134 - Violência Doméstica. Lei nº 11.340/2006 e suas incongruências

 
FREDDY LOURENÇO RUIZ COSTA - Juiz de Direito
 

SUMÁRIO: 1. Das   ações    afirmativas e objetivo  da Lei nº 11.340/2006 – 2. Das Disposições Preliminares  e Disposições do Título  II – 3. Das Providências Preliminares e Medidas  Protetivas   - 4. Da Obrigatória  Notificação para Atos Processuais – 5. Da Assistência – 6. Das Medidas Protetivas de Urgência: natureza jurídica  - 7. Dos Princípios da Isonomia, Proporcionalidade e Razoabilidade,  desatendidos e Peculiaridades da edição da Lei nº 11.340/2006 e sua  inadmissível  incidência seletiva.   – 8. Da Relação de Gênero e o Poder de Violência Simbólica – 9. Da Assimetria na Aplicação do Preceito Secundário acrescido pela Lei nº 11.340/2006 – 10. Das Penas de Fato – 11. Da Inconstitucionalidade do art. 14, da Lei nº 11.340/2006.  

 

1. Em 22 de setembro de 2006 entrou em vigor, após vacatio legis de quarenta e cinco dias, a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, fincada em ações afirmativas e com o aberto objetivo de implementar “ações direcionadas a segmentos sociais, historicamente discriminados, como as mulheres, visando a corrigir desigualdades e a promover a inclusão social por meio de políticas públicas específicas, dando a estes grupos um tratamento diferenciado que possibilite compensar as desvantagem sociais oriundas da situação de discriminação e exclusão a que foram expostas”, segundo o item 6 da Exposição de Motivos nº 016, de 16 de novembro de 2004.  A Exposição de Motivos da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres declara, ainda, no seu item 7, que “As iniciativas de ações afirmativas visam “corrigir a defasagem entre o ideal igualitário predominante e/ou legitimado nas sociedades democráticas modernas e um sistema de relações sociais marcado pela desigualdade e hierarquia”.

 

A Lei chama como argumento de reforço a autoridade de convenções internacionais, sem lembrar que outras tantas de igual grandeza existem, e sem o rótulo discriminatório que a lei sob comento alinhavou. A Lei nº 11.340/06, corpulenta e cheia de gordura, contém quarenta e seis artigos, além de diversos parágrafos, incisos e alíneas, com exageradas disposições, abusando da multiplicidade de verbos e de indefinidas e vagas expressões.  O texto da Lei atenta contra a segurança jurídica, característica de um Estado Democrático de Direito, que deve servir a todos: homens e mulheres.

 

Sua dimensão muito além do normal percebe-se pelo confronto, v.g., com a Parte Geral do Código  Penal, que se resume a cento e vinte artigos.

 

2. O art. 1º da Lei, no Título I, nas Disposições Preliminares, delimita como beneficiária das medidas multidisciplinares a mulher e nos artigos seguintes não economiza a tônica dada à mulher como titular de direitos já encontráveis em outras normas, inclusive, de incontestável superioridade. A desnecessária repetição do feixe de direitos reconhecidos em favor da mulher, para que não seja absolutamente inútil, indica fim programático, quando menos. 

 

As disposições explicativas contidas no Título II, Da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, Capítulo I, Disposições Gerais, sem necessária detida leitura ofende pela extensão e vaguidade o princípio da legalidade e seus consectários. Não lhes serve de socorro o disposto no art. 4º que, embora tente, não justifica as rigorosas medidas que a lei prevê em benefício das mulheres, em detrimento dos homens – regra geral -, quando pretende normatizar, também, os meios de interpretação do texto legal, dizendo que devem ser considerados os fins sociais a que ela se destina e especialmente as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

 

