma das partes (o devedor trabalhista), o princípio da legalidade deve ser reconhecido em benefício de ambas e, aplicado sob o balizamento da proporcionalidade, reconhecido em favor também do credor trabalhista, procedendo-se a penhora de um percentual que seja razoável para possibilitar a subsistência do devedor, mas que também possa destinar uma parcela para quitar a dívida que tem para com seu ex-empregado, numa técnica de ponderação de bens, que visa preservar a utilidade da jurisdição.

 

É preciso ressaltar que a necessidade de conferir efetividade a uma decisão judicial também está inserida no devido processo legal, previsto no inciso LIV do artigo 5º da CF/88, já que a garantia do iter processual não teria sentido se não se pudesse garantir, também, a efetividade do resultado que ele proporciona, sob pena de se condenar todo o sistema a uma situação de esterilidade e inoperância, a “meia-garantia”, apenas dos meios e não dos fins, o que seria um contra-senso, além de desarrazoada a conclusão de que tal garantia só beneficiaria um dos lados (ex-empregador) e não o outro (ex-empregado), detentor de um título judicial em seu favor. Assim, é imperioso concluir que a possibilidade da penhora de um percentual dos salários, ou proventos da aposentadoria do ex-empregador, é sustentada pela ponderação dos valores, viabilizada pela aplicação da proporcionalidade e razoabilidade, que compõem o conceito do devido processo legal (artigo 5º - inciso LIV).

 

Neste caminhar, é imperioso reconhecer que a correta aferição da proporcionalidade e razoabilidade passa pela aplicação de determinados critérios, como veremos a seguir:

 

I-A adequação.

 

Consiste em aferir se o meio escolhido contribui para a obtenção do resultado pretendido. Ora, se o ex-empregado é detentor de um título a ser executado, e o ex-empregador não dispõe de outros bens que possam quitar este débito, a penhora sobre sua poupança, rendimentos salariais, ou proventos que recebe de aposentadoria, se apresenta como o único meio possível e adequado para a obtenção do resultado pretendido, que é a solução da dívida.

 

 

II-A necessidade/exigibilidade

 

Ante as condicionantes supra referidas, é possível considerar a penhora como medida necessária, e indispensável para efetivar a garantia dos direitos do credor (ex–empregado), que detém a mesma natureza do direito penhorado (salários do ex-empregador).

 

 

III-A proporcionalidade em sentido estrito

 

 

Exige que o meio utilizado esteja em proporção com o objetivo almejado por um, e a capacidade de suportar o ônus, pelo outro. A fim de atendê-lo é fixado um percentual, geralmente em torno de 30%, procedendo-se a uma equânime distribuição da carga coativa que a norma legal atribui ao direito de receber salários, tanto em benefício do ex-empregado, quanto do ex-empregador, preservando os restantes 70%, assim deixando de causar ônus excessivo ao devedor. Por outro lado, tal percentual permite que a dívida seja gradualmente quitada, o que atende não só aos interesses do credor, mas também aos objetivos da própria jurisdição, preservando o resultado útil do processo e a justiça das decisões, o que evidentemente vem conferir maior credibilidade à atuação judicial, sinalizando para a sociedade que decisão tem que ser cumprida.

 

Não menos importante é ressaltar a natureza pedagógica desta solução, pois todos os meses o devedor é lembrado que o salário de seu ex-empregado é tão importante quanto o seu, e todo aquele que se beneficia do trabalho de outrem deve remunerá-lo por isso. Esta idéia é central no Estado de Direito, e está posta expressamente na Constituição, ao reconhecer a dignidade da pessoa humana e o trabalho como bases de sustentação da República Brasileira. 

 

Ao discorrer sobre o princípio da proporcionalidade, Willis Santiago Guerra Filho[5] explica que deve ser “entendido como um mandamento de otimização do respeito máximo a todo direito fundamental em situação de conflito com outro, na medida do jurídico e faticamente possível”.

 

Ademais, a aplicação dos princípios constitucionais, pelo critério da ponderação, vem conferir “unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e tenuando tensões normativas”, como bem ressalta Luis Roberto Barroso [6]. Para tanto, o intérprete tem que superar a crença de que os princípios seriam dotados apenas de dimensão axiológica e programática. Os conflitos, que marcam  nossa época contemporânea, exigem que se reconheça a eficácia normativa também aos princípios, sendo que tal diretriz está inserida na lógica do próprio sistema, intrinsecamente dialético e edificado por normas articuladas entre si, que podem incidir de maneira concomitante, sem necessidade de exclusão ou privilégio a uma, em detrimento de outra, como acontece com as regras.

