125 - Renovação da CNH e inconstitucionalidade do curso de direção defensiva para condutores já habilitados


 
JOÃO JOSÉ LEAL - Professor de Direito
 

            1.     Introdução

 

Seguindo orientação estabelecida pelo Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN (art. 6º, § 1º, da Resolução 168/2004), os DETRANs de todo o país estão obrigando o motorista, que deve renovar sua Carteira Nacional de Habilitação – CNH,  a freqüentar o Curso de Direção Defensiva e de Primeiros Socorros. O Curso está sendo exigido de todos os motoristas habilitados até o dia 21 de janeiro de 1998. É que os condutores habilitados após esta data já vem cumprindo tal exigência e isto é perfeitamente válido e razoável.

 

Com duração de 15 horas/aula, seu conteúdo programático, entre outras questões obrigatórias, é o seguinte: como evitar acidentes; cuidados com o veículo e demais usuários da via pública; infrações e penalidades; cuidados com a vítima etc. (Anexo II, item 4, da referida Resolução). Como se vê, os objetivos gerais e específicos do Curso são válidos e úteis para os candidatos à obtenção da primeira Carteira de Habilitação. Para estes, o Curso já integra o conjunto de estudos e de provas teóricas e práticas do extenso e rigoroso Processo de Habilitação.

 

Portanto, quanto aos novos condutores, cremos que não se pode negar sua validade e utilidade para uma adequada formação de bons motoristas. Neste caso, cabe reconhecer que a Resolução 168/04 apenas cumpriu determinação expressa estabelecida no Código de Trânsito Brasileiro – CTB.

 

No entanto, entendemos que o CONTRAN e seus braços administrativos estaduais – os DETRANs – estão cometendo um grave erro políticojurídico ao obrigar, o motorista já habilitado, a realizar esse Curso.

 

E isto pelas razões que serão expostas a seguir.

 

 

2.     Uma Norma Juridicamente Vazia

 

O CONTRAN fundamenta sua posição no argumento de que o art. 150 do Código de Trânsito Brasileiro – CTB determina a realização de tal curso, nos seguintes termos:

 

Ao renovar os exames previstos no artigo anterior, o condutor que não tenha curso de direção defensiva e primeiros socorros deverá a eles ser submetido, conforme normatização do CONTRAN.

 

         Não há dúvida de que o texto deste artigo é taxativo ao prescrever que o condutor deve ser submetido ao curso de direção defensiva. Acontece que o CONTRAN, por razões que não se conhecem, ignorou o fato de que o “artigo anterior”, que deveria descrever “os exames” a que faz remissão o próprio art. 150, não existe juridicamente. Basta um olhar de segundos no texto publicado do CTB, para constatar que o art. 149 foi objeto de veto presidencial. Assim, é preciso reconhecer que o comando contido no art. 150 padece de eficácia jurídica, pois lançou suas raízes em terreno juridicamente inexistente.

 

         Além disso, não devemos esquecer que estamos na seara do Direito Administrativo, onde o princípio da estrita legalidade e a regra da interpretação restritiva de suas normas devem ser observados com todo o rigor hermenêutico. Dessa forma, se o conteúdo normativo do art. 149, em que se encontra fundamentado – ou, ao menos,  a ele se integra -  o art. 150, do CTB, foi banido do mundo jurídico, pela revogação mediante veto de seu dispositivo formal, não é admissível que o órgão administrativo viesse a suprir esse vazio normativo, disciplinando matéria que não chegou ter existência legal.

 

Este simples argumento, a nosso ver, seria suficiente para que o CONTRAN – sempre cuidadoso e vigilante em sua função maior de disciplinar o trânsito brasileiro – se abstivesse de editar norma exigindo, dos motoristas já habilitados, o curso previsto num dispositivo que faz remissão ao dispositivo legal antecedente, revogado em conseqüência do veto presidencial.

 

 

3.     Uma Exigência Tardiamente Observada

 

Se o CONTRAN entende que o Curso de Direção Defensiva é juridicamente válido e tecnicamente indispensável para que tenhamos um trânsito mais seguro, é incompreensível a demora em exigi-lo dos motoristas habilitados até janeiro de 1998. Por isso, cabe a indagação: por que, somente a partir de 2004 – seis após a vigência do CTB - o órgão máximo de disciplina do trânsito brasileiro baixou a Resolução 168, com a exigência do referido curso?

 

Frise-se que, em alguns Estados brasileiros, só recentemente o Curso de Direção Defensiva passou a ser exigido. É o caso do DETRAN de Santa Catarina, que fixou a data de 04.10.2006 para que a renovação da CNH somente possa ser concedida mediante comprovação de freqüência ao Curso de Direção Defensiva e de Primeiros Socorros (Resolução 49/2006).

 

Na ausência de uma justificativa oficial e convincente da parte do CONTRAN, cremos que uma possível explicação é a dúvida que tomou conta dos integrantes do órgão nacional a respeito da legalidade do referido curso. Ficou claro que, durante esses oito anos de vigência do CTB, o CONTRAN hesitou em algumas ocasiões para tomar uma posição definitiva sobre a matéria. Tanto que, mesmo após a edição de sua Resolução 168/2004, prazos diferenciados ou prorrogados foram concedidos aos DETRANs estaduais.