O artigo 7º, no Capítulo II, do Título II, Das Formas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, como norma explicativa, exemplifica formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, mas tem seus limites no que dispõe o art. 5º: no âmbito da unidade doméstica; no âmbito da família e em qualquer relação íntima de afeto. A Exposição de Motivos da Lei diz que “Para os fins desta proposta, e de forma a conferir-lhe maior especificidade, somente foi considerada a violência ocorrida no âmbito privado”. Descuidou a lei da proteção da mulher quando as formas de violência que exemplifica detidamente no art. 7º ocorrem fora do âmbito familiar: no ambiente de trabalho, por exemplo. Assim, a força física e a capacidade de autodeterminação como diferenciais para o tratamento desigual entre homens e mulheres não se justificam. A violência contra a mulher, não obstante fora do âmbito familiar, constituiria também violação dos direitos humanos da mulher, pelo modo de dizer do art. 6º: “A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”.  Ocorre que, figurando somente a mulher como ofendida, parece que se acena com a possibilidade de supressão da competência da Justiça Estadual, como meio subliminar de intimidação para os menos avisados.    

 

3. O art. 12, da lei sob comento dispõe que em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 5º), feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal, alguns procedimentos, entre os quais o de “remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao Juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência”. Nos termos do art. 19, parágrafo 1º, as medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público e aplicadas isolada ou cumulativamente (neste sentido também o art. 22, “caput”), conforme reza o § 2º, do art. 19, podendo ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia. O § 3º, do mesmo art. 19, possibilita, ainda, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida a concessão de novas medidas protetivas de urgência ou a revisão das já concedidas para a proteção não só da ofendida, mas também de terceiros: seus familiares, dependentes e testemunhas. Infere-se dos arts. 20, 22, § 4º, 23 e 24, todos da Lei 11340/06, que as Medidas Protetivas podem ser determinadas pelo Juiz de ofício, desatendendo o princípio dispositivo.

 

Para coroar o rol de medidas que excepcionam direitos constitucionalmente assegurados, a Lei, autoriza a prisão preventiva daquele que rotula – de forma discriminante – de agressor (arts. 12, V e VI, 12, § 1º, I, 15, III, 20, caput, 21, caput, e seu parágrafo único, 22, caput, 22, III, ‘a”, 22, § 2º, 23, II, 24, I e III, 30, 35, V e 45) e acrescenta o inciso IV, ao art. 313, do Código de Processo Penal, por seu art. 42. Tem-se, desta forma, nova condição de admissibilidade e nova fundamentação para a prisão preventiva: Garantir a execução das medidas protetivas de urgência, se o crime envolver  violência doméstica e familiar contra a mulher.

 

4. O art. 21, da mesma Lei, criando mecanismo de vigilância e monitoramento do homem, manda que a ofendida seja notificada dos atos processuais relativos ao agressor.  A inovação da Lei constitui-se em meio apto para que seja, pela mulher, fiscalizado e controlado o exercício do direito de defesa do homem taxado pela Lei de agressor. Não bastasse, valendo-se a Lei de termo técnico notificação (a redação do parágrafo único do artigo 21, demonstra que o legislador sabe das diferenças entre intimação e notificação, e proibiu ofendida de entregá-las), poderia fazer crer que deveria a mulher ser comunicada com antecedência sobre o ingresso e a saída da prisão do homem.  

 

