138 - Da solução de continuidade na prestação do serviço público: uma visão constitucional

 
VIVIANE M. TEIXEIRA RIBEIRO DA SILVA – Advogada
 

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. A ordem econômica e a Constituição Federal - 3. A prestação do serviço público como dever afeto ao Estado - 4. A subsunção do serviço público às regras do Código de Defesa do Consumidor à luz do comando constitucional - 5. Posição doutrinária e jurisprudencial sobre o tema - 6. Conclusão - 7. Bibliografia.

 

 

Palavras-Chave: 1. Direito do consumidor – 2. Serviço público – 3. Interrupção do fornecimento de serviços públicos

 

Resumo:  Muito se tem discutido sobre a possibilidade de interrupção do fornecimento de água ou de luz, na hipótese de inadimplemento.

Em sede doutrinária, duas correntes se contrapõem. Uma, sustentando a possibilidade do corte, partindo de uma visão econômica. A outra, pautando-se na diretriz principiológica constitucional, segue em linha adversativa.

A jurisprudência ora se inclina para a manutenção, ora pela suspensão do corte, reconhecendo, nessa hipótese, inclusive, o direito subjetivo do consumidor à reparação por dano moral.

No presente artigo, analisaremos as correntes doutrinária e jurisprudencial e procuraremos demonstrar qual a corrente que melhor se coaduna com as prescrições constitucionais. 

 

1. Introducão

 

A Constituição é resultado de ideologias, princípios morais e jurídicos. É repositório dos valores mais relevantes de um povo, e, bem por isso, está no ápice do ordenamento jurídico e justifica a imutabilidade de certa gama de direitos, os denominados direitos fundamentais.

As diretrizes constitucionais são vinculantes para o legislador, o intérprete e o aplicador do direito. Contudo, como a realidade social é dinâmica, “certos preceitos convenientes em determinadas situações sociais e políticas já não se amoldam exatamente a outras, e surge, naturalmente, a necessidade de reformá-las.”[1] Foi o que ocorreu no sistema jurídico pátrio com a promulgação da Carta Republicana de 1988.

Afastando-se da filosofia liberal, cujo cerne era a liberdade de atuação do particular ressalvadas certas categorias de direitos, como, v.g., o das relações familiares, o sistema normativo em que se prestigiava a ausência do Estado não pôde ser recepcionado pela Lei Fundamental de 1988.

A tarefa estatal de proteger o território contra a agressão armada estrangeira, manter a ordem pública interna e prestar serviços essenciais à sobrevivência da sociedade, não se mostrava compatível com a filosofia inaugurada com Carta de 88, em que a pessoa humana é erigida como  a ser razão de ser do Estado, o quer significar que este existe para servir a pessoa devendo atuar na busca do bem-estar social.

As relações jurídicas privadas, designadas pela liberdade de auto-regulação de interesses, também sofreram impacto com o afastamento da filosofia liberal. Na nova diretriz constitucional não mais se cogita a não-ingerência estatal, pois é tarefa do Estado a defesa dos mais fracos.  

E foi na seara contratual que relações jurídicas privadas experimentaram maior impacto. Prestigiava-se, no Código Civil de 1916, a autonomia e a liberdade contratuais, porquanto para o legislador a isonomia formal era o bastante para garantir às partes igualdade de condições na defesa de seus interesses.

Contudo, a realidade social demonstrou, à saciedade, que a liberdade contratual calcada na isonomia formal resultava em opressão e enriquecimento sem causa, porquanto o contratante com maior poder econômico impunha suas regras, não restando à contraparte senão a sujeição.

Na dicção do Prof. Renan Lotufo, foi “(...) exatamente a liberdade dada ao contratante que levou o fraco a ser submetido ao forte, de onde se chegou à célebre frase de Lacordaire:” entre o fraco e o forte a liberdade escraviza e a lei liberta’.[2]i

A insustentabilidade daquele paradigma, cujos graves reflexos sociais sentimos até os dias de hoje, deflagrou uma profunda alteração no cenário jurídico pátrio refletido na Carta Republicana de 1988.

Albergando a ideologia do Estado social, a Carta erige, logo no artigo inaugural do texto Maior, a dignidade da pessoa humana com um dos pilares da República e estabelece, no artigo 3º, como um de seus objetivos, a justiça social. Corolário dessa nova perspectiva foi a ampliação da abrangência dos serviços públicos.

