130 - Psicografia e prova penal

 
RENATO MARCÃO - Promotor de Justiça
 

Sumário: 1. Introdução; 2. Alguns casos emblemáticos; 3. Algumas reflexões jurídicas necessárias; 4. Conclusão.

 

 

1. Introdução

         O direito à prova insere-se no campo das garantias que integram o devido processo legal.

         No sistema acusatório adotado pelo legislador brasileiro, depois da imputação inicial formalizada, em tempo oportuno e com limitações que decorrem também do sistema constitucional vigente, assegura-se o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV, da CF).

         Como observou Geraldo Prado: “A marca característica da Defesa no processo penal está exatamente em participar do procedimento, perseguindo a tutela de um interesse que necessita ser o oposto daquele a princípio consignado à acusação, sob pena de o processo converter-se em instrumento de manipulação política de pessoas e situação”.[1]

         Questão das mais intrigantes e que de tempos em tempos inquieta a comunidade jurídica é a que impõe reflexões sobre a validade ou não de material psicografado, apresentado para ser valorado como prova em processo penal.

         O que se busca com o presente trabalho, de dimensões limitadas, sem qualquer pretensão de resolvermos definitivamente as inquietações reinantes, é apenas trazer algumas considerações que entendemos oportunas.

 

2. Alguns casos emblemáticos

         Psicografar é anotar ou escrever algo ditado ou sugerido por algum espírito desencarnado.[2]

         A primeira reflexão, de ordem eminentemente religiosa, impõe aceitar ou não a doutrina espírita, suas crenças e dogmas. Nesse campo não ingressaremos em razão das limitações do conhecimento de que dispomos a respeito da doutrina espírita e em homenagem à liberdade de credo ou religião.

         Experiências mediúnicas são relatadas diuturnamente em todos os seguimentos sociais, despertando reações as mais variadas, que vão da fé intransigente ao medo, passando, evidentemente pelo crivo da credibilidade.

         Dentre os médiuns brasileiros mais acatados e respeitados temos a figura de “Chico Xavier” (falecido em 2001), que de alguma maneira, e não por vontade própria como chegou a afirmar, acalorou a discussão a respeito da validade ou não do material psicografado como “meio de prova”, visto que em três casos emblemáticos suas psicografias acabaram por influenciar, ao que se sabe, no resultado dos julgamentos de três episódios de sangue que acabaram com a morte das vítimas. De comum entre os três casos, dentre outras coisas, as psicografias que ganharam repercussões processuais no campo da prova, em benefício dos réus, e o fato de que as vítimas foram atingidas por disparos de arma de fogo, além, é claro, do peso da credibilidade de um homem respeitado, inclusive internacionalmente, e que é a maior referência nacional no campo do espiritismo.

         Dos três episódios a que me refiro, dois ocorreram no Estado de Goiás, em 1976, e os respectivos processos foram submetidos, em momentos diversos, ao mesmo Juiz de Direito, Dr. Orimar de Bastos. Figuraram como réus, respectivamente, João França e José Divino Nunes. No primeiro processo o Juiz optou pela absolvição sumária por entender que o agente não atuou com dolo ou culpa por ocasião do disparo. O réu não chegou a ser submetido a julgamento popular perante o Juiz Natural dos crimes dolosos contra a vida. No segundo o réu acabou absolvido pelo Tribunal do Júri, por seis votos contra um. Em ambos, reafirme-se, relatos baseados em espiritismo, ligados à psicografia.

         O terceiro episódio ocorreu em 1980, no Mato Grosso do Sul, e o réu João Francisco de Deus terminou condenado, em segundo julgamento, por homicídio culposo, pela morte de sua esposa Gleide Maria Dutra, atingida com um disparo de arma de fogo na região do pescoço.[3]

         Recentemente ocorreu novo caso em que material psicografado foi levado à discussão e apreciação no plenário do Júri, desta vez no Estado do Rio Grande do Sul, fazendo ressurgir a discussão sobre tema.

 

3. Algumas reflexões jurídicas necessárias

         O Estado brasileiro é laico, e também por isso não pode referir-se normativamente à validade ou não de material psicografado como meio de prova, entendendo-se como “meio de prova”, no dizer de Dellepiane, “os diferentes elementos de juízo produzidos pelas partes ou recolhidos pelo juiz, a fim de estabelecer no processo a existência de certos fatos (prova testemunhal, prova indiciária)”.[4]

         A liberdade de produzir prova, como é cediço, não é ilimitada, pois são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI, da CF).

