124 - Nova política criminal sobre drogas: infrações de médio e de menor potencial ofensivo previstas na Lei nº 11.343/2006

 
JOÃO JOSÉ LEAL - Professor de Direito
 

             1. Introdução

           

            A Lei 11.343/2006, aqui denominada de Lei Antidrogas, manteve a orientação da legislação anterior e incriminou condutas intermediárias entre o simples porte para consumo pessoal (conduta agora submetida a um processo de descriminalização branca) e o crime maior e mais grave de tráfico ilícito de drogas.

 

Em artigo anterior, analisamos algumas questões referentes à infração penal de porte para consumo pessoal. Aqui, examinaremos os crimes descritos no Título IV, da nova lei que, em termos de gravidade, podem ser considerados como de menor ou de médio potencial ofensivo, em face dos dois tipos penais extremos.

 

Nosso estudo, portanto, terá como foco os crimes que ocupam um espaço de tipicidade penal situado entre os campos de maior gravidade reservado ao crime de tráfico ilícito (aí incluídas as formas típicas que lhe são equiparadas ou assemelhadas) e o de reduzidíssima gravidade (ou quase insignificância penal!) ocupado pelo crime de porte para consumo pessoal.

 

Na verdade, os crimes que aqui serão objeto de análise podem ser classificados como infrações intermediárias entre o crime de tráfico e esta nova e implicitamente descriminalizada infração que leva agora o nomen juris de consumo pessoal de drogas.

 

Por isso, embora tais crimes estejam descritos no Capítulo II, do Título IV, da Lei Antidrogas, não devem ser considerados como modalidade ou espécies do tipo básico ou fundamental do crime de tráfico ilícito de drogas. No entanto, é preciso lembrar que, no regime normativo do direito anterior, dois destes crimes intermediários eram reprimidos como modalidades típicas equiparadas ou equivalentes ao tipo básico mais grave de tráfico ilícito de drogas. Em relação a estas duas condutas, como veremos abaixo, ocorreu significativo abrandamento do controle repressivo legal.

 

Portanto, no espaço deste artigo, nosso estudo ficará restrito ao exame de algumas questões políticojurídicas relativas aos dois tipos penais de menor potencial ofensivo e aos outros dois de médio potencial ofensivo.

   

2. Induzimento ou Auxílio ao Consumo Indevido de Droga (art. 33, § 2º)

 

A atual Lei de Drogas manteve a incriminação - com a mesma descrição típica - da conduta de “induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga” (art. 33, § 2º). Embora, inserido como parágrafo do art. 33, a atual lei deu-lhe autonomia tipológica, pois deixou de ser uma simples modalidade do tipo penal básico bem mais grave.

 

Antes sancionada com a mesma pena - de três a quinze anos de reclusão - imposta ao traficante (art. 12, § 2º, inciso I, da lei anterior), a conduta agora  é classificada de forma autônoma e punida com detenção, de um a três anos, acrescida da pena pecuniária de 100 a 300 dias-multa. Houve uma sensível redução da carga punitiva cominada para este tipo de conduta, cujas linhas divisórias, em relação ao crime de tráfico, nem sempre será tarefa fácil de ser demarcada.

 

Os três verbos, que compõem o núcleo da descrição típica,  referem-se a ações  que, normalmente, são indicadoras de participação no crime do outro. Mas, no caso em exame, foram consideradas como suficientes para constituírem um tipo penal próprio. Assim, somente estará configurada esta infração quando o agente induz, instiga ou auxilia pessoa certa e esta efetivamente passa a consumir determinado tipo de droga. Aplica-se à hipótese sob exame a regra geral de que o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio não são puníveis se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado (art. 31, do CP).

 

É claro, também,  que só haverá crime se a instigação ou o auxílio destinar-se ao uso indevido. Assim, não comete o crime em exame quem induz um parente ou uma pessoa amiga a consultar um médico para o uso de psicotrópicos ou o auxilia a ingerir substância psicotrópica devidamente prescrita por profissional médico.

 

Por outro lado, deve ser ressaltado que a ação de induzir, instigar ou auxiliar não pode representar qualquer ato próprio do crime de tráfico. Ou seja, o agente, a pretexto de instigar ou auxiliar, não pode tomar a iniciativa de oferecer (muito menos vender!) a droga a determinado usuário, porque neste caso o crime praticado será o de tráfico, previsto no caput, do art. 33. Na prática, sempre será necessária uma análise minuciosa de todas as circunstâncias em que o agente atuou para chegar-se à constatação segura de que o mesmo, com sua conduta, não ultrapassou os limites da simples instigação ou do auxílio para adentrar no espaço de tipicidade mais grave da oferta, que já carateriza o crime de tráfico.