O elenco arrolado nos artigos 21, 23 e 30, da Carta, revela que além de garantir a sobrevivência, compete ao Estado assegurar o atendimento das necessidades mais básicas do cidadão, como v.g., o fornecimento de energia elétrica, de água, de telefonia, só para citar alguns, tudo para atingir a sadia qualidade de vida, afirmada no artigo 225, do Texto Maior.

E é nesse contexto que examinaremos o tema deste artigo.

 

2. A ordem econômica e a Constituição Federal

 

A Constituição Federal sufragou o regime capitalista, mas não descurou da feição social, razão por que arrola, no artigo 170, os princípios norteadores do sistema econômico e estabelece que sua finalidade é a de realizar um dos fundamentos da República, qual seja, o da dignidade da pessoa humana.  Destarte, toda atividade econômica lato sensu deve harmonizar-se com os primados da justiça social e da existência digna da pessoa.

Não bastasse prescrever os objetivos e princípios norteadores da ordem econômica no artigo 170, a Constituição cuidou de garantir a efetividade de seus comandos, prescrevendo, no artigo 174, ser dever do Estado intervir na economia como agente normativo, regulador e fiscalizador, a fim de defender a escorreita aplicação de seus preceitos, o que significa dizer, que a atuação estatal dar-se-á nas três funções estatais estruturais, a saber, a legislativa, a executiva e a judiciária.

Ainda, como desdobramento da tarefa estatal de atender às necessidades mais elementares dos cidadãos, a Carta Maior impõe ao Poder Público, em seu artigo 173, o dever de explorar, ainda que em caráter excepcional, a atividade econômica em concorrência com a iniciativa privada, a fim de atender a relevante interesse público ou aos imperativos da segurança nacional, sem, todavia, ser-lhe deferida a perseguição do lucro, porquanto tal desiderato cabe apenas ao setor privado.

Como se pode depreender do até aqui exposto, a atividade econômica não tem um fim em si mesmo, tampouco o de atender exclusivamente aos interesses de quem titulariza os meios privados de produção, quais sejam, a obtenção de lucro. E assim é, por que a Constituição incorporou a filosofia do Estado social como vetor da ordem econômica, a fim de tornar factíveis os objetivos enunciados no artigo 3º, dentre os quais, o de construir uma sociedade solidária e erradicar a pobreza. Não por outra razão, um dos princípios constitucionais informativos da atividade econômica é o da função social da propriedade.

 

3. A prestacão do serviço público como dever afeto ao estado

 

A doutrina traz vários critérios para conceituar serviço público. Numa simbiose desse sincretismo, podemos apontar que “(...) serviço público corresponde a toda atividade desempenhada direta ou indiretamente pelo Estado, visando solver necessidades essenciais do cidadão, da coletividade ou do próprio Estado”. [3]

Da conceituação extrai-se que a prestação dos serviços públicos é afeta ao Estado por ser sua a tarefa de perseguir e realizar o bem comum. “O Estado existe para realizar o bem comum. Esta a sua razão teleológica, finalística. (...) Realizar a justiça, tutelar os direitos fundamentais, proporcionar o desenvolvimento econômico, cuidar da educação – tais se mostram entre outros, deveres de que o Estado não pode fugir, para realizar o bem comum (...). Fala-se numa atividade estatal reconhecidamente importante, que busca atender aos desejos e às necessidades básicas, v.g., de alimentação, higiene, moradia, educação, saúde, cultura, trabalho, transporte, para que o homem se realize em sua postura física e metafísica”. [4]

Partindo da premissa de que a prestação dos serviços públicos deriva da atividade precípua do Estado quanto à satisfação das necessidades não atendidas pela iniciativa privada, tudo no desiderato de atender ao bem comum, parece ínsito que a desincumbência desse dever constitucional concretize pari passu os interesses da sociedade e os direitos fundamentais.

Retido que a prestação do serviço público consubstancia um dever estatal, vejamos se pode ser categorizada como uma atividade econômica.

A doutrina[5] faz distinção entre atividade econômica e a com conteúdo econômico, elucidando que aquela é desenvolvida, titularizada e orientada pela iniciativa privada. Portanto, nada obstante a Constituição gizar a atuação do empreendedor aos ditames da justiça e da função social da propriedade, a atividade econômica resulta da decisão de o particular desenvolver um empreendimento lícito com finalidade lucrativa.