 

Como bem enfatiza Barroso, a “perspectiva pós-positivista e principiológica do direito influenciou decisivamente a formação de uma moderna hermenêutica constitucional. Assim, ao lado dos princípios materiais envolvidos, desenvolveu-se um catálogo de princípios instrumentais e específicos de interpretação constitucional”.  Por tais razões, carece de sustentação jurídica a interpretação que reconhece a aplicação do princípio da legalidade apenas para beneficiar o ex-empregador, esquecendo-se que  a lei também garante os salários do ex-empregado, que foram sonegados pelo primeiro, de modo que o princípio da legalidade deve ser garantido e aplicado a ambos, pelo critério da ponderação

 

Assim é porque o método da subsunção, em que a premissa maior (norma) é aplicada e valorada sobre a premissa menor (fato), a fim de se obter uma solução para o conflito, tem se revelado insuficiente para resolver os hard cases, como ocorre na presente questão, em que  convivem  “diversas premissas maiores igualmente válidas e de mesma hierarquia que, todavia, indicam soluções normativas diversas e muitas vezes contraditórias”. Por tais razões, a “subsunção não tem instrumentos para produzir uma conclusão, que seja capaz de considerar todos os elementos normativos pertinentes”, notadamente porque sua lógica, destinada a “isolar uma única norma para o caso”, se revela incompatível com o princípio da unidade, “pelo qual todas as disposições constitucionais tem a mesma hierarquia, e devem ser interpretadas de forma harmônica” sem exclusão, como esclarece Ana Paula de Barcellos[7]. Neste sentido, também enfatiza que o “propósito da ponderação é solucionar esses conflitos da maneira menos traumática para o sistema como um todo, de modo que as normas em oposição continuem a conviver, sem a negação de qualquer delas, ainda que em determinado caso concreto elas possam ser aplicadas em intensidades diferentes”.

 

5-A efetividade e utilidade da jurisdição

 

A diretriz que entende aplicável apenas aos salários do devedor (ex-empregador) o benefício da impenhorabilidade, ao mesmo tempo em que nega aos salários do credor (ex-empregado) a condição de preferência, sinaliza que é possível utilizar-se do trabalho de outrem sem lhe pagar o que deve, conclusão que não encontra amparo no sistema jurídico em vigor. Com efeito, colide frontalmente com o devido processo legal e solapa a efetividade de acesso à jurisdição, já que desacredita uma decisão judicial, o que revela o equívoco desta interpretação, notadamente em se considerando que é a “quantidade de elementos normativos em prol de uma determinada solução e o peso que eles assumem diante das circunstâncias concretas”, que se constituem nos principais critérios orientadores da ponderação”, como pontua Barcellos.

 

Neste contexto, negar efetividade a uma decisão judicial, que reconheceu ao credor o direito a receber verbas de natureza alimentícia, deixando de proceder a penhora sobre um percentual dos salários do devedor, seu ex-empregador, se revela insustentável, pois retira a efetividade da jurisdição, além de colidir com o princípio da isonomia, por reconhecer ao devedor uma condição mais benéfica (integralidade dos salários), que ele próprio negou ao seu ex-empregado, deixando de  pagar-lhe os salários a que fazia jus.

 

A constitucionalização do direito aplicável às relações privadas, entre empregado/ empregador, demonstra de forma convincente que é preciso fazer valer a utilidade da jurisdição como marco estruturante do ordenamento jurídico, assim estabelecido pela Constituição Federal de 1988 com o escopo de “maximizar” o alcance dos princípios ali agasalhados, para que haja um fortalecimento do próprio sistema, como enfatiza Oscar Vilhena Vieira[8].

 

Neste mesmo sentido as reflexões de Canaris[9], ao lembrar que no “alargamento progressivo dos dados sujeitos a tratamento jurídico, teve peso a denominada jurisprudência das valorações. Na sua base encontra-se a insatisfação causada pela manutenção tardia da jurisprudência dos interesses e, em geral, do positivismo jurídico. O influxo da filosofia dos valores, presente, aliás, no neo-kantismo, permitiu uma transposição: a uma ponderação de interesses causalmente considerados pelo legislador, contrapõem-se um sopesar de valores”.