 

 

4.     Ofensa ao Princípio Constitucional do Direito Adquirido

 

No entanto, cremos que o argumento jurídico mais sólido e contrário à validade do art. 6º, § 1º, da Resolução 168/04, é de que a exigência de freqüência ao referido curso para a renovação da CNH ofende o princípio constitucional do direito adquirido, consagrado no art. 5º, inciso XXXVI.

 

Na verdade, o motorista já habilitado cumpriu todo um processo administrativo e foi submetido aos exames necessários para  a obtenção da Carteira de Habilitação, de acordo com as normas jurídicas vigentes à época. Em conseqüência, parece certo ter adquirido o direito de conduzir veículo automotor sem estar obrigado a cumprir novas exigências, criadas após a realização de um ato jurídico perfeito e acabado. Principalmente, porque os conhecimentos básicos sobre direção defensiva e primeiros socorros foram implícita e legalmente reconhecidos, no momento em que o motorista obteve sua Carteira de Habilitação.

 

A partir daí, cremos que o motorista foi considerado legalmente habilitado e adquiriu um direito garantido pela Constituição Federal                                                                                                    que não pode ser desconsiderado por uma simples Resolução.

 

O argumento de que se trata de novos conhecimentos, indispensáveis agora à condução de veículo automotor, não convence. Não será uma simples e descomprometida freqüência ao curso que poderá garantir maior segurança no trânsito brasileiro. Na verdade, para os motoristas já habilitados, é mais razoável entender que as simples noções de direção defensiva e de primeiros socorros, foram apreendidas durante a experiência de muitos anos (no mínimo, mais de oito anos! se contarmos a partir da vigência no CTB) na prática do volante.

 

Tanto é verdade que, há muitos anos, milhões de motoristas brasileiros dirigem sem cometer qualquer infração mais grave. E isto é que importa.

 

O argumento do direito adquirido torna-se ainda mais forte, quando se sabe que não ocorreram mudanças significativas ou substanciais nas condições viárias e automotivas, em relação ao tempo em que os condutores, habilitados até 1998, realizaram os exames necessários à obtenção de suas carteiras de habilitação.

 

 

5.     Violação do Princípio da Razoabilidade

 

Ao exigir, do motorista habilitado, a simples freqüência ao Curso de Direção Defensiva, o CONTRAN está afrontando, também, o princípio da razoabilidade, pois ignora que este condutor, não somente foi considerado apto, mas continua com a plena capacidade de conduzir um veículo automotor com a necessária segurança. O exemplo de milhões de motoristas que dirigem seus veículos sem cometer qualquer infração de trânsito de maior gravidade é uma prova evidente do que estamos afirmando.

 

Todos sabemos que a doutrina dos princípios jurídicos ganhou uma força extraordinária nas últimas décadas. No caso de nosso país, principalmente, a partir da Constituição de 1988. E não só no campo da Doutrina e da academia. Mas, também, no campo da práxis judiciária, onde trabalhos forenses – petições, pareceres e decisões – cada vez fundamentam-se nos princípios jurídicoconstitucionais.

 

É verdade que o princípio da razoabilidade não se encontra positivado, de forma expressa, em nenhuma norma de nosso ordenamento jurídico. Mas, inexiste qualquer dúvida: trata-se de princípio que integra e fundamenta nosso sistema jurídico. Em conseqüência, nenhuma norma de qualquer subsistema jurídico – e muito menos do Direito Administrativo – pode ser aplicada ou exigida de seus destinatários senão apresentar um mínimo de razoabilidade.

 

No caso  da norma contida no art. 6º, § 1º, da Resolução 168/04, do CONTRAN, não parece ser razoável exigir, de motoristas já habilitados - todos há mais de oito anos - a freqüência a um curso para, hipoteticamente, obterem informações e conhecimentos que a prática de muitos anos de volante, seguramente, já lhes ensinou. Trata-se, portanto, de exigência que se revela inócua e desnecessária em relação ao fim a que, hipoteticamente, se propõe: mais segurança no trânsito. Por isso, afronta o bom senso e fere o princípio da razoabilidade.

 

Na verdade, se cumprida esta norma, muito mais que ofensa à regra do bom senso e muito mais que um ato de desrazão jurídica, estaremos admitindo que o Direito possa ser utilizado como instrumento de humilhação humana, porque a cena é, sem dúvida, humilhante: velhos motoristas, humildemente sentados em bancos de cursinhos, para aprender o que a experiência de 10, 20 ou 30 anos ao volante, há muito já lhes ensinou.

 

Humilhados, sim, mas também indignados com mais esta inútil, injusta e desarrazoada exigência que o CONTRAN entende por bem impingir-nos para a renovação da CNH.