5. Interessante, também, que a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, tinta com dúvida a eficiência do sistema de acusação oficial, que a Constituição Federal reserva de forma privativa ao Ministério Público no art. 129, I. O art. 27 da Lei nº 11.340/06 impõe que “Em todos os atos processuais (...) criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado...” e o art. 21 reforça dizendo que “A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor (...) sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público”. Dizendo sobre atos processuais, a Lei refere processo, ação penal instaurada. E, atos processuais relativos ao agressor são todos os atos processuais, porquanto é de se garantir o contraditório, a ampla defesa, a plenitude de defesa de que fala a Constituição Federal.  Sendo necessária a intimação do advogado constituído ou do defensor público, que deverá acompanhar a mulher, é inegável que a atuação do advogado constituído ou nomeado não deve ser meramente decorativa. A nobreza e relevância da advocacia – reconhecidas na Constituição Federal - não podem ser reduzidas à atividade de um simples acompanhante. Há, também, marcante interdependência da persecução penal – que a lei quer que se faça por inquérito policial na fase administrativa - e das pretendidas medidas protetivas. Desta forma, a Lei nº 11.340/06 instituiu a assistência obrigatória – diferente da assistência facultativa, do art. 268 e seguintes do Código de Processo Penal. A admissão do assistente, constituído ou nomeado, independeria de assentimento do Ministério Público (art. 272 do CPP) e não seria possível a sua recusa. Antonio Scarance Fernandes, in O papel da vítima no processo criminal, São Paulo, Malheiros, p. 124, lembra tendência dizendo que “...sem os riscos de um retorno ao sistema da vingança privada e sem que se dê à vítima o papel de parte principal, melhor é incentivar a sua colaboração, normalmente vantajosa para a persecução criminal. É, por outro lado, postura que se coaduna com a visão  democrática do Estado e do processo (...) Mas, a vítima atua também como membro e representante da comunidade, tendo esta interesse jurídico em participar do processo porque a ação criminosa deve ser reprimida para maior tranqüilidade social; assim, estará a comunidade, através do ofendido, colaborando com o órgão oficial da acusação, superando suas falhas e influindo na solução da causa”. O princípio da paridade de armas é, entretanto, ameaçado.

 

6. A Seção II, Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor, do Capítulo II, do Título IV, contém o art. 22, que não referindo hipótese de iminência, mencionada no art. 10, dispõe, de forma exemplificativa, e não taxativa (“entre outras”), que constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 5º), nos termos da Lei, o Juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente as medidas protetivas de urgência, entre outras:

 

“I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

§ 1o  As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público (...)”

 

As Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o “Agressor”, do art. 22, são complementadas pelas Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida, doa arts. 23 e 24, que também, obrigam o homem (“agressor”):

 

Art. 23.  Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:

 

I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

IV - determinar a separação de corpos.

 

Art. 24.  Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:

 

I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;

III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;

IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.

 

As Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor, complementadas pelo rol das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida – que também obrigam o agressor, quando menos de forma negativa, são medidas de segurança, com adoção do já abandonado sistema chamado duplo-binário, pessoais e patrimoniais, com restrição de direitos e da liberdade, impostas ao homem – regra geral - imputável, antes de sentença condenatória, passíveis de serem concedidas de imediato, inaudita altera parte, com caráter satisfativo – não característico das cautelares processuais penais -, pois se esgotam com a aplicação, e sem fixação de termo final ou condição resolutiva – não se respeita o princípio da provisoriedade. Têm, as medidas de segurança editadas pela lei, mal disfarçadas em providências civis e administrativas, fim acautelatório da mulher, de seu patrimônio, da instrução criminal (testemunhas) e de terceiros estranhos à relação jurídico-material: familiares da mulher e seus descendentes. E, ainda, nos termos do art. 22, § 1º, da Lei nº 11.340/2006, outras medidas previstas na legislação em vigor poderão ser aplicadas, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem.

 

Não são medidas de ordem civil, como se poderia argumentar. A natureza jurídica das medidas protetivas é, como dito, penal. Não constituem ação civil e, assim é, pois, de forma indisfarçável, nos arts. 18 e 19, no Capítulo II, Das Medidas Protetivas de Urgência, na Seção I, Das Disposições Gerais, encontra-se, também, a autorização para prisão preventiva do homem - regra geral. O art. 42, da Lei, alterando o art. 313, do Código de Processo Penal acrescenta o inciso IV, criando nova condição de admissibilidade se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da Lei específica, e novo fundamento, que deveria constar do art. 312: para garantir a execução das Medidas Protetivas de urgência. Cabe notar que salvantes as hipóteses constitucionais, não há possibilidade de prisão civil, especialmente para garantir a execução de medida protetiva.  Não são de ordem civil as medidas protetivas de que fala a Lei. A provocação da ação do Judiciário independe de advogado habilitado, em especial confronto com o que disciplina a Constituição Federal em seu art. 133: o advogado é indispensável à administração da Justiça... Isso é o que se depreende do disposto no art. 12, § 1º, e a referência feita ao advogado no art. 21 é excepcional, ressalvando a Lei, no art. 27, dispensável o advogado na hipótese do art. 19. A despeito de a Lei autorizar no parágrafo 3º, do art. 19, que novas medidas protetivas poderão ser aplicadas pelo Juiz a requerimento do Ministério Público, fosse a providência de ordem civil extrapassaria as atribuições previstas nos arts. 127 e seguintes da Constituição Federal. Em apertada síntese, os interesses individuais só podem ser defendidos pelo Ministério Público quando indisponíveis. Prescindindo as medidas protetivas de pedido da ofendida, à evidência, de direitos indisponíveis não se cuida.