 

Ao discorrer sobre a essencialidade do direito para os estados constitucionais, Gustavo Zagrebelsky[10] ressalta a necessidade de reconhecimento da coexistência de valores e princípios postos pela Constituição, para que não ocorra instabilidade institucional, colocando em risco a unidade e integração do sistema jurídico, ao mesmo tempo em que é preciso preservar sua base material pluralista, impedindo que se atribua aos princípios uma interpretação absoluta, pois é preciso compatibilizá-los uns com os  outros.

 

Como bem pondera André Luiz Vinhas da Cruz[11], o “papel construtivista, ou reconstrutivista do Poder Judiciário, e não só deste, mas da sociedade em geral, é o de coletar todo esse material fático, normativo e ético-moral, substancialmente histórico, que diante de um  prévio procedimento, do conhecimento de todos, igualitário, libertador e democrático, nos leve ao amplo debate público das grandes questões nacionais, a fim de se alcançar não só a  racionalidade decisória, mas principalmente a própria efetivação da justiça, enquanto ideal, e a emancipação garantista dos direitos humanos”.

 

Destaca que a plenitude da vida, que se desenvolve cada vez mais de forma coletiva, exige atitudes moderadas (uma áurea medietas), embora propositivas e construtivas, e que possam manter-se com a consciência de quem sabe que este ideal corresponde a uma visão da vida e a um ethos, que não podem ser considerados de forma alguma depreciáveis. Deste modo, o imperativo teórico de não aceitação da contradição – válido para a ciência jurídica - não deveria de forma alguma impedir a elaboração jurisprudencial de tentar realizar positivamente a concordância prática das diversidades, superando as contradições que a realidade fática apresenta. Assim, a resposta não pode ser buscada pela diminuição das potencialidades constitucionais. É preciso priorizar a busca de soluções prudentes, que propiciem o desenvolvimento dos princípios constitucionais em conjunto, adequando-os as especificidades de cada caso concreto, porque só assim serão obtidas respostas sensatas, que possam dirimir os conflitos sociais, rejeitando os extremismos que mais servem para aprofundar as fissuras.

 

Atende melhor ao escopo da utilidade da jurisdição, preservar a possibilidade de quitação de um titulo judicial de natureza salarial, mediante a penhora de uma parte dos salários do devedor, do que simplesmente deixar de lado o título, preservando apenas a integridade do salário do ex-empregador, que deixou de reconhecer esse direito ao seu ex-empregado, que agora se vê novamente na iminência de ser excluído da proteção prevista no ordenamento jurídico, caso negada a efetividade ao seu direito, já reconhecido judicialmente.

 

Ora, a supremacia da constituição exige que a “razoável duração” do processo, como direito fundamental, seja observada notadamente em relação ao direito processual, ante a inserção do inciso LXXVIII, ao artigo 5º da CF/88, pela EC 45/2004.

 

Herdeiros do direito europeu, em que a força do Estado está centrada no Parlamento, o que levou à instituição da lei como pedra angular de edificação do sistema jurídico, o juiz brasileiro tradicionalmente se preocupa mais em aplicar o que consta da portaria, ordem de serviço, regulamento, lei. Só por último lembra da Constituição, por considerar que compete apenas ao Supremo Tribunal Federal a guarda de seus princípios, cabendo ao julgador das demais instâncias apenas resolver “a questão concreta á luz da normatividade inferior” como bem pontua Nalini[12], chamando a atenção para a necessidade de mudar essa perspectiva e atentar para a “realização do justo concreto” pelo Judiciário, como um dos poderes da República Brasileira, responsável pela consecução dos objetivos fundamentais postos pela Lei Maior.

 

Que dirá então, quando a própria norma processual, recentemente alterada, caminha na mesma direção da diretriz constitucional?

 

Como enfatiza Bonavides[13], há “na escala evolutiva do direito constitucional, legislado ao longo das revoluções e metamorfoses de dois séculos, quatro gerações sucessivas de direitos fundamentais que, passando da esfera subjetiva para as regiões da objetividade, buscam reconciliar e reformar a relação do indivíduo com o poder, da sociedade com o Estado, da legalidade com a legitimidade, do governante com o governado”.