         Sem espaço para questionamentos mais largos e profundos, cumpre ressaltar a idéia do gênero “prova proibida”, que compreende as espécies “prova ilícita” e “prova ilegítima”, adotando a abrangente visão de Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha que ao referir-se ao tema destaca que são proibidas “não só as provas obtidas contra a lei, qualquer que seja a natureza da norma, mas também as que violarem os costumes, a moral e um princípio geral de direito”.[5]

         O material psicografado apresentado em processo criminal para valoração probatória tem a natureza de prova documental que exprime declaração de quem já morreu, e exatamente por isso a prova, quanto à fonte, encontra-se exposta a questionamentos os mais variados.

         Consideram-se documentos, diz o art. 232 do CPP, quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, público ou particulares.

         Como prova documental, submete-se a todas as restrições impostas pela legislação processual penal, inclusive quanto ao tempo e forma de produção.

         Note-se que a lei faz referência à quaisquer escritos, de maneira que os escritos psicografados devem ser considerados como documentos, em sentido amplo.

         Não há no ordenamento jurídico vigente qualquer regra que proíba a apresentação de documento produzido por psicografia, para que seja valorado como prova em processo penal. Não se trata de prova ilícita, mesmo no conceito amplo acima apresentado.

         Nos processos submetidos a julgamento de Juízo singular o acolhimento ou não do documento psicografado como prova dependerá muito mais da formação religiosa do magistrado e das experiências adquiridas ao longo da vida, atuantes na formação de seu livre convencimento (motivado), do que qualquer outro fator, e como advertiu Nuovolone: “O principio do livre convencimento significa o princípio pelo qual o Juiz não está vinculado a um sistema de provas legais (pelo qual certos fatos só podem ser provados com determinados meios e pelo qual certas provas não podem ser infirmadas por outras)”.[6]

         Por outro vértice, em se tratando de julgamento pelo E. Tribunal do Júri a aceitação tende a contar com menor restrição, não apenas em razão de se tratar de julgamento sem decisão motivada no que tange aos jurados, proveniente de formações ecléticas e multi-culturais, mas, sobretudo, em razão dos apelos emocionais e religiosos tantas vezes explorados com maestria na Tribuna da Defesa.

 

4. Conclusão

         No sistema jurídico brasileiro não há como normatizar o uso do documento psicografado como meio de prova; seja para permitir ou proibir. O Estado é laico.

          De prova ilícita não se trata.

         Se não está submetido ao contraditório quando de sua produção, entenda-se, quando da psicografia, a ele estará exposto a partir da apresentação em Juízo.

         Como prova documental, a credibilidade de seu conteúdo, em razão da fonte, não pode ser infirmada com absoluta certeza, tanto quanto não poderá ser fielmente confirmada, não obstante a existência de relatos a respeito de confirmações de autoria atestadas por grafologistas.

         As proposições apresentadas pelo sobrenatural, longe de alcançar consenso, não comportam afirmações peremptórias a respeito de todos os temas que envolvem.

  

 

Renato Marcão é membro do Ministério Público do Estado de São Paulo; mestre em Direito Penal, Político e Econômico; professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal; presidente da AREJ – Academia Rio-Pretense de Estudos Jurídicos; membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP); autor dos livros: “Lei de Execução Penal Anotada e Interpretada” (Lumen Juris), “Tóxicos” (Saraiva) e “Curso de Execução Penal” (Saraiva); co-autor dos livros: “Notáveis do Direito Penal” (Consulex) e “Comentários à Lei de Imprensa” (RT).

 



[1] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. 3ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 121.

[2] HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1ª ed., Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2001, p. 2326.

[3] Informações constantes do DVD “As cartas de Chico Xavier e outras histórias misteriosas”.

[4] DELLEPIANE, Antonio. Nova teoria da prova. Rio de Janeiro, José Konfino, 5ª ed., traduzida por Érico Maciel, 1958, p. 19.

[5] CAMARGO ARANHA, Adalberto José Q. T. de. Da prova no processo penal, São Paulo, Saraiva, 6ª ed., 2004, p. 73.

[6] Apud Fernando de Almeida Pedroso. Processo penal. O direito de defesa: repercussão, amplitude e limites, São Paulo, Revista dos Tribunais, 3ª ed., p. 404.



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