 

De providências cautelares cíveis, dessa arte, não se trata. Ademais, se pudessem ser deferidas sob o manto do poder geral de cautela, não há previsão de procedimento que autorize o exercício da defesa conforme manda o art. 5º, LV, da Constituição Federal. Não se determina, também, de forma clara, a competência recursal: cível ou criminal, dispondo o homem – regra geral -, apenas, de instrumentos de garantia constitucional (habeas corpus e mandado de segurança), que não admitem, salvo a excepcionalidade, a apreciação de prova.

 

O homem, destinatário especial como sujeito ativo da Lei 11.340/06, acusado por mulher (que tem em seu favor os benefícios do art. 89, da Lei 9099/95, entre outros, para a hipótese de denunciação caluniosa), observadas as peculiaridades do art. 5º (norma explicativa), chega a ser considerado criminoso nato, nos moldes da teoria de Lombroso.   Vale lembrar que é artificial o conceito de relação de gênero, com o qual se buscou disfarçar a desarrazoada discriminação entre homens e mulheres. Trata-se de adoção de um Direito Penal de gênero e a lei não deve ter destinatário específico, tendo como diferenciador o sexo. A lei deve resguardar, de modo geral, o ser humano – conceito no qual estão, também, as mulheres. A lei sob comento é a expressão máxima de um Direito Penal simbólico, promocional e paternalista, trazendo para a mulher, quando conveniente, um caráter de hipossuficiente. A condição de gênero humano (art. 5º, I, CF) não pode instituir diferente tratamento penal e processual penal para parte do gênero: mulher.

 

7. Indissimulável a ofensa aos princípios da igualdade e da razoabilidade. Se, v.g., a mulher causar lesão corporal no marido, no filho e no pai, notada a pena mínima de três meses, com o acréscimo do concurso, seria beneficiária da suspensão condicional do processo, que a Lei nº 9099/95, no seu art. 89, autoriza; enquanto o marido que ofende levemente a integridade física da mulher não pode ter o mesmo benefício, deve suportar pena criminal distinta em razão das restrições (art. 17, da Lei nº 11.340/06) e está sujeito às diversas medidas chamadas protetivas, sendo presumidamente perigoso.  A mulher que agride o filho recém-nascido, nele causando lesão com gravidade não alcançada pela definição mais grave, é beneficiada pela suspensão condicional; enquanto que se a vítima de lesão levíssima for a filha madura, têm incidência todos os rigores da lei. Se o marido pratica vias de fato contra a mulher, sofre os rigores da lei com exclusão das benesses da Lei nº 9099/95, mas se a mulher, que já foi beneficiada por transação penal, causa lesão corporal no marido pode ter suspenso condicionalmente o processo e não precisa temer as medidas protetivas. Poucas vezes mostrou-se um Direito Penal simbólico e promocional de forma tão concreta.    

 

A produção legislativa tem se dedicado a separar em grupos a sociedade, com a conseqüência prática de criar revolta naquele que suporta injustificadamente encargos para a manutenção de privilégios em favor dos que lhe são iguais. Passa, desta forma, o preterido por critério de distinção apenas formal a olhar o outro como alguém que, lhe sendo igual, irá fazê-lo suportar desmedidos ônus. Nasce, assim, a figura do inimigo. Essa forma de condicionamento social por força de Lei serve para, desagregando a sociedade em grupos que se isolam, restringir a reação às frustrações ao âmbito privado, deixando passar ao largo os desmandos do Estado. Fragmentada e desorganizada, a sociedade não tem força para a revolução social e política.