 

Da mesma forma, a conduta de induzir, instigar ou auxiliar, também precisa ser distinguida daquela prevista no parágrafo 3º, em que o agente oferece droga, eventualmente e sem intenção de lucro, a um terceiro para consumo em conjunto. São dois crimes muito próximos em seus contornos típicos e a diferença entre um e outro não será tarefa fácil no campo da práxis judiciária.

 

Finalmente, cremos que a alteração se fazia necessária. A norma repressiva anterior era demasiadamente severa, ao punir o instigador ou prestador de auxílio ao uso de drogas com a mesma carga punitiva cominada ao traficante.

 

Por isso, com a Lei Antidrogas, os casos de instigação e de auxílio ao uso de drogas, que não são frequentes ou, ao menos não são fáceis de serem identificados na prática judiciária, terão um tratamento penal bem mais brando e mais justo.

 

3. Oferecimento de Droga para Consumo em Conjunto (art. 33. § 3º)

 

Outra inovação de grande significado penal diz respeito ao crime de “oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem” (art. 33, § 3º), punido com pena de detenção, de seis meses a um ano, além da pena 700 a 1.500 dias-multa e “sem prejuízo das penas previstas no art. 28”. É preciso reconhecer que houve um significativo abrandamento no controle penal desta conduta, antes também incriminada como tráfico ilícito.

 

Mas, ao mesmo tempo, o novo preceito incriminador veio acompanhado de uma verdadeira cascata sancionatória. Para uma infração penal que, pela natureza e quantidade da pena privativa de liberdade cominada, deve ser classificada como de menor potencial ofensivo, o legislador realmente exagerou na dose do remédio punitivo. Assim sendo, observado o disposto na parte sancionatória, deverá o juiz  aplicar ao condenado por oferta de droga, sem fim lucrativo e para consumo em conjunto, as penas detentiva e pecuniária ali cominadas e mais uma das outras três penas previstas no art. 28. Sem dúvida, trata-se de um exagerado e inócuo festival de pequenas penalidades.

 

O novo tipo penal é marcado por elementos normativos próprios. O objetivo é o de diferenciá-lo do tipo muito mais grave - mas muito próximo e de onde foi destacado, frise-se – que é o crime de tráfico ilícito de drogas. Assim, só não será considerado traficante quem oferecer drogas: a) de forma eventual, ou seja, ocasionalmente e não de forma reiterada; b) sem objetivo de lucro, o que significa que a droga deve ser oferecida gratuitamente; c) a um consumidor que seja pessoa amiga ou, ao menos, conhecido do agente, e d) para consumo em conjunto, o que quer dizer que a droga deve ser ofertada para consumo compartilhado.

 

Conforme já assinalado, se olharmos a nova norma pelo prisma meramente formal – pelo simples olhar apenas das formas e das sombras normativas estereotipadas e projetadas no fundo da caverna - pode-se dizer que o tipo em exame abrandou, sensivelmente, o controle penal sobre uma conduta bastante comum no mundo das drogas e consistente na prática do consumo conjunto de drogas entre pessoas amigas ou entre si relacionadas. Ou seja, entre participantes – mesmo que eventuais – da tribo do fumo, da coca ou do crake.

 

No regime penal anterior, a conduta era necessariamente (ou, ao menos, deveria ser!) enquadrada no caput do art. 12 ou no inciso III, de seu § 2º, da Lei 6.368/76. Neste sentido, decidiu o TJSC que “comete o crime previsto no art. 12 da Lei 6.368/76, quem, voluntariamente, traz consigo substância entorpecente e fornece a terceiro, ainda que gratuitamente”.[1]

 

Só a possibilidade, prevista na lei anterior, de reprimir o autor desta conduta – que não apresenta maior potencial de nocividade ou de ofensividade - como traficante, já é suficiente para demonstrar o abrandamento da carga punitiva, em termos quantitativos, operado pela nova lei em relação ao ofertante e companheiro condenado pelo crime de consumo compartilhado de drogas.

 

No entanto, o Direito Penal precisa ser compreendido, também, pelo olhar comprometido com o mundo da práxis e da realidade construída pela ação humana. E esta traz consigo a marca inafastável da relatividade e da imperfeição das instituições humanas. Assim, não se pode ignorar que, no regime anterior, boa parte dos casos de oferta e compartilhamento de drogas entre pessoas e grupos amigos – a chamada roda de fumo - era tratada como de porte para uso próprio.