 

6.     Mera Freqüência ao Curso e Desrazão da Exigência Legal

 

No caso em exame, a ofensa ao princípio da razoabilidade se torna mais evidente  quando se verifica que a  Resolução 168/04 prevê apenas a freqüência ao Curso de Direção Defensiva e de Primeiros Socorros, dispensando a aplicação de provas ou testes para a aferição do conhecimento ou do aproveitamento do candidato. Isto significa que o condutor tem a obrigação de apenas marcar presença nas aulas do curso, sem qualquer compromisso com a aprendizagem do conteúdo ministrado.

 

Assim, pouco importa se o candidato tomou conhecimento das informações e ensinamentos apresentados nas quinze horas de aula, porque basta-lhe a obtenção de um certificado de mera presença. Este fato demonstra que o CONTRAN não parece preocupado com a efetiva formação dos candidatos à renovação da CNH, no que diz respeito especificamente ao conteúdo deste inútil e desnecessário curso. Ou, então, parece que o CONTRAN, implicitamente, admite que os condutores habilitados, por experiência própria, já adquiriram os conhecimentos mínimos sobre direção defensiva e primeiros socorros.

 

Diante do fato de que, com a simples e mera freqüência, não se está a exigir conhecimentos efetivos sobre a matéria do curso, parece-nos que mais evidente se mostra a ofensa ao bom senso e a ofensa ao princípio da razoabilidade.

 

 

7.     Vinte e Cinco Milhões de Condutores Sujeitos à Renovação da CNH

 

Finalmente, há o fator econômicofinanceiro. Embora não seja uma questão especificamente jurídica, não pode ser ignorada, porque se torna um importante indicador dos interesses que movem os que se encontram do outro lado do balcão do Curso de Direção Defensiva e de Primeiros Socorros. Estamos nos referindo aos Centros de Formação de Condutores, entidades ou empresas credenciadas pelos DETRANs e que detêm o monopólio para ministrar o curso sob exame.

 

Segundo informações divulgadas pelo DENATRAN, estima-se que mais de 25 milhões de motoristas estarão requerendo a renovação da CNH, até o ano de 2010. Pesquisa por nós realizada aponta um custo médio de R$ 70,00, para a freqüência ao curso. Fica difícil fazer um prognóstico em relação ao montante a ser arrecadado, porque há Estados, como o do Rio de Janeiro, em que o valor do curso integra o custo da renovação da CNH. Em São Paulo, os custos são diferenciados: os candidatos não sujeitos à prova e, portanto, a uma eventual reprovação, pagam mais caro.

 

De qualquer modo, mantida sua obrigatoriedade, o curso movimentará a significativa soma de, no mínimo, um bilhão de reais.

 

É provável que o CONTRAN não se tenha dado conta do montante dos recursos que está sendo carreado para os cofres dos Centros de Formação de Condutores e que serão os grandes beneficiários da aplicação de uma norma administrativa violadora dos princípios do direito adquirido e da razoabilidade.

 

A questão se torna mais grave na medida em que, prevalecendo a tese da ilegalidade do Curso de Direção Defensiva para motoristas já habilitados, conforme defendemos neste estudo, ficará demonstrado que o CONTRAN, embora involuntariamente, terá contribuído para o enriquecimento indevido de empresas privilegiadas com a chancela oficial do credenciamento pelos órgãos consultivos e executivos de trânsito.

 

 

8. Considerações Finais

 

Os cidadãos-motoristas precisam resistir a essa exigência indevida do CONTRAN. Individualmente, o mandado de segurança é o caminho indicado. No entanto, como o valor do Curso é menor do que as custas de um processo, creio que, a continuar a insistência dos órgãos de trânsito, a maioria dos motoristas acabará se resignando. Mesmo indignados com mais esta maldade administrativa praticada no varejo, esses 25 milhões de cidadãos-motoristas, irão cumprir a Resolução.

 

Resta a alternativa da ação coletiva, em nome dos motoristas como um todo e que precisam ver seus direitos respeitados. Neste caso, tem a palavra o Ministério Público – guardião da ordem jurídica e dos direitos inerentes à cidadania.

 

                  

 

Os cidadãos-motoristas precisam resistir a mais essa exigência descabida do CONTRAN. Individualmente, o mandado de segurança é o caminho indicado. No entanto, como o valor do Curso é menor do que as custas de um processo, creio que, a continuar a insistência dos órgãos de trânsito, a maioria dos motoristas acabará cumprindo a Resolução.

 

Resta a alternativa da ação coletiva, em nome dos motoristas como um todo e que precisam ver seus direitos respeitados. Neste caso, tem a palavra o Ministério Público – guardião da ordem jurídica e dos direitos inerentes à cidadania.

 

Mas há, também, a alternativa política. Se somos todos bons motoristas, devemos demonstrar também a capacidade de dirigir nossos direitos e defendê-los de eventuais violações praticadas pelo poder público.

 

 

JOÃO JOSÉ LEAL é professor do CPCJ/UNIVALI, procurador geral de Justiça e promotor de Justiça aposentado.

        



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