 

Desproporcionais as providências da Lei e injustificáveis as alegadas circunstâncias peculiares para a sua edição. E, tanto é assim que limitou sua incidência às hipóteses ocorridas no âmbito familiar: a mulher já não está sujeita à autoridade, é capaz de gerir sua pessoa e bens. Se relevante sua força física é de se destacar que se deu à mulher maior distinção do que a reservada para pessoa portadora de deficiência.  Conforme dispõe o art. 44 da lei sob comento, que faz incluir o parágrafo 11, no art. 129, do Código Penal, se o fato se der no âmbito familiar e for homem portador de deficiência o ofendido é permitida a substituição da pena - se aplicada a mínima - por multa, além das benesses do art. 89, da Lei 9099/95.  Diferentemente, sendo a mulher a ofendida, não portadora de deficiência física, à infração ao disposto no art. 129, caput, c.c. parágrafo 9º, do Código Penal, na forma da Lei 11340/06, é inaplicável a Lei 9099/95 e vedada, no que é relevante, a substituição da pena. Parece claro concluir que a mulher é menos capaz de se autodeterminar e defender, segundo o texto da Lei, do que o homem portador de deficiência – notando-se que pode alcançar seu mais alto grau.

 

A Exposição de Motivos nº 16 SPM/PR, de 16 de novembro de 2004, da Secretaria Especial de Política para as Mulheres, em seu item 3, confessa que “em março do corrente ano, foi encaminhada pelo Consórcio de Organizações Não-Governamentais Feministas proposta de anteprojeto de Lei para subsidiar as discussões do Grupo de Trabalho Interministerial instituído com a finalidade de elaborar  proposta e medida legislativa para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. Sobre isso, é importante o que ensina José Luis Díes Ripollés, in A Racionalidade das Leis Penais, Teoria e Prática, tradução de Luis Regis Prado, editora RT, 2005, p. 32, quando se refere aos grupos de pressão especializados: “Trata-se de grupos que defendem interesses diversos: podem ser interesses ideológicos, entre os quais merecem ser destacados os grupos ultimamente surgidos na sociedade civil, como grupos de pressão feminista (...) A atividade desses grupos rege-se  pelo desejo de resolver o problema social de acordo com os seus interesses: em primeiro lugar, valem-se de seu prestígio para apropriar-se do problema, o que significa que se admite sua competência para desenvolver o programa de ação”.  A edição da Lei, às portas da eleição, é sintomática e isso é não se esconde pelo que publicou a prestigiosa revista “Veja”, na edição 1969, ano 39, nº 32, de 16 de agosto de 2006, que traz na capa a chamada: “ELA PODE DECIDIR A ELEIÇÃO. Nordestina, 27 anos, de educação média, 450 reais por mês, (...) retrata o eleitor que será o fiel da balança em outubro”.

 

Não se pode descuidar do fato de que a relevância da família como célula social é alvo de ações políticas. Interessante notar, como lembra o Prof. Fábio Ulhoa Coelho, in  Direito e Poder, editora Saraiva, 1992, p. 4 e 5, que “Em 1927, a República dos Sovietes editou o Código do Matrimônio, da Família e da Tutela, com uma significativa inovação, à época, qual seja a extinção do registro como ato essencial a caracterização do casamento. Em outros termos, a relação concubinária passou a merecer do estado idêntica proteção que  a liberada ao matrimônio. O registro, dizia o código,  servia ao fim de facilitar a salvaguarda dos direitos e interesses pessoais dos cônjuges e filhos, mas não era indispensável. Para o regime soviético, ansioso para implementar as mudanças estruturais defendidas pela Revolução a abolição do casamento-registro significava um importante passo no estabelecimento de novas relações sociais. A família burguesa era, então, caracterizada pela monogamia vitalícia, e afirmava-se que havia sido criada para propiciar o acúmulo de riquezas para uma classe capitalista. No processo revolucionário, era mais que natural a abolição dessa espécie de família, tutelando-se, também, a monogamia sucessiva, que os teóricos apontavam como a nova base nas relações entre o homem e a mulher na constituição do núcleo familiar”. Continua, o ilustre professor, a esclarecer sobre  que “...em menos de uma década depois o direito soviético passou a disciplinar o assunto de foram contrária (...) elevando o imposto incidente sobre o registro do vínculo matrimonial (...) em  08 de julho de 1984, contudo, um Decreto estabeleceu que apenas o matrimônio registrado originava entre os cônjuges os direitos e obrigações previstos no Código do Matrimônio, Família e Tutela (...) em outros termos, não se conseguiu extinguir a “família burguesa””.