Situação diversa ocorre com a atividade com conteúdo econômico, por ser afeta ao ente público e incompatível com o regime de direito privado. Os serviços públicos, cuja prestação é um dever do Estado, estão nessa categoria, porque embora a execução possa ser deferida à iniciativa privada, a titularidade é exclusiva do Estado, razão por que está sujeita ao regime jurídico de direito público.

Para o quanto nos interessa, podemos afirmar, em síntese, que a prestação do serviço público encerra uma atividade econômica sui generis, já que tem conteúdo econômico, pode ser executada pela iniciativa privada, mas nunca será por esta titularizado.

Devemos sempre reter a idéia de que o substrato dos serviços públicos é atender ao interesse social. Não por outra razão, compete ao Estado a tarefa de instituir as regras para a prestação desses serviços. E tal regramento deve ter por premissa os ditames prescritos no artigo 170, do texto constitucional, ainda que tais serviços sejam executados pela iniciativa privada na forma de concessão.

Não fosse assim, teríamos que afirmar que não vivemos num Estado de Direito e que apenas o empreendimento privado estaria submetido aos princípios constitucionais. Evidentemente que tal tese não encontra qualquer supedâneo. Se o particular deve adstringir sua atuação à função social, com maior razão o Estado, e também quem exerça função delegada, a quem incumbe garantir e realizar as prescrições constitucionais e tem por finalidade precípua atender ao interesse público. 

 

4. A subsunção do serviço público às regras do Código de Defesa do Consumidor à luz do comando constitucional

 

Vimos que o dever estatal de prestar serviços públicos é atividade de cunho econômico, sujeita ao prescrito no artigo 170, da Carta Maior, mesmo que sua gestão seja deferida ao particular. Nessa linha e dentre os princípios enumerados pelo artigo 170, localizamos, no inciso V, o princípio da defesa do consumidor. Isso significa que a medida para os atos do Poder Público é a defesa do consumidor, e esta, conforme prescreve o inciso XXXII, do artigo 5º, do texto constitucional, faz-se por meio das regras instituídas na lei ordinária n. 8078/90. Portanto, não remanesce qualquer dúvida de que os serviços públicos envolvem relação de consumo, estando, por conseguinte, submetidos aos regramentos do Código de Defesa do Consumidor.

Em razão da abrangência, especificidade e efeitos das relações jurídicas de consumo na estrutura social, o legislador houve por bem conceituar os elementos da cadeia produtiva. Destarte, repetindo o comando constitucional encerrado nos artigos 5º e 170, a Lei 8078/90 cuidou de abarcar toda a atividade econômica e com conteúdo econômico, explicitando, no parágrafo 2º, do artigo 3º, que serviço é toda atividade fornecida no mercado de consumo sem, contudo, fazer qualquer alusão quanto à natureza deste, o que induz à generalização.

Já no artigo 22, ao cuidar da responsabilidade civil pelo vício do serviço, o legislador explicitou que a incidência das normas cogentes abrange também os serviços públicos.

Num primeiro momento, poder-se-ia afirmar que a generalidade conceitual do parágrafo 2º, do artigo 3º, per se já abarcaria os serviços de natureza pública, máxime porque o caput desse mesmo artigo ao conceituar fornecedor abarcou a pessoa jurídica de direito público, sendo despiciendo explicitá-lo no artigo 22. Contudo, o desiderato legislativo foi de evitar a construção de teses dirigidas a desfigurar a subsunção do Poder Público, ou de quem lhe faça às vezes, às normas consumeristas.

A Lei 8078/90 conceituou serviços de maneira abrangente, de modo a sujeitar ao seu comando tanto quem titulariza quanto quem presta efetivamente os serviços públicos. Destarte, o artigo 22 alcança os entes da Federação, os integrantes da Administração Pública Indireta, como as autarquias, as empresas públicas, as sociedades de economia mista, e também os delegatários da função pública, como a empresas concessionárias e permissionárias. Portanto, quem prestar serviços públicos estará sob a égide da Lei Consumerista.

Outra importante consideração a fazer acerca da letra do artigo 22, é que no caput o legislador fala serviços e não produtos. Em razão desse enunciado, poder-se-ia sustentar a tese de que a Administração Indireta estaria fora da incidência do Código de Defesa do Consumidor quando exploradora da atividade econômica produzindo e comercializando produtos, na medida em que o dispositivo em comento faz alusão à responsabilidade estatal pelos serviços prestados. Todavia, essa interpretação mostra-se equivocada por duas razões.

