139 - A transação penal e o suprimento do estado
ANA RAQUEL C. DOS SANTOS LINARD – Juíza de Direito |
Muito já se tem discorrido acerca do instituto da transação penal e da sua natureza conciliatória, com fundamento na Constituição Federal de 1988. (artigo 98,I)
Um aspecto de tal instituto merece, a meu ver, uma análise um pouco mais aprofundada, notadamente pelos reflexos sociais que ostenta e pela flagrante ilegalidade com que vem sendo aplicada, não se sabe se por desconhecimento da lei (o que já seria grave, em se tratando de aplicadores do direito) ou se por infeliz juízo acerca de seu cabimento, amparada tal conclusão sabe-se lá em qual parte da legislação penal ou processual em vigor.
Tal aspecto é o do conteúdo da proposta de transação penal a ser apresentada ao autor do fato, apto a recebê-la, e que vem sendo utilizada, de forma flagrantemente indevida, a meu ver, como forma de suprir o Estado, notadamente o Estado-Juiz, das carências materiais que padece, quando tal ônus deveria estar a cargo das verbas orçamentárias, derivadas do recolhimento dos tributos que oneram a todos indistintamente, mesmo que de forma indireta.
São conhecidas, por todos quantos participam do cotidiano forense, as carências materiais que são impostas aos Juízes, Promotores de Justiça e demais serventuários do Poder Judiciário, os quais se vêem, em não raras situações, obrigados a repor material de expediente, às suas próprias custas – de forma a evitar a paralisação das atividades da Vara por falta de papel, por exemplo - quando não até mesmo emprestar computadores de seu uso pessoal, para os fins de agilizar ou otimizar os expedientes a cargo da Secretaria de Vara, à míngua de disponibilização de tais recursos materiais por parte do Estado, no caso, pelo Tribunal de Justiça.
Tal situação, por mais injusta que possa se mostrar, não justifica nem ampara a apresentação de proposta de transação penal para os fins de impor ao autor do fato delituoso, como PENA PECUNIÁRIA, o fornecimento de bens materiais ou prestação de serviços ao Fórum ou à Delegacia de Polícia.
Tal entendimento deriva, notadamente, da mera leitura dos normativos legais que regem a matéria que, em casos como o que aqui se reprova, são solenemente ignorados.
Na verdade, diz o artigo 76 da Lei 9099/95, que rege a transação penal: Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.
O artigo 43 do Código Penal é bastante claro no rol das penas restritivas de direito: Art. 43. As penas restritivas de direitos são: I - prestação pecuniária; II - perda de bens e valores; III - (VETADO na Lei nº 9.714, de 25.11.1998, DOU 26.11.1998) IV - prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas; V - interdição temporária de direitos; VI - limitação de fim de semana.
O parágrafo 1º. do artigo 45 do CPB, por sua vez, define em que consiste a prestação pecuniária de forma a não deixar margem à qualquer espécie de interpretação mais extensiva, ressalvando-se a espécie da prestação, com a prévia anuência do beneficiário, nos termos do parágrafo 2º.: § 1º. A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários. § 2º. No caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza.
A lei, portanto, é de clareza desconcertante. A prestação pecuniária consiste no PAGAMENTO DE DINHEIRO À VITIMA, A SEUS DEPENDENTES OU À ENTIDADE PÚBLICA OU PRIVADA COM DESTINAÇÃO SOCIAL.
Não há interpretação extensiva ou elástica suficiente que possibilite a conclusão pela abrangência do Fórum, do Juízo Processante, da delegacia local, ou mesmo das pessoas físicas dos aplicadores da lei como possíveis beneficiários de pena da espécie, sem evidente amostra de desconhecimento ou prática, no mínimo indevida, por parte do responsável.
A determinação para depósito de quantias em dinheiro em contas correntes de depósito de titularidade do Juízo Processante (?), doação de computadores, máquinas digitais para a delegacia local, papel, material de construção e de expediente, prestação de serviços de jardinagem e limpeza nas dependências físicas do Fórum são alguns exemplos de conteúdo de transação penal que temos tido oportunidade de observar no cotidiano forense, contidas em cartas precatórias ou mesmo mencionadas em jurisprudência acerca da matéria.
O próprio STJ já se manifestou acerca da questão, em entendimento que confirma o aqui esposado, ao decidir:
Ementa HABEAS CORPUS. PENA RESTRITIVA DE DIREITOS. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO À COMUNIDADE. PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. AUDIÊNCIA ADMONITÓRIA. CONDIÇÕES. ENTIDADES BENEFICIÁRIAS.1 - O Poder Judiciário não pode ser destinatário da pena de prestação pecuniária prevista no art. 45, parágrafo 1º do Código Penal. 2 - Nos termos do art. 46, parágrafo 2º, a pena de prestação de serviço à comunidade dar-se-á em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais. 3 - O horário de cumprimento da pena de prestação de serviços à comunidade deverá ser fixado de forma a não prejudicar a atividade profissional do condenado. 4 - Ordem concedida.(HC 17142 / PE ; HABEAS CORPUS - 2001/0074527-5 - Relator(a) - Ministro FERNANDO GONÇALVES - Órgão Julgador -T6 - SEXTA TURMA - Data do Julgamento:20/11/2001 - Data da Publicação/Fonte: DJ 04.02.2002 p. 566 - RSTJ vol. 158 p. 543)
De fato, a meu ver, ainda que inexistisse normativo legal regendo a matéria, a própria conduta de reverter à prestação pecuniária em favor do Poder Judiciário ou do Estado, aqui representado pela autoridade policial, se mostra moralmente inaceitável, uma vez que é obrigação do Estado – já que arrecada receita para tanto, através de uma carga tributária já bastante extensiva – prover seus agentes das condições materiais necessárias para o exercício de suas atribuições, não havendo razão ou fundamento que legitime a imposição de tal tarefa ao jurisdicionado, ele próprio já mantenedor do Estado, através dos tributos que cotidianamente recolhe, ainda que de forma indireta e desapercebida.
A extinção imediata de tal prática, portanto, é medida que se impõe, em homenagem à ética, à moralidade e à legalidade.
Ana Raquel Colares dos Santos Linard é juíza de Direito titular do Juizado Especial Cível e Criminal de Juazeiro do Norte (CE). |