 

8. A própria Lei traz implícita admissão de que a relação de gênero não tem alicerce, porquanto, de forma elogiável, reconheceu absurda a discriminação por orientação sexual, consoante dispõe o parágrafo único do art. 5º. Mas, se por um lado permitiu a aplicação das medidas que prevê em caso de união entre mulheres, excluiu de qualquer proteção os homens, que também são livres para a união com pessoa do mesmo sexo. Admite, então, a Lei, a capacidade da mulher – unida por vínculos familiares, domésticos ou afetivos - de ofender bens juridicamente tutelados pelo Direito Penal.

 

A criada relação de gênero é expressão marcante do exercício do que se denomina poder de violência simbólica, conforme ensina o Prof. Tércio Sampaio Ferraz Júnior, in Introdução do Estudo do Direito, 1ª edição, 2ª tiragem, São Paulo, Editora Atlas, 1989, e Teoria da Norma Jurídica, 1ª edição, Editora Forense, 1978: trata-se de capacidade de imposição de significações como legítimas, de forma a dissimular as razões das reais forças subjacentes.

 

Notando-se que a Lei de maneira enfática impõe, apenas, ao homem – regra geral - suportar as medidas destinadas à proteção exclusiva da mulher (que são estendidas excepcionalmente a terceiros desvinculados da relação jurídica material), esgarçado foi o princípio da isonomia, resguardado nos termos do art. 5º, “caput”, e seu inciso I, da Constituição Federal. No âmbito familiar, o reforço do princípio da isonomia – igualdade entre homens e mulheres – foi cunhado pelo art. 226, § 5º, da Constituição da República: Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher e o parágrafo 8º, do mesmo art. 226, da Constituição Federal, que foi chamado, assim como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulher – que trata de hipóteses que não se confundem com a que o legislador buscou resguardar - para fundamentar a edição da Lei, dispõe que O Estado assegurará assistência à família na pessoa de cada um que a integram  e não distinguiu entre homens e mulheres. Foi ofendido o princípio da unidade da Constituição.

 

Não é possível que seja assegurada a isonomia aplicando em favor do homem que se encontre em situação de violência doméstica e familiar, conforme restrição do art. 5º da Lei, as medidas protetivas. Clara, a situação mais grave a qual estaria sujeita a qual estaria sujeita a mulher. Não se concebe a interpretação in malam partem. Não sendo possível a extensão em favor do homem das rigorosas medidas de proteção, impossível a sua aplicação em favor da mulher, sob pena de ser desobedecido o princípio da isonomia.

 

9. O parágrafo 9º, do art. 129, do Código Penal, acrescentado pela Lei 10.886/04, previa a pena de detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e tem a seguinte redação:  Se a lesão for praticada contra ascendentes, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro ou com quem conviva ou tenha  convivido,ou, ainda, prevalecendo-se, o agente, das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. A nova Lei, mantendo a redação principal, trouxe a pena de detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. Somente na forma atendeu o caráter geral da Lei Penal.  A Lei, como sabido, compõe-se de duas partes: o preceito primário ou comando principal e o preceito secundário ou sanção. A norma penal proibitiva exige a conjugação do preceito primário com o preceito secundário. Ocorre que a Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, desobedece o caráter geral da norma penal e isso em razão do que dispõe o seu art. 17: É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica de familiar contra a mulher, de penas de cestas básicas ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.  A disposição do art. 17, obedecida a regra explicativa do art. 5º, impõe a restrição à individualização da pena apenas para os fatos em que for a mulher sujeito passivo. Tamanha é a sanha legislativa, que proibiu “pena” que a lei brasileira não admite: cesta básica.  Tendo sido de forma desarrazoada aumentada a pena máxima, com aparente objetivo de afastar a competência dos Juizados Especiais Criminais e as medidas despenalizadoras da Lei nº 9099/95 – que expressamente é excluída pelo disposto no art. 41 -, têm aplicação as regras gerais do Código Penal. Destarte, sendo a mulher o sujeito passivo, lhe é permitido, mesmo que reincidente, maior rol de substituições, conforme reza o art. 44, §§ 3º e 4º, do Código Penal. Tornou o legislador, por via reflexa, mais grave o preceito secundário do tipo penal criado no art. 129, § 9º, quando for a mulher sujeito passivo e, em regra, o homem sujeito ativo, em razão da pena aplicável.  A restrição do art. 17 alcança outros crimes, obedecidas as disposições do art. 44, seus incisos e parágrafos, do Código Penal. Constitui-se o sistema criado pela Lei 11.340/06 em inconstitucional discriminação.