 

Na jurisprudência, foi decidido que, em caso de dúvida quanto ao destino da substância entorpecente encontrada com o agente – se para uso próprio ou para entrega a terceiro - a imputação pelo crime de tráfico ilícito deve ser desclassificada para porte para uso pessoal.[2]

 

Se assim eram solucionados e não como de tráfico ilícito, muitos dos casos de oferta de drogas para consumo em conjunto e sem fins de lucro, cremos que a redução da carga punitiva resultante da norma criadora deste novo tipo penal, embora válida e politicamente mais adequada,  pode não produzir tanta mudança, em relação à efetiva prática judiciária anterior.

 

Com a nova infração penal, a lei amplia sua rede repressora e incrimina, de forma autônoma, a conduta bastante comum do uso compartilhado de drogas, conhecida no jargão dos usuários ou dependentes como “roda de fumo” , “roda de coca” ou “roda de crake”.

 

Agora, é esperar para ver como será efetivado o comando contido no novo tipo penal, em meio ao enorme número de casos de tráfico ilícito e de consumo pessoal de drogas.

 

4. Prescrição Culposa de Drogas (art. 38)

 

É o único tipo culposo relacionado ao tráfico ou ao consumo ilícito de drogas.

 

No tocante à conduta de, culposamente, prescrever ou ministrar drogas, o novo tipo foi descrito, no art. 38, da Lei Antidrogas, de forma mais objetiva, em comparação ao texto do art. 15, da Lei 6.368/76. A pena privativa de liberdade continua a mesma: detenção, de seis meses a dois anos. Já, a pena pecuniária sofreu um leve aumento e está fixada entre os limites de 50 a 200 dias-multa.

 

Os verbos indicadores da ação típica foram mantidos: prescrever ou ministrar. Mas, o novo texto legal ganhou em objetividade. Já não se trata mais de crime próprio. Foi abandonada a indicação taxativa dos sujeitos ativos da infração penal em exame, como fazia a lei anterior, ao se referir ao “médico, dentista, farmacêutico ou profissional de enfermagem”.

 

Agora, por falta de referência expressa ao sujeito ativo, em tese, esta infração pode ser praticada por qualquer pessoa. Porém, na prática, é preciso reconhecer que, dificilmente, alguma outra pessoa ou profissional poderá figurar no pólo ativo deste crime. Assim, a ação de “prescrever”, em regra, continuará sendo praticada pelo médico, pelo dentista ou pelo farmacêutico. Já, a ação de “ministrar”, embora possa ser praticada por qualquer pessoa, em regra, terá como sujeito ativo um profissional de enfermagem  ou de farmácia ou de um órgão público ou particular de saúde.

 

Houve mudança, também, na descrição do complemento verbal da ação proibida. Agora, são três as modalidades típicas configuradoras do crime de prescrever ou ministrar drogas: quando a substância for completamente desnecessária; quando o paciente dela necessitar, mas for prescrita ou ministrada em dose excessiva; finalmente, mesmo dela necessitando o paciente, quando for prescrita ou aviada em desacordo com determinação legal.

 

Tratando-se de tipo culposo, em qualquer das três formas típicas, deve ficar demonstrado que o agente, no âmbito de sua respectiva profissão ou na esfera de sua atividade, infringiu o dever de cuidado ou diligência e se conduziu com imprudência, negligência ou imperícia. Cabe ressaltar que, se a prescrição ou aplicação da droga, é praticada com a vontade de, simplesmente, levar o paciente – mesmo que a pedido ou com a concordância deste - ao consumo de drogas, é claro que a conduta deve ser considerada como crime de tráfico ilícito de drogas.

 

5. Condução de Embarcação ou Aeronave Após Consumo de Droga (art. 39 e parágrafo único)

 

Finalmente, merece referência o novo tipo penal de perigo abstrato, descrito no art. 39 da atual Lei de Drogas: “Conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a perigo potencial a incolumidade de outrem”. As penas cominadas são de detenção, de seis meses a três anos, cumulativamente aplicadas com a apreensão do veículo, cassação da habilitação e com o pagamento de 200 a 400 dias-multa.

 

O parágrafo único descreve uma forma qualificada desta infração penal, no caso de ser o veículo destinado ao transporte coletivo de passageiros. Nesta hipótese, “as penas de prisão (sic) e multa, aplicadas cumulativamente com as demais, serão de quatro a seis anos e de 400 a 600 dias-multa”.

 

A descrição típica deste dispositivo, certamente, não ficará imune à crítica da doutrina.