 

Neste mesmo sentido caminha Cláudia Lima Marques [14], ao ressaltar que, ante a “pluralidade de leis ou fontes, existentes ou coexistentes no mesmo ordenamento jurídico, ao mesmo tempo, que possuem campos de aplicação ora coincidentes ora não coincidentes”, os critérios tradicionalmente empregados para a solução de conflitos se revelam insuficientes, tornando necessário o diálogo das fontes preconizado por Erik Jayme, pois para que se possa administrar o pluralismo, que marca a sociedade contemporânea, é preciso garantir a utilidade da jurisdição.

 

Assim, não se trata de atingir o extremo da descodificação, referido pelo jurista italiano Natalino Irti, mas de reconhecer que os princípios constitucionais são reitores do ordenamento infraconstitucional, e ferramentas que possibilitam substituir o conflito pela solução advinda da coordenação sistemática, flexível, útil e ponderada das fontes.

 

Esta coordenação deve ser marcada por critérios de complementaridade e subsidiaridade, na superação das antinomias aparentes e reais, a fim de preservar a coerência, bem como a eficiência “funcional do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo”. A constitucionalização do direito processual visa resguardar a efetividade e a utilidade da jurisdição, a fim de fazer valer a “razoável duração do processo” como direito fundamental, essencial para o aprimoramento das instituições jurídicas e a solidez do processo de redemocratização do nosso país.

 

6-Conclusão

 

Os princípios constitucionais que garantem a valorização do trabalho e o recebimento de salários, bem como a utilidade da jurisdição, integram o conceito formador do princípio da legalidade e, assim devem nortear a interpretação da legislação infra-constitucional, notadamente ante as alterações recentemente promovidas pela  lei 11.382/2006 em relação aos incisos IV e X do artigo 649 do  CPC, bem como o parágrafo 2º do mesmo artigo. Deste modo, a efetivação da penhora sobre a poupança, percentual dos proventos de aposentadoria ou salários do ex-empregador, quando se tratar de garantir o pagamento de créditos trabalhistas do ex-empregado, que detém inequívoca natureza alimentar, está respaldada pelo ordenamento em vigor.

 

Assim sendo, diferentemente  do que sustentam alguns doutrinadores, tal não consiste em fazer letra morta do princípio da legalidade. Pelo contrário, ao invés de reconhecê-lo apenas em benefício de uma das partes, é preciso maximizá-lo, ampliando sua aplicação para ambas as partes, para ambos os salários, de modo a garantir a utilidade da jurisdição.

 

Insustentável a interpretação reducionista, que pretende aplicar o principio da legalidade apenas para beneficiar o ex-empregador/devedor, olvidando que por isonomia o ex-empregado/credor também faz jus a sua aplicação, ainda mais quando a lei expressamente imputa, em seu favor, condição preferencial quanto ao recebimento de verba de natureza alimentar. Ademais, não há amparo legal para atribuir ao ex-empregado os riscos econômicos do empreendimento, gerido apenas pelo ex-empregador, que usufruiu de sua força de trabalho sem responder pela devida contraprestação, violando o  princípio basilar de “dar a cada um o que é seu” que sustenta o Estado de Direito.

 

Deste modo, não se trata de desrespeitar o princípio da legalidade agasalhado no artigo 5º da CF/88 mas, pelo contrário, de extrair a sua máxima efetividade, para que seja respeitado tanto em relação ao ex-empregado, quanto em relação ao ex-empregador, impedindo que favoreça apenas um, em detrimento do outro, interpretação insustentável por colidir com o princípio da isonomia

 

Ante tais razões, quando se trata de executar o pagamento de verbas salariais devidas ao ex-empregado, o dogma da impenhorabilidade absoluta dos salários, proventos de aposentadoria e poupança do ex-empregador não se sustenta, e deve ser revisto sob a perspectiva da ponderação dos valores que merecem ser resguardados, a fim de garantir a utilidade da jurisdição e a eficiência funcional do sistema jurídico.

 

Não há amparo constitucional para interpretar o princípio da legalidade como contraposto ao princípio da utilidade e efetividade da jurisdição, notadamente por ter sido instituído como seu garantidor.           