 

A Lei, chamando para se justificar a Convenção Interamericana de Belém do Pará, que não tem a característica discriminatória da nova lei, desobedeceu a Regras de Tóquio. A agravante do art. 61, II, “f”, imposta pelo art. 46 da Lei 11340/06, além de constituir bis in idem, reafirma a discriminação pela proteção exclusiva da mulher.

 

10. A Lei é eminentemente discriminatória, estigmatizando aquele que, presumido inocente nos termos do art. 5º, LVII, da Constituição da República, por dezessete vezes chama de agressor, em seus quarenta e seis artigos. Tanto o é, que lhe impõe submissão à identificação criminal, que é reconhecido mecanismo de humilhação, ofensivo à dignidade humana, conforme prevê o art. 5º, LVIII, da Constituição da República, que teve exceção por Lei Ordinária, no art. 5º, da Lei 9034/95 - que cuida das organizações criminosas - e regulamento pela Lei 1054/00.

 

O procedimento diferenciado, na impossibilidade da aplicação da Lei 9099/95 – que sempre recebeu aplausos da comunidade jurídica -, transforma o inquérito policial e o processo criminal em autênticas penas de fato.  A providência da Lei somente presta-se para o etiquetamento e estigmatização, que não desaparecem mesmo com o cumprimento de eventual pena, servindo de obstáculo à ressocialização, prestando desserviço à entidade familiar, privada das medidas de conciliação, na forma defesa pela Constituição Federal. Conforme se depreende do art. 226, § 8º, o constituinte pretendeu a proteção da família como um todo.

 

11. A interessada poderá buscar medidas genuinamente civis no Juízo competente. O legislador constituinte, no art. 226, § 8º, disciplinou que o Estado assegurará assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, sem distinção. Somente assim se pode harmonizar o sistema constitucional, respeitando a unidade da Carta Constitucional de 1988, implementando os fins sociais que, inclusive, a Lei 11.340/06, em seu art. 4º, menciona. A Lei 11.340/06 teria aplicação se fosse instrumento de agregação familiar e proteção de cada um de seus membros, sem qualquer distinção.

 

O art. 33, da Lei 11.340/06, seria também inconstitucional e sem aplicabilidade fossem as medidas protetivas de ordem civil, pois não criados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar, conforme dispõe o art. 14. Flagrante é a contradição da Lei: a referência a Juizados é encontrável na Constituição Federal, em seu art. 98, e a Lei 11.340/06, em seu art. 41, afasta a aplicação da Lei 9099/95.

 

Fixada a competência para os Juizados de Violência Doméstica e Familiar, que são órgãos da Justiça Ordinária, que poderão ser criados, inclusive nos Territórios – que já não existem mais -, a Lei 11.340/06 transfere para as varas criminais a competência cível. Inconstitucional a disposição, pois a matéria que regula diz respeito à Organização Judiciária da Justiça Ordinária, conforme disciplina o art. 22, XVII, da Constituição Federal. A competência para legislar privativamente sobre Organização Judiciária é, a princípio, da União.