Em primeiro, porque as sociedades de economia mista e as empresas públicas, quando exercentes de atividade econômica, estão submetidas ao mesmo regime jurídico das empresas privadas. Nesse compasso, se as empresas privadas, fornecedoras de produtos e serviços, estão submetidas à Lei 8078/90 quando houver relação de consumo, não pode remanescer dúvida quanto à sujeição da Administração Indireta ao mesmo diploma legal, até por uma questão de isonomia. Destarte, careceria de fundamento jurídico a tese no sentido da inaplicabilidade da Lei Protetiva.

Em segundo, o artigo 3º, da Lei 8078/90, ao conceituar fornecedor abarcou a pessoa jurídica de direito público como a de direito privado, portanto, ao empreender atividade econômica ou com conteúdo econômico, o Estado qualifica-se como fornecedor, e nessa medida sujeita-se ao regramento consumerista.

Superada qualquer dúvida acerca de que a prestação dos serviços públicos encerra uma atividade com cunho econômico sujeita aos ditames do artigo 170 e ao regime consumerista, passemos ao exame da possibilidade da solução da continuidade no fornecimento desses serviços sob a perspectiva das diretrizes constitucionais. Antes, porém, vejamos que os termos do artigo 22, da Lei 8078/90, in verbis:

“Art 22 - Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”.

O dispositivo supracolacionado preceitua que os serviços públicos essenciais devem ser contínuos, numa clara concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, da defesa do consumidor e do dever estatal de obedecer aos princípios da legalidade e eficiência, arrolados no artigo 37, do texto constitucional.

Primeira indagação que emerge: o que é serviço público essencial?

Não há um conceito legal. A doutrina de Helly Lopes Meirelles classifica como essencial apenas os serviços imprescindíveis à sobrevivência da sociedade, como o da segurança. Crítica que se faz a essa corrente é que seu fundamento tem por arrimo a ideologia liberal corporificada na Carta de 1967, e afastada pelo cunho social da Carta de 1988.

Zelmo Denari[6], em comentário ao disposto no artigo 22, do Código de Defesa do Consumidor, acentua que identificar como essencial este ou aquele serviço público induz à subjetivação, na medida em que cada espécie de serviço público tem uma faceta de considerável essencialidade, o que o leva a concluir, a nosso ver, acertadamente, que todos os serviços públicos são essenciais. A essencialidade, destarte, é imanente a todo serviço público.

Nessa linha, urge analisar o caso concreto para aferição da essencialidade, e, para tanto, adotamos a orientação de Rizzatto Nunes[7] trazendo a seguinte indagação: se todo serviço a seu modo é essencial, então por que a lei obriga a continuidade apenas para os essenciais? E responde: porque alguns serviços não são dotados de essencialidade em dadas circunstâncias. É o caso do fornecimento de água para uma casa desabitada.

A lume do que ensina a doutrina do i. jurista supracitado, a aferição da essencialidade de um dado serviço público é casuística.

Refletindo sobre esse tema, concluímos que há certa gama de serviços em que não se vislumbra a possibilidade da verificação casuística, porquanto alguns serviços são prestados no mesmo tempo e espaço para vários consumidores, não sendo factível, ipso facto, aferir quem e quando utilizou efetivamente o serviço. É o caso do serviço de transporte público. Não sendo prestado a nenhum consumidor em particular, mas ao consumidor abstratamente considerado, é dever do Estado disponibilizá-lo ininterruptamente, sob pena de prejudicar a toda a coletividade.

No exemplo trazido por Rizzatto Nunes da casa desabitada, a situação é completamente distinta, porquanto é possível aferir se o consumidor, individualmente considerado, usufrui e necessita efetivamente do fornecimento de água. Não por outro motivo é que o ilustre doutor fala da essencialidade em dadas circunstâncias, querendo com isso indicar que a verificação casuística só tem aplicação para as hipóteses de a prestação dos serviços públicos se referir a consumidor individualmente considerado.

Sumariando, na hipótese de a prestação do serviço atender ao consumidor difusamente considerado (uti universi), a essencialidade é ínsita. Se, ao revés, a prestação do serviço for direcionada a consumidor individualmente considerado (uti singuli), a essencialidade será analisada casuisticamente. É por isso que, no exemplo do imóvel vazio, o consumidor não poderá se insurgir contra a descontinuidade do fornecimento de água, porque o fornecimento não se mostra essencial.