 

Primeiro, por  criar um tipo construído com base na idéia de perigo abstrato, condenada por boa parte dos penalistas. Não compartilhamos com boa parte da doutrina que divide a categoria jurídicopenal perigo  em duas: perigo concreto e perigo abstrato. Cremos que, nas infrações de perigo, este deve ser sempre efetivo, concreto, cabendo ao juiz, identificar a efetividade do perigo causado pela conduta do agente, em relação ao bem jurídico protegido. Nossa posição é no sentido de que inexiste perigo abstrato e, se teoricamente, pode ser imaginado, penalmente, é irrelevante. Assim, o perigo potencial a que, de forma ambígua, se refere a Lei Antidrogas só pode ser entendido como perigo efetivo.

 

Em segundo lugar, por utilizar a expressão após o consumo de drogas, na condição de elemento normativo do tipo. Aqui, foi abandonada a expressão logo após que, embora contenha certo grau de imprecisão temporal, tem sido adotada pelo direito positivo e já se encontra assimilada pela doutrina e pela jurisprudência. Além disso, sempre constituiu um limite ao uso de uma discricionariedade ofensiva à regra da taxatividade da norma penal incriminadora. Agora, já não se sabe mais até quanto tempo - após o consumo de drogas - pode ser imputado ao condutor de embarcação ou aeronave o novo tipo penal previsto no art. 39 da Lei Antidrogas.

        

Por fim, o novo tipo penal pode ser objeto de crítica por ter criado mais um fator de assimetria no sistema penal brasileiro. É que o art. 306, do CTB, já incrimina conduta semelhante, punindo o motorista que “conduzir veículo automotor em via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos”. O tipo objetivo automotivo tem uma dicção penalmente mais adequada, pois exige que a conduta seja praticada sob a influência de alguma substância tóxica.

 

A disfunção normativa torna-se ainda mais grave quando se verifica que o CTB é omisso quanto ao crime qualificado. A pena ali cominada é uma só (de seis meses a três anos de detenção), mesmo se o motorista pratica o crime na condução de veículo de transporte coletivo de passageiros, sob o efeito de qualquer tipo droga.

 

Nosso direito positivo, que já trabalha com duas figuras típicas para incriminar o homicídio involuntário, conta agora com mais esta assimetria pena, ao punir o condutor de embarcação ou de aeronave sob o efeito de drogas, de forma diferenciada do condutor de veículo automotor, que se encontre na mesma condição.

 

Em termos de Política Criminal, seguramente, o dispositivo em análise não foi feliz. Pune, com espadas e medidas diferentes, duas condutas idênticas e relacionadas ou influenciadas pelo uso de drogas. Em termos de Direito como ordenamento, o novo dispositivo diferenciador contribui para que nosso sistema penal se torne ainda mais contraditório e assimétrico.

 

6. Causa de Aumento de Pena (art. 40)

 

Questão seguramente polêmica é a que diz respeito à causa de aumento, de um sexto a dois terços, prevista no art. 40 e seus incisos, da Lei Antidrogas. O dispositivo legal determina a incidência do aumento, sem exceção, às “penas previstas nos  arts. 33 a 37 desta Lei”.

 

São sete as circunstâncias majorantes, previstas nos incisos do referido art. 40 e devem incidir sobre a pena a ser aplicada, se:

 

I – a natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido e as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade do delito;

II – o agente praticar o crime prevalecendo-se de função pública ou no desempenho de missão de educação, poder familiar , guarda ou vigilância;

III – a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimento prisionais, de ensino ou hospitalares, de sede de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas ou beneficientes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;

IV – o crime tiver sido praticado com violência, grave ameaça, emprego de arma de fogo, ou qualquer processo de intimidação difusa ou coletiva;

V – caracterizado o tráfico entre Estados da Federação ou entre estes e o Distrito Federal;

VI – sua prática envolver ou visar a atingir criança ou adolescente ou quem tenha, por qualquer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de entendimento e determinação;

VII – o agente financiar ou custear a prática do crime.

 

Literalmente interpretado o caput do artigo 40, não haveria dúvida quanto ao aumento, que deve ser obrigatoriamente aplicado, no caso de condenação por qualquer dos crimes ali indicados, desde que verificada, no caso concreto, a presença de uma das circunstâncias acima descritas.

 

No entanto, cremos que a melhor interpretação é a de que nem todas as circunstâncias majorantes são compatíveis com todos tipos penais descritos nos arts. 33 a 37 da Lei Antidrogas. Por exemplo, como poderá haver incidência da circunstância de ter sido o crime praticado com violência, grave ameaça, emprego de arma de fogo etc., nas hipóteses típicas de indução ao uso de drogas ou de oferta a pessoa amiga para consumo em conjunto de drogas, descritas nos §§ 2º e 3º, do art. 33?