 

O professor José Affonso da Silva, in Competências na Constituição de 1988, editora Atlas, São Paulo, 1991, p. 86, ensina que competência privativa é aquela que pode ser delegada; enquanto competência exclusiva não comporta delegação.

 

Assim, exceção à regra da competência privativa é a disposição contida no parágrafo único do art. 22, da Constituição Federal, segundo a qual, Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.

 

Neste diapasão, pela Lei Complementar nº 35, de 14.03.79, LOM, foi delegado aos Estados-membros, conforme seu art. 97, a competência para estes entes federativos legislarem sobre questões específicas de Organização Judiciária, incluindo-se na delegação conferida toda matéria referente a especialização das  Varas Judiciais da Justiça Estadual. De forma inversa, a retomada desta delegação outorgada pela União, somente se poderia dar mediante Lei Complementar, em razão do disposto no parágrafo único, art. 22, da Constituição Federal.

 

A Lei 11.340/06 é Lei Ordinária e, como conseqüência lógica, não poderia veicular matéria afeta à Lei Complementar: delegação de competência legislativa privativa da União. O art. 33 da Lei 11340/06 é inconstitucional, portanto. Não só por ofender a isonomia, mas também por impor competência às Varas Criminais da Justiça Estadual.

 

Em arremate, a Lei 11.340/06 foge das diretrizes tratadas pela Constituição Federal de 1988, porquanto seu art. 4º impõe que a interpretação da Lei se dê em desrespeito a vários princípios de interpretação da Constituição Federal, notadamente ao princípio da unidade da Constituição, ao princípio da harmonização, ao princípio da força normativa da Constituição e a sua máxima efetividade. Como corolário, violada a isonomia constitucionalmente prevista, abalando o fundamento da dignidade da pessoa humana (inconstitucionalidade material).

 

Por outro lado, a aplicação da Lei 11.340/06 está condicionada à criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que deve se dar por meio de Lei específica votada e aprovada pelos Legislativos Estaduais. O disposto no art. 33 da Lei 11.340/06 é inconstitucional por vício formal e, assim, inaplicável.  

Conclusão. Por inconstitucional a Lei nº 11.340/06, por ferir o princípio constitucional da isonomia e a unidade da Constituição, não têm aplicação as chamadas medidas protetivas – verdadeiras medidas de segurança aplicadas sem condenação – e, independentemente do que diz o art. 41, não se afastando a aplicação da Lei nº 9.099/95, quando pertinente, não se impõe prisão em flagrante; a apuração criminal na fase policial se faz por termo circunstanciado; é exigível a representação quando cabível, e possíveis as medidas despenalizadoras, não estigmatizantes e de exclusão do processo e de pena, v.g, conciliação civil, transação penal  e suspensão condicional do processo. O Delegado de Polícia – autoridade policial - está desobrigado da função de despachante que lhe pretendeu dar o art. 12, III e seus parágrafos 1º e 2º da Lei nº 11.340/06 e impedido de determinar a providência do art. 12, VI (identificação criminal), da mesma Lei, sob pena de ferir o disposto no art. 5º, LXVIII, da Constituição Federal. O rito para as infrações de menor potencial ofensivo é, ainda, o previsto na Lei nº 9.099/95, com as garantias da defesa preliminar e do interrogatório ao final.   A transferência para as Varas Criminais de competência civil é inconstitucional. Tendo em vista as regras e princípios norteadores dos Direitos Humanos Internacionais, a Lei 11340/06, por violar absoluta igualdade, entre homens e mulheres que as convenções internacionais que chamou para justificar, preconizam, o Brasil poderia ser instado a esclarecer violação dos Direitos Humanos do Agressor, submetido a tratamento desigual. Não é absurda a hipótese de um marido, nominado pela lei de Agressor, sendo submetido à inconstitucional medida de afastamento do lar, domicílio ou local de convivência, à qual não é sujeita a mulher e que as Convenções Internacionais não admitem, se de aplicação seletiva, não tendo abrigo como a Lei previu para a mulher, seja acometido de grave moléstia que lhe cause a morte. A Lei viola o princípio da igualdade, que é, também, fundamento dos direitos humanos. 


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