A premissa de aferição da essencialidade dos serviços públicos conjugada com a diretriz constitucional informativa da ordem econômica, e, sobretudo, com a natureza social do serviço público, parece-nos ser a chave para a solução da questão ligada à possibilidade de interrupção.

 

5. Posição doutrinária e jurisprudencial sobre o tema

 

A possibilidade de solução de continuidade do fornecimento do serviço público essencial em razão da inadimplência do usuário tem gerado controvérsias das mais acirradas.

De um lado, os defensores da legalidade do corte têm por argumento a autorização expressa constante da Lei 8987/95; de outro, os que propugnam pela impossibilidade, trazem por supedâneo as disposições da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor. A jurisprudência titubeia. Ora admite a tese da interrupção, ora a rejeita.

Vejamos, com mais vagar, as duas posições doutrinárias.

Um dos autores do anteprojeto da Lei 8078/90 alinha-se entre os defensores do corte, desde que observados certos requisitos. Argumenta que a previsão legal do corte visa “assegurar a oferta constante e de boa qualidade dos serviços públicos”. [8] Aduz, ainda, que a possibilidade da interrupção só não pode alcançar os serviços uti universi por serem essenciais e inerentes à atividade do Poder Público, como o da educação pública, saúde, saneamento básico, segurança, etc. Ressalta, ainda, que o corte deve ser precedido de aviso para viabilizar a possibilidade de o consumidor saldar seu débito. Por fim, esclarece que o termo “continuidade” inserto no artigo 22, do Código de Defesa do Consumidor, deve ser entendido como oferta de serviço, ou seja, o serviço deve ser ofertado a todos os usuários.

Quer nos parecer que a tese da possibilidade do corte confere ao tema um tratamento meramente econômico, de feição liberal, daí não a encamparmos. Aliás, um dos seus expoentes, o citado José Geraldo Brito Filomeno, ao afirmar que o corte não pode alcançar os serviços que sejam essenciais e inerentes à atividade estatal, como, por exemplo, a saúde, incorre, a nosso ver, em contradição de termos. Isto porque, de um lado, afirma que serviços de saneamento básico e de saúde não podem ser interrompidos, mas, de outro, admite o corte do fornecimento da água, olvidando que esta é inerente à saúde e ao saneamento básico.  

A essencialidade da água, é oportuno dizer, é tema dos mais atuais. Não por outra razão vários estudiosos têm suscitado a problematização do uso racional da água. Políticas públicas vêm sendo debatidas em torno dessa questão. Nesse compasso, a argumentação de que o fornecimento de água não configura, em nenhuma hipótese, como serviço essencial, admitindo, por conseguinte, seu corte, parece ser um argumento destoante em face de um dos problemas que mais se têm debatido.

A doutrina oposta, sustentando a ilegalidade do corte, destaca que o direito de crédito não pode ser confundido com o direito de receber os serviços públicos, pois este é um dever do Estado. Outro ponto bastante relevante destacado por essa corrente doutrinária, é que os serviços públicos são de interesse social. Julgamos correta essa colocação.

A Constituição Federal, tendo a pessoa humana como epicentro, traz como um dos princípios fundamentais da República, a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), e este princípio está imbricado com o da defesa do consumidor, o qual ensejou a promulgação do Código de Defesa do Consumidor. Este, por seu turno, em atendimento ao mandamento da Carta Constitucional, tem por fundamento a proteção do consumidor. Corolários desse fundamento são os direitos básicos arrolados no artigo 6º, como o da proteção da vida, da saúde e da segurança.

Ora, se a vida, a saúde e a segurança estão garantidas pela Constituição, cabe ao Estado, por consectário, desincumbir-se de prestar os serviços que cumpram e corporifiquem o comando constitucional. Nessa ordem de idéias, não se pode conceber que um serviço público, basilar para a sobrevivência do indivíduo, e, em última instância, do corpo social, seja interrompido.

Sobre a questão ligada ao preço, impende dizer, ao aviso da doutrina, que não é a remuneração que obriga à prestação do serviço, mas a lei.