 

7-Bibliografia

 

1-BARCELLOS, Ana Paula - Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional - in A nova interpretação constitucional - ponderação, direitos fundamentais e relações privadas - Editora Renovar - Rio - 2ª edição – 2006  

 

2-BARROSO, Luis Roberto – fundamentos Teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro in A nova interpretação constitucional - ponderação, direitos fundamentais e relações privadas - Editora Renovar - Rio - 2ª edição – 2006

 

3-BARROS, Suzana de Toledo - O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais - 3ª edição - Editora Brasília Jurídica - Brasília - 2003

 

4-BONAVIDES, Paulo - Os direitos fundamentais e a globalização in Dos princípios constitucionais - Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição - Malheiros Editores

 

5-CANARIS, Claus Wilhelm - Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito - Fundação Calouste Gulbenkian - 3ª edição - Lisboa

 

6-CANOTILHO, José Joaquim Gomes - Estudos sobre direitos fundamentais - Coimbra Editora - 2004

 

7-DINAMARCO, Cândido Rangel - Instituiçõs de Direito Processual Civil - vol ! - 5ª edição - Malheiros Editores Ltda - São Paulo - 2005

 

8-GUERRA FILHO, Willis Santiago - “Sobre o princípio da proporcionalidade - in Dos Princípios constitucionais - Considerações em torno das normas principiológicas da constituição - Malheiros Editores

 

9-MAXIMILIANO, Carlos - Hermenêutica e aplicação do Direito - 10ª edição - Forense-  Rio

 

10-NALINI, Renato - A rebelião da toga - Millennium Editora – Ltda - 2006- Campinas

 

11-NERY JUNIOR, Nelson - Princípios do processo civil na Constituição Federal - 8ª Edição - Editora Revista dos Tribunais - São Paulo - 2004

 

12-VILHENA VIEIRA, Oscar - Direitos Fundamentais - Malheiros Editores - Revista da Esmese - nº 7 - 2004

 

 

TEREZA APARECIDA ASTA GEMIGNANI é juíza do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas e Doutora em Direito do Trabalho com nível de pós-graduação pela USP - Universidade de São Paulo.

 



[1] Dinamarco, Cândido Rangel- Instituiçõs de Direito Processual Civil- vol !- 5ª edição- Malheiros Editores Ltda- São Paulo- 2005- pags. 134 e seguintes

[2] Nery Junior, Nelson- Princípios do processo civil na Constituição Federal- 8ª edição- Editora Revista dos Tribunais- São Paulo- 2004- págs 63 e seguintes

[3] Maximiliano, Carlos- Hermenêutica e  aplicação do direito- forense- Rio de Janeiro- 1988- 10ª edição- págs

   101 e seguintes

[4] Barros, Suzana de Toledo- O princípio da proporcionalidade e o controle da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais- 3ª edição- Editora Brasília Jurídica- Brasília- 2003- págs 100 e seguintes.

[5] Guerra filho, Willis Santiago- “Sobre o princípio da proporcionalidade- in Dos Princípios constitucionais- Consideraçõees em torno das normas principiológicas da constituição- Malheiros Editores

[6] Barroso, Luis Roberto – fundamentos Teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro in

A nova interpretação constitucional- ponderação, direitos fundamentais e relações privadas- Editora Renovar- Rio- 2ª edição- 2006- págs. 1 a 48

[7] Barcellos, Ana Paula-  Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional- in A nova interpretação constitucional- ponderação, direitos fundamentais e relações privadas- Editora Renovar- Rio- 2ª edição- 2006- págs 49 a 118

[8] Vilhena Vieira, Oscar- Direitos Fundamentais- Malheiros Editores- pags 40 e seguintes.

[9] Canaris- Claus Wilhelm – Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito- tradução de A. Menezes cordeiro- Fundação Calouste Gulbenkian- Lisboa-

[10] Zagrebelsky, Gustavo- El derecho dúctil- Tradução  de Marina Gascón- Editorial Trotta- Madrid- 2007- págs  14 e seguintes

[11] Vinhas da Cruz- André Luiz- A tópica  neoaristotélica de Theodor Viehweg- uma análise crítica de Manuel  Atienza-  Revista da Esmese nº 7- 2004- pagas 159 a 179

[12] Nalini, Renato- A rebelião da toga- Millennium Editora- Ltda- 2006- Campinas

[13] Bonavides, Paulo- Os direitos fundamentais e a globalização  in Dos princípios constitucionais- Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição- Malheiros Editores-

[14] Marques- Cláudia Lima- Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002- 

 in Revista da Esmese- nº 7, 2004- doutrina- págs 15 a 54


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