 

Por outro lado, a conduta de financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 da Lei AntiDrogas, já constitui crime autônomo, punido com pena de reclusão, de oito a 20 anos, e pagamento de 1.500 a 4.000 dias-multa  (art. 36). Portanto, para estes crimes, a circunstância prevista no inciso VII, não poderá ser aplicada sem ofensa ao princípio do non bis in idem. Para os demais crimes, parece que esta circunstância, também, dificilmente, encontrará seu espaço de incidência sem ofensa ao princípio da razoabilidade.

 

Finalmente, é preciso assinalar a amplitude espacial da circunstância majorante descrita no inciso III. São tantos os locais, estabelecimentos e entidades capazes de majorar a pena, no caso de o crime ser praticado em suas imediações que, rigorosamente observada, é possível sempre encontrar uma hipótese para a incidência desta norma repressiva.

 

7. Substituição e Conversão das Penas

 

No caso dos crimes acima examinados, cremos ser perfeitamente possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou pecuniária, nos termos do estabelecido nos arts. 43 e seguintes do CP. São crimes praticados sem violência e o máximo cominado às penas permite a substituição. Não nos parece que o fato de a pena privativa de liberdade cominada estar acompanhada de outra, de natureza pecuniária, deve considerado como óbice à referida substituição.

 

Além disso, a Lei Antidrogas, que em alguns pontos procedimentais e de regime penal é casuística e expressa, não estabelece qualquer disposição em contrário. Portanto, como vinha ocorrendo no regime da lei anterior, para estas infrações de menor ou médio potencial ofensivo relacionadas ou periféricas ao consumo e ao tráfico de drogas, satisfeitas condições legais, poderá o condenado ser beneficiado com a substituição da pena.

 

8. Procedimento Penal e Juizado Especial Criminal

 

A Lei Antidrogas não acertou ao indicar, de forma expressa e restritiva (art. 48, § 1º), que somente o “crime” de porte para consumo pessoal, previsto em seu art. 28, “será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais”. Com tal dispositivo, poder-se-ia pensar que os demais crimes de menor potencial ofensivo, tipificados na nova lei de drogas e analisados acima, encontram-se fora da competência dessa jurisdição especializada.

 

Não parece ser esta a melhor hermenêutica para identificar o sentido do direito contido na norma em exame. Na verdade, teria sido mais adequado que a Lei Antidrogas tivesse omitido qualquer referência limitadora à competência dos Juizados Criminais.

 

De qualquer modo, é preciso ressaltar que não há, no texto da nova lei, nenhuma norma expressa proibindo a competência dos Juizados para processar e julgar estes crimes situados na periferia do tráfico ilícito de drogas, cuja pena máxima cominada não ultrapasse dois anos. Em conseqüência, não nos parece adequado, nem razoável aplicar o procedimento penal específico para a instrução e o julgamento do crime de tráfico e dos aqui examinados e denominados de intermediários ou de médio potencial ofensivo aos crimes de menor potencial ofensivo.

 

Assim sendo, entendemos que os crimes de oferta e de prescrição culposa de drogas (arts. 33, § 3º e 38), cujas penas máximas não ultrapassam a dois anos de detenção e, em conseqüência enquadram-se no conceito legal de crimes de menor potencial ofensivo, podem ser objeto de processo e julgamento pelos Juizados Criminais Especiais.

 

9. Considerações Finais

 

As idéias acima expostas resultam de uma análise interpretativa operada num primeiro momento de vigência da nova Lei Antidrogas. Trata-se, portanto, de um estudo forjado no calor das primeiras impressões, a respeito de alguns de seus dispositivos incriminadores das condutas que gravitam na periferia do espaço normativo mais importante ocupado pelo crime maior e mais grave do tráfico ilícito de drogas.

 

São, portanto, idéias e posições formuladas com o objetivo de contribuir para a construção de uma doutrina comprometida com a busca incessante do melhor sentido do direito contido nas referidas normas incriminadoras. Por isso, estamos conscientes de que são idéias e posições sujeitas ao crivo da crítica e da divergência doutrinária.

 

 


[1] Ap. Crim. 2001.005798-0,  rel. des. Irineu João da Silva.

[2] TJMS, Ap. Crim. 1.093/85; TJRJ. Ap. Crim. 1.867/85-50; TACrimSP, Ap. Crim. 224.131, RT 522/354).



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