Com efeito, não se pode confundir o preço pago pelos serviços prestados pela iniciativa privada com aquele prestado por ente público ou por quem lhe faça às vezes. Isto porque no campo da iniciativa privada, os serviços foram idealizados para atender aos interesses empresariais dos sócios, perseguidores do lucro e atentos aos desejos de sua clientela específica e selecionada. Já os serviços públicos, resultantes do imperativo legal, daí serem “públicos”, são indisponíveis e estão jungidos à satisfação do interesse coletivo e não à obtenção de lucro. A relação lucro/prejuízo está encerrada na iniciativa privada, exercente de atividade econômica, e não na órbita pública, exercente de atividade com conteúdo econômico, daí a lei falar em “preço módico”, já que o objetivo não é atender a uma determinada faixa da população, cristalizada qual a clientela de uma empresa privada. Ao revés, os serviços públicos existem, assim como o próprio Estado, para atender ao bem comum e viabilizar a vida em sociedade.

Como ressalta o i. Rizzatto Nunes “com ou sem pagamento do preço (tarifa), o Estado não pode eximir-se de prestar o serviço público, como determina a lei.”

Em sede jurisprudencial, o entendimento oscila. Por vezes acolhe a tese de cunho econômico defendida pelas empresas concessionárias de que a falta de retribuição pecuniária é fundamento bastante para interrupção do fornecimento, e mantém o corte; ora prestigia os ditames da Constituição da justiça social, enfocando os deveres inerentes do Estado, in verbis :

SERVIÇO PÚBLICO DE ÁGUA – USUÁRIO INADIMPLENTE – SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO – MEDIDA PREVISTA NO REGULAMENTO TARIFÁRIO DA SABESP, APROVADO POR DE-CRETO ESTADUAL – LEGALIDADE – A exigência de continuidade prevista no artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor implica, desde que instalado e em funcionamento o serviço público, a proibição de sua interrupção como um todo. Válido, entretanto, na consideração da bilateralidade da relação jurídica, e para que não se inviabilize economicamente o serviço, o corte do fornecimento em relação ao usuário faltoso.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO Nº 725.643-5, da Comarca de São Paulo, sendo apelante F.E. Ltda. e apelada Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP).

ACORDAM, em Segunda Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, por maioria de votos, negar provimento ao recurso.

A autora é parte legítima. A regra do § 2º do artigo 19 do Regulamento do Sistema Tarifário da SABESP, aprovado pelo Decreto nº 41.446/96, estabelece explicitamente, no que tange ao pagamento das contas mensais, responsabilidade solidária entre o proprietário e o usuário ocupante do imóvel, o que vale dizer que também este último está obrigado ao pagamento da tarifa, sendo, em conseqüência, parte legítima para a defesa dos direitos relacionados ao serviço de fornecimento de água.

Passando ao exame do mérito, observo que a jurisprudência sempre admitiu como legítima a suspensão do fornecimento de água, pela falta de pagamento da conta (RTJ 33/147, 40/311, 79/565 e 81/930; RT 499/138 e 514/136; JTAC 73/157, 90/42; RJTJESP 126/39 e 138/40).

Não o impede a regra do artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor, que impõe aos órgãos públicos, suas empresas ou concessionárias o dever de continuidade na prestação dos serviços públicos essenciais.

Interpretando o dispositivo, Zelmo Denari (in "Código de Defesa do Consumidor", Forense, 5ª ed., vários autores, pág. 178) ensina: "Quando estiverem em causa interesses individuais, de determinado usuário, a oferta de serviço pode sofrer solução de continuidade, se não forem observadas as normas administrativas que regem a espécie. Tratando-se, por exemplo, de serviços prestados sob o regime de remuneração tarifária ou tributária, o inadimplemento pode determinar o corte do fornecimento do produto ou serviço. A gratuidade não se presume e o Poder Público não pode ser compelido a prestar serviços públicos ininterruptos se o usuário, em contrapartida, deixa de satisfazer suas obrigações relativas ao pagamento."

Antonio Hermen de Vanconcellos e Benjamin (in "Comentários ao Código de Proteção do Consumidor", vários autores, Saraiva, ed. 91, pág. 111) afirma que: "Continuidade, aqui,..., quer dizer que, se o serviço essencial está sendo prestado pela Administração Pública, não pode ser interrompido". Exemplificando, diz que a Administração não pode, "de uma hora para outra, decidir que não mais prestará serviços de telefonia, sob o pretexto de que o próprio mercado deles se encarregará. Uma vez que a iniciativa privada não esteja habilitada a atender, com eficiência, às necessidades dos consumidores, o Poder Público acha-se, então, obrigado a dar continuidade ao serviço que prestava anteriormente."

A questão foi bem equacionada no aresto de RJTJESP 126/39, proveniente da Primeira Câmara Civil do Tribunal de Justiça, relator o Desembargador Luís de Macedo:

"Não obstante considere a Administração essencial o fornecimento de água, é fato notório que milhões de pessoas, em nosso país, não a têm corrente em suas residências, o mesmo se dizendo dos serviços de esgoto e energia elétrica. Deve-se entender a obrigatoriedade no sentido de que não pode ser negada, em princípio, a qualquer um, desde que haja condições técnicas de que esses serviços alcancem o local onde situada a residência. Isso não significa que seja gratuita - há de ser paga."

Portanto, uma vez instalado e posto em funcionamento o serviço público essencial, a Administração não pode interrompê-lo em relação a toda a coletividade servida.

Pode, entretanto, fazê-lo especificamente quanto ao usuário inadimplente, pois, trato bilateral, não teria sentido continuar o fornecimento de água sem a contraprestação devida pelo particular.

A tese oposta é que poderia ameaçar a desejada continuidade do serviço público, pelo incentivo ao inadimplemento, com a conseqüente inviabilização econômica do serviço. O órgão público ou sua concessionária não poderiam ficar, é óbvio, na dependência do problemático e demorado resultado de cobranças judiciais em massa.

Na espécie dos autos, é de se considerar que a regra do artigo 14 do regulamento tarifário antigo, aprovado pelo Decreto Estadual nº 21.123/83, em vigor à época dos fatos, e a regra do artigo 19 do regulamento atual, aprovado pelo Decreto Estadual nº 41.446/96, admitem expressamente a suspensão do fornecimento de água em razão da falta de pagamento das contas mensais.

Não se divisa qualquer ilegalidade nessas normas. Aliás, embora tratando de outro bem, a Lei Federal nº 9.427/96, que disciplina o regime de concessões de serviços públicos de energia elétrica, chega a permitir a "suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essencial à população" (artigo 17). Com maioria de razão, aos particulares.

Nega-se, pois, provimento ao recurso, com alteração do resultado de carência para improcedência do writ.

Presidiu o julgamento, com voto, o Juiz SALLES DE TOLEDO (relator) e dele participou o Juiz NELSON FERREIRA.

DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO

APELAÇÃO Nº: 725.643-5 COMARCA DE SÃO PAULO

Pelo meu voto, "data venia", dou provimento ao recurso.

Trata-se de serviço público de utilização individual e de natureza obrigatória.

Bem por isso, não pode ser interrompido o fornecimento, mesmo quando o usuário não pagar as tarifas devidas. Para essas situações, disporá a prestadora do serviço do meio processual adequado à cobrança de seu crédito. No sentido do exposto, tanto a doutrina como a jurisprudência. Assim, preleciona HELY LOPES MEIRELLES (Direito Administrativo Brasileiro, p. 292, 14ª ed., RT) que:

"Há que distinguir entre o serviço obrigatório e o facultativo; naqueles, a suspensão do fornecimento é ilegal, pois, se a administração o considera essencial, impondo-o coercitivamente ao usuário (como é a ligação domiciliar à rede de esgoto e da água), não pode suprimi-lo por falta de pagamento."

Por outro lado, já proclamou o E. Supremo Tribunal Federal que: "O abastecimento de água é serviço indispensável à coletividade e não pode estar sujeito a cortes por falta de pagamento" (RE 96.055-4-PR, 2ª T., j. 19.02.1982, Rel. Min. MOREIRA ALVES, citado nestes autos a fls. 152/153).

Ante o exposto, dou provimento ao recurso, para conceder a segurança. Custas "ex lege". Sem honorários (Súmula nº 513 do STF). SALLES DE TOLEDO

(1º TACIVIL - 2ª Câm.; Ap. nº 725.643-5- j. 18.11.1998; maioria de votos.) BAASP, 2151/1340-j, de 20.03.2000.

 

Em linha antagônica, sustentando a impossibilidade do corte e até condenando a prestadora de serviço ao pagamento de indenização por dano moral, in verbis:

INDENIZAÇÃO – DANO MORAL – SUSPENSÃO DO FORNECI-MENTO DE ÁGUA REALIZADA INDEVIDAMENTE – Situação que causou desconforto e aborrecimento ao consumidor. Dano moral caracterizado pela ofensa ao íntimo da pessoa. Indenização devida como compensação da dor, fixada em valor moderado. Recurso parcialmente provido.

(1º TACIVIL - 6ª Câm.; AP nº 823.394-1- j. 5/6/2001; v.u.). BAASP, 2279/594-e, de 2.9.2002.

 

MEDIDA CAUTELAR - CAUTELA INOMINADA - Pretensão à legitimação do ato de suspensão do fornecimento de energia elétrica - Impossibilidade - Serviço essencial que se submete ao princípio da continuidade -Inadimplência do consumidor-usuário com relação a valores retroativos que tem origem em suposta irregularidade de consumo irreal - Irrelevância - Artigos 22 e 42 do CDC e artigo 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95 - Essencialidade e urgência do serviço reconhecida expressamente pelo ordenamento jurídico - Discussão judicial da legitimidade da irregularidade e da cobrança dos valores que afasta, por ora, o interesse da coletividade capaz de legitimar o ato de interrupção - Liminar mantida - Agravo desprovido.

(AI n. 1.221.197-3, 4ª Câm. do PTACsp, por votação unânime, negar provimento ao recurso. )

 

6. Conclusão

 

A interrupção do fornecimento de serviço público tem gerado grande controvérsia por envolver, de um lado, a possibilidade de a iniciativa privada explorar atividade com objetivo de obter lucro, e, de outro, o dever constitucional de o Estado atender às necessidades primárias da coletividade.

Entendemos que na busca por um juízo equilibrado, não se pode examinar a questão apenas sob o aspecto meramente econômico, desconsiderando a circunstância de o dever do Estado fornecer tais serviços decorrer do mandamento constitucional. A manutenção desse enfoque redunda, em nosso sentir, em tornar a linha principiológica constitucional inserta nos artigo 5º, inciso XXXII e 170 em pura abstração. E as prescrições constitucionais não podem ser interpretadas como se normas programáticas fossem, já que cristalizam os valores mais caros da sociedade, de maneira que se a Constituição quer a justiça social, urge que os aplicadores e interpretes extraiam da norma um caminho para equacionar os interesses em conflito, sem vulnerar os ditames constitucionais.

Talvez seja o caso de se pensar nas orientações doutrinárias recentes no sentido de estabelecer quotas para os inadimplentes, levando-se em conta: a) que expressiva parcela dos consumidores não têm qualquer possibilidade econômica de pagar sequer o mínimo exigido pelas concessionárias, porquanto o alto grau de empobrecimento, de desemprego e de miséria distribuído no País resulta da ideologia liberal que sempre prestigiamos, e o resultado impositivo dessa filosofia é a hodierna realidade social, em que o consumidor carece de condições econômicas para pagar pelo fornecimento de serviços dos mais elementares;  b) que as prestadoras recebem por serviços não prestados, porquanto todos os consumidores são compelidos a pagar uma taxa mínima mesmo que não utilizem efetivamente o serviço, o que significa dizer que as concessionárias têm uma fonte de receita sem que haja a despesa correspondente, e c) insta analisar o tema sob a perspectiva do interesse social, considerando que o não-fornecimento de água gera um problema de ordem social, porquanto sem água, o consumidor fica interdito de higienizar a si e aos alimentos que ingere, circunstância que desatende ao interesse social, porquanto a não-higienizacão é campo fértil para o surgimento e disseminação de doenças.

A solução das cotas talvez não seja a ideal, mas parece ser um caminho a ser investigado.

 

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[1] Celso Antonio Bandeira de Melo. A teoria das Constituições rígidas.  p. 40

[2] Renan Lotufo. Da oportunidade da codificação civil, in  Novo Código Civil  Aspectos Relevantes. Revista do Advogado n. 68,  pg. 22.

[3] Márcio Fernando Elias Rosa. Direito Administrativo, p. 120.

[4] Pedro Salvetti Neto. Curso de Teoria do Estado, p. 57-8.

[5] José Afonso da Silva.  Curso de Direito Constitucional Positivo. Pg. 781

[6] Zelmo Denari, op. cit., p. 191.

[7] Luiz Antonio Rizzatto Nunes, op. cit., p. 307.

[8] José Geraldo Brito Filomeno, op. cit., p